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Camus – Herman Melville
sexta-feira 27 de junho de 2025
Naqueles tempos em que os baleeiros de Nantucket passavam muitos anos no mar, o jovem Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) (aos 22 anos) embarcou em um deles, depois num navio de guerra, e cruzou os oceanos. Ao retornar à América, publicou seus relatos de viagem com relativo sucesso, e seus grandes livros em meio à indiferença e à incompreensão. Após a publicação e o fracasso de The Confidence-Man (1857), Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , desencorajado, “aceita a aniquilação”. Torna-se funcionário aduaneiro e pai de família, e adentra um silêncio quase completo (uns poucos poemas de quando em quando) que durará cerca de três décadas. Apressa-se certo dia em escrever uma obra-prima, Billy Budd (concluída em abril de 1891), para morrer, alguns meses depois, no esquecimento (um obituário de três linhas no New York Times). Ele teve de esperar até os nossos tempos para que a América e a Europa enfim reconhecessem seu lugar entre os maiores gênios do Ocidente.
Falar em poucas páginas sobre uma obra que tem a dimensão tumultuosa dos oceanos onde nasceu não é muito mais fácil do que resumir a Bíblia ou condensar Shakespeare Shakespeare William Shakespeare (?-1616) . Mas, para julgar ao menos o gênio de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , é indispensável admitir que suas obras traçam uma experiência espiritual de intensidade inigualável, e que são em alguma medida simbólicas. Alguns críticos discutiram esse fato evidente, que já não parece passível de discussão. Esses livros admiráveis figuram entre aquelas obras excepcionais que podem ser lidas de diferentes maneiras, ao mesmo tempo evidentes e misteriosas, obscuras como o sol pleno e contudo límpidas como água profunda. Neles, tanto a criança quanto o sábio encontram alimento. A história do capitão Ahab, por exemplo, lançando-se do mar austral para o setentrião no encalço de Moby Dick, a baleia branca que lhe amputou a perna, pode sem dúvida ser lida como a paixão funesta de um personagem que enlouqueceu de dor e de solidão. Mas também é possível contemplá-la como um dos mitos mais arrebatadores já imaginados sobre o combate do homem contra o mal, e sobre a lógica irresistível que acaba por investir o homem justo contra a criação e o criador, depois contra seus semelhantes e contra ele próprio. Que não restem dúvidas: se for verdade que o talento recria a vida, ao passo que o gênio, ademais, é capaz de coroá-la com mitos, Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) é então em primeiro lugar um criador de mitos.
Eu acrescentaria que esses mitos, ao contrário do que se costuma dizer, são claros. Eles são obscuros apenas na medida em que a raiz de toda dor e de toda grandeza está cravada na noite da terra. Eles não são mais obscuros que os gritos de Fedra, os silêncios de Hamlet ou os cantos triunfais de Don Giovanni. Parece-me, ao contrário (e isto mereceria um extenso desenvolvimento), que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) não escreveu nada além de um mesmo livro, recomeçado infinitas vezes. Esse livro único conta a história de uma viagem, animada a princípio pela alegre curiosidade da juventude (Typee, Omoo, etc.), e depois habitada por uma angústia cada vez mais selvagem e abrasadora. Mardi é a primeira e magnífica história na qual Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) declara aberta essa busca que nada poderá aplacar e, ao fim da qual, “perseguidos e perseguidores fogem sobre um oceano ilimitado”. É nessa obra que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) toma consciência do fascinante chamado que nele ecoa sem cessar. “Eu empreendi uma viagem sem mapa.” E ainda: “Sou o caçador infatigável, o que não tem lar”. Moby Dick simplesmente leva à perfeição os grandes temas de Mardi. Mas como a perfeição artística não basta para saciar esse tipo de sede, Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) voltará a retratar, em Pierre; or, The Ambiguities, essa obra-prima mal-sucedida, a busca do gênio e do infortúnio, cujo irônico fracasso ele consagrará no curso de uma longa viagem pelo Mississippi, que é o tema de The Confidence-Man.
Esse livro reescrito incessantemente, essa peregrinação incansável pelo arquipélago de sonhos e de corpos, pelo oceano “onde cada onda é uma alma”, essa odisseia sob um céu vazio, fazem de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) o Homero do Pacífico. Mas é preciso acrescentar desde já que o seu Ulisses nunca retorna a Ítaca. A pátria em que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) se aproxima dos portões da morte, e que ele imortaliza em Billy Budd, é uma ilha deserta. Ao permitir que o jovem marinheiro que ele ama com ternura, imagem da beleza e da inocência, seja condenado à morte, o comandante Vere sujeita seu coração à lei. E, ao mesmo tempo, por meio dessa história sem falhas equiparável às tragédias antigas, o velho Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) nos anuncia ter aceitado pela primeira vez o sacrifício da inocência e da beleza, a fim de que a ordem seja mantida e o navio dos homens siga avançando rumo a um horizonte desconhecido. Terá ele realmente conquistado a paz e o descanso definitivo, que dizia não encontrar no arquipélago Mardi? Ou trata-se, ao contrário, do naufrágio final, que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) em seu desespero demanda aos deuses? “Não se pode blasfemar e viver”, exclamou ele. No auge do consentimento, não seria Billy Budd a mais grave blasfêmia? Isso nós jamais saberemos, tampouco se Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) consentiu verdadeiramente nesse momento a uma ordem terrível ou se, na busca pelo espírito, deixou-se levar, como havia rogado, “para além dos recifes, pelos mares sem sol, adentrando a noite e a morte”. De todo modo, ao mensurar a longa angústia que atravessou sua vida e sua obra, ninguém deixaria de reconhecer a grandeza da sua resposta, tanto mais cindida quanto conquistada na luta contra si próprio.
Mas isso, que precisava ser assinalado, não deve enganar o leitor a respeito do gênio de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) e da soberania de sua arte. Nesta, rebentam a saúde, a força, um humor explosivo e o riso do homem. Não foi ele quem inaugurou a loja de sombrias alegorias que hoje encantam a triste Europa. Enquanto criador, ele é, por exemplo, um antípoda de Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) , cujos limites artísticos nos faz intuir. Embora insubstituível, a experiência espiritual em Kafka excede a expressão e a invenção, que permanecem monótonas. Em Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , a experiência espiritual está em equilíbrio com elas, e nelas cobra carne e sangue. Assim como os maiores artistas, Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) construiu seus símbolos a partir do concreto, e não da matéria dos sonhos. O criador de mitos só participa do gênio na medida em que os inscreve na espessura da realidade e não nas fugazes nuvens da imaginação. Em Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) , a realidade descrita é suscitada pelo símbolo, o fato deriva da imagem, enquanto, em Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , o símbolo emerge da realidade, a imagem nasce da percepção. É por isso que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) nunca se afasta da carne nem da natureza, obscurecidas na obra kafkiana. O lirismo de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , que nos faz pensar no de Shakespeare Shakespeare William Shakespeare (?-1616) , serve-se dos quatro elementos. Ele mistura a Bíblia ao mar, a música das ondas à das esferas, a poesia dos dias a uma grandeza atlântica. Ele é inesgotável, como esses ventos que atravessam os oceanos desertos por milhares de quilômetros e, ao chegar à costa, têm ainda força para arrasar povoados inteiros. Ele sopra, como a demência de Lear, por sobre os mares selvagens nos quais se ocultam Moby Dick e o espírito do mal. Quando a tempestade e a destruição total chegam ao fim, eis que uma estranha calma se eleva desde as águas primitivas, a piedade silenciosa que transfigura as tragédias. Sobre a tripulação emudecida, o corpo perfeito de Billy Budd gira docemente na extremidade de sua corda, na luz plúmbea e rósea do dia que se alarga.
T. E. Lawrence colocava Moby Dick ao lado de Os demônios, de Dostoiévski Dostoiévski Dostoevsky, Fyodor (1821-1881) , e de Guerra e paz, de Tolstói. A estes, acrescentaríamos sem hesitar Billy Budd, Mardi, Benito Cereno e alguns outros. Esses livros cheios de angústia, em que a criatura é subjugada mas a vida é exaltada a cada página, são fontes inesgotáveis de força e piedade. Encontramos neles a revolta e a resignação, o amor indomável e sem termo, a paixão e a beleza, a linguagem em seu mais alto grau, enfim, o gênio. “Para perpetuar o nome de um homem”, dizia Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , “é preciso gravá-lo numa pedra maciça e atirá-la ao fundo do mar: os abismos perduram mais do que as alturas.” Os abismos têm de fato a sua virtude dolorosa, assim como o silêncio injusto em que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) viveu e morreu, e o velho oceano que lavrou sem descanso. Dessas trevas incessantes ele deu à luz suas obras, rostos feitos de espuma e noite, esculpidos pelas águas, e cuja realeza misteriosa mal começa a refulgir sobre nós, já nos ajuda a sair sem esforço do nosso continente de sombras, para avançarmos enfim em direção ao mar, à luz e seu segredo.
(1952)


Moby Dick, ou A baleia / Herman Melville; tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza; prefácio de Albert Camus; posfácio de Bruno Gambarotto — São Paulo: Editora 34, 2019