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Les Cahiers d’Hermès II
Chastel: Pico della Mirandola e O HEPTAPLUS (1)
Rolland de Renéville (dir.). La Colombe, 1947
quinta-feira 10 de julho de 2025
Se Giovanni Pico della Mirandola Pico della Mirandola Jean Pic de la Mirandole (Giovanni Pico della Mirandola) (1463-1494) foi descrito por seus contemporâneos deslumbrados como o "príncipe dos filósofos", é porque trazia à especulação uma paixão excepcional, um entusiasmo provocado pela fascinação do mistério universal, cuja prova mais manifesta é talvez esse estranho Heptaplus, raramente estudado até agora, e que hoje está acessível numa edição prática e segura [1].
I - « O DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM » E A « APOLOGIA » (1486)
O único texto famoso de Pico, aquele que sempre se considerou, após Burckhardt [2], como "o manifesto da Renascença", na verdade permaneceu inédito até a publicação das obras completas em 1496. O "Discurso sobre a Dignidade do Homem", Oratio de hominis Dignitate, foi escrito num ímpeto extraordinário e com a mais viva ardência belicosa no final de 1486, na véspera do debate que oporia Pico aos teólogos romanos. Foi a eles que ele lançou um desafio: o "Discurso" era a prolusio, a introdução às novecentas teses onde reunira toda sua doutrina e das quais a Inquisição logo se ocuparia. "Esse jovem quer que um dia o queimem", declarou Inocêncio VIII. Condenado por uma bula de 4 de agosto, Pico, que fugia para os Países Baixos, foi preso e encarcerado em Vincennes. Ali permaneceu até 1488. Antes de deixar a Itália, porém, redigira em três semanas um novo texto, uma Apologia, dedicada a Lourenço de Médici, impressa em Nápoles, onde se justificava das treze teses principalmente incriminadas: introduziu ali uma grande parte da Oratio, a dedicada a polêmicas e discussões preliminares, e que começa com um elogio das disputas públicas - à maneira escolástica - onde o ardor de Pico bem se retrata:
"Assim como a ginástica aumenta as forças do corpo, esse tipo de palestra intelectual dá à alma um vigor e uma energia maiores. Em minha opinião, os poetas, ao celebrarem as armas de Palas, ou os hebreus, ao fazerem do ferro (barzel) o símbolo dos sábios, não quiseram senão significar a dignidade desses combates necessários à conquista do saber. E é sem dúvida por isso que os caldeus desejam no horóscopo do futuro filósofo o trígono de Marte e de Mercúrio: sem sua conjunção, e as lutas que ela acarreta, a filosofia não passaria de sonolência e dormitação." [3] Essa Palas revestida de ferro, essa Minerva guerreira do jovem conde, é a divindade que pintou Botticelli, a musa do humanismo florentino na véspera das catástrofes. Observou-se que a imagem de Pico se reencontra na figura de um jovem com espada, introduzido por Botticelli numa de suas últimas Adorações dos Magos [4].
A primeira parte da Oratio era uma exposição de conjunto dos novos recursos da filosofia, de todas as gnoses enfim reunidas, que justificavam a segurança e a combatividade de Pico. "Não são apenas os mistérios mosaicos e cristãos, mas também as antigas teologias que nos revelam a dignidade superior dessa pesquisa." [5] A fé de Moisés e de Cristo envolve num fundo de doutrina secreta a revelação do mistério divino que é também o mistério do homem: a espantosa concordância dessa doutrina com os ensinamentos tradicionais mas ocultos do mundo pagão permite ao mesmo tempo destacar seu alcance filosófico e confirmá-la pelo que deveria contradizê-la. Essas tradições ocultas do mundo pagão são, na Grécia, o ensino de Orfeu e o de Pitágoras recolhido por Platão, no Egito a ciência de Hermes Trismegisto transmitida no Pimandro e no Asclepios, no Irã o saber legado aos magos por Zoroastro, "não aquele que se crê, mas o filho de Oromases" (Ibid., p. 150), e do qual se tem o eco nos Oráculos Caldeus. Todos esses nomes venerados formam uma cadeia prodigiosa, todos esses textos se completam e se ligam, oferecendo, a quem sabe compreendê-los, as mesmas respostas aos mesmos problemas. Interpretando os livros da revelação propriamente dita com os dessas revelações laterais que também atravessaram os séculos, e cuja conjunção com a Escritura é garantia de verdade, dispõe-se de uma ciência perturbadora, que engaja a filosofia, esse conhecimento simultâneo do homem e do mundo, num plano maravilhosamente seguro. É essa nova apresentação dos problemas, esboçada na Oratio no final de 1486, que será retomada em 1489, após a libertação de Jean Pico e seu retorno a Florença.


Ver online : PIC DE LA MIRANDOLE ET L’ « HEPTAPLUS » (original na íntegra)
Les Cahiers d’Hermès II. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947.
[1] G. Pico della Mirandola, De Hominis dignitate, Heptaplus, de ente et uno, editados e traduzidos para o italiano por E. Garin, Florença, 1942
[2] T. Burckhardt, Die Kultur der Renaissance in Italien, 4ª parte: « A descoberta do homem e do mundo », in fine
[3] G. Pico, op. cit., Oratio, pp. 134 e 136
[4] J. Festugière, Studia Mirandolana, em Archives d’Histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age (ano 1932), Paris, 1933, pp. 143 seg.
[5] G. Pico, op. cit., Oratio, p. 122