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Les Cahiers d’Hermès II

Mérigot (Hermès) – Rabelais e a alquimia (5)

Léo Mérigot

quinta-feira 10 de julho de 2025

Em tudo isso, olhamos sobretudo, por assim dizer, de fora a obra rabelaisiana; é hora, para tentar concluir, de penetrá-la e nos entregarmos mais a ela. É o conjunto de uma Ilíada e de uma Odisseia burlescas, entre as quais as discussões filosóficas do Tiers Livre estabelecem um elo de aparência frágil. A inspiração, qualquer que seja a hipótese que se faça sobre o sentido oculto da obra, é popular, bastante conforme nisso ao "gênero" franciscano, e em todo caso nitidamente anticavaleiresca: as alusões ao santo Graal são, nesse ponto, irrefutáveis. O autor utiliza com bom senso o simbolismo; basta ler, nos capítulos ix e x de Gargantua, toda a passagem onde ele estabelece a significação da cor branca, após ter refutado vivamente os partidários de uma simbólica fantasiosa, para se persuadir de que Rabelais Rabelais François Rabelais (1483-1553) tomou aí o que M. Lucien Febvre chama muito justamente: "seu grande tom sério, que não engana." Mas seu simbolismo é muito particular, muito original e mesmo muitas vezes muito imprevisto. Ele utiliza principalmente os atos naturais; lembremo-nos do "beber, comer e dormir" que ocupou Gargantua desde os três até os cinco anos. Daí era inevitável que ele se encontrasse com o esoterismo báquico e o dos ratos, para os quais o vinho que embriaga representa o conhecimento transcendente (deve-se pensar aqui em "a África sempre traz algo de novo"?)

Mas como o caminho que leva a esse conhecimento inefável não está longe de ser sempre o mesmo, e atravessado das mesmas peripécias, nos diferentes modos tradicionais, é sempre possível dar dele, segundo esses modos, descrições paralelas, às vezes mesmo passar de um a outro. O empréstimo sucessivo de vocabulários diferentes não acarreta nenhuma contradição fundamental, frequentemente mesmo reforça a linha do pensamento. Os livros de Rabelais Rabelais François Rabelais (1483-1553) podem assim ser legitimamente considerados como uma descrição da obra hermética, e ele mesmo parece nos convidar a isso.

Na edição de 1542, o título do primeiro volume torna-se este: "A vida muito horrífica do Grande Gargantua, pai de Pantagruel, outrora composta por M. Alcofribas, abstracteur de quinte essence. Livro cheio de pantagruelismo." O título de abstracteur de quinte essence pareceria uma brincadeira. No entanto, dom Pernetty nos adverte que "a quintessência dos elementos, é o mercúrio dos Filósofos. Raymond Lulle e Jean de Roquetaillade... fizeram cada um seu tratado... cujo objeto é a composição do mercúrio hermético. Um e outro dão o troco aos ignorantes, falando dessa quintessência, como se ela se fizesse com o espírito de vinho vulgar, quando é preciso entendê-la do vinho filosófico." Não se está, portanto, tão longe do verdadeiro sentido do pantagruelismo. Quanto a esse termo de "horrífico", que Rabelais Rabelais François Rabelais (1483-1553) aprecia, nos parece mais fácil de entender se o traduzirmos em latim "equívoco" segundo o gosto manifestado frequentemente pelo autor. Aurifica significará: que transforma em metal solar, isto é, que realiza a obra. Esse livro se dirige, como a maioria dos seguintes, aos "bebedores muito ilustres e verólicos muito preciosos". O primeiro termo, substituído em outros prólogos por "gotosos", entende-se por si. Mas se os doentes são qualificados de muito preciosos, não pode ser, nos dizem a maioria dos comentadores, senão enquanto esfregados de mercúrio, segundo o uso terapêutico que já existia nessa época. Eles estavam, portanto, qualificados para encontrar a matéria-prima hermética, e era normal que o livro se lhes dirigisse.

Esse mercúrio dos sábios, indispensável à realização da obra, é personificado sob o nome de Panurge, com uma verve deslumbrante que mascara perfeitamente o artifício, mas deixa no entanto perceber o entrelaçamento de traços emprestados, como é lícito, tanto à tradição hermética quanto à mitologia. Que se relembre a inesquecível aparição de Panurge, no cap. IX de Pantagruel. "Belo de estatura e elegante em todos os lineamentos do corpo, mas lastimosamente ferido", ele fala com facilidade todas as línguas, até imaginárias. E, posteriormente, não descobre, com um espírito maravilhosamente inventivo, esse natural móvel, hábil, falador, frequentemente fanfarrão, que se atribui a Mercúrio? Aliás, deixemos dizer o próprio Rabelais Rabelais François Rabelais (1483-1553) , descrevendo o mercuriano em sua Pantagrueline Pronostication, e vejamos se não pensamos em Panurge: "A Mercúrio, como trapaceiros, enganadores, afinadores, triacleiros, ladrões, moleiros, bate-pavés, mestres em artes, decretistas, carregadores, gatunos, rimadores, saltimbancos, jogadores de passa-passe, encantadores, violeiros, obreiros, panelas, esfoladores de latim, fazedores de charadas, papeleiros, carteiros, bagatelas, espumadores do mar, farão semblante de serem mais alegres do que frequentemente serão, às vezes rirão quando não tiverem vontade, e serão muito sujeitos a fazer bancas rotas, se encontrarem mais dinheiro na bolsa do que lhes é necessário."

Se Panurge personifica o mercúrio, Pantagruel representa bastante bem o enxofre hermético. Fulcanelli, por uma etimologia grega equívoca e que não leva absolutamente a adesão, faz dele o conhecimento perfeito do caminho solar e a via universal. Basta a nosso propósito que Pantagruel, desde sua origem folclórica até o fim de sua odisseia rabelaisiana, seja aquele que altera, que dá perpetuamente a sede. Entendamos: a sede das verdades superiores. É bem aí a virtude do enxofre hermético, e isso pode desde então explicar "como Pantagruel encontrou Panurge, a quem amou toda a vida".

Por outro lado, o personagem de Panurge não tinha que figurar no Gargantua, pois o pai do enxofre filosófico dispensa a companhia do mercúrio. Basta-lhe pertencer a essa linhagem sobre-humana, caracterizada pela absorção das "grossas mesas", equivalente grotesco do fruto iniciático.

Mas é da ordem das coisas que o mercúrio experimente ligas com os metais vulgares. A questão do casamento de Panurge se coloca e vai dar margem a desenvolvimentos de uma riqueza imprevista. É preciso, segundo o conselho dos filósofos herméticos, « seguir a Natureza », « e assim sucessivamente até a hora do juízo final, quando Jesus Cristo devolver a Deus Pai seu reino pacífico, livre de todo perigo e contaminação de pecado. Pois então cessarão todas as gerações e corrupções, e os elementos estarão livres de suas transmutações contínuas, visto que a paz tão desejada será consumada e perfeita, e que todas as coisas serão reduzidas a seu fim e período » (Carta de Gargantua, in Pantagruel, cap. VIII).

Enquanto isso, Pantagruel e Panurge, embarcados na mesma nau, percorrem os mares e encontram muitas aventuras, das quais várias poderiam ser transpostas utilizando o hermetismo. Citamos apenas os carneiros de Panurge, a tempestade, o encontro da baleia, as setenta e oito lâminas retratando a vida de Aquiles.

Por fim, nossos viajantes se aproximam do objetivo. Com um cerimonial ritual, aliás minuciosamente descrito, os visitantes são introduzidos no Templo da Divina Garrafa. Lá podem ver uma « emblemática admirável » representando a conquista das Índias por Baco. É preciso lembrar que Baco não é senão a parte fixa da matéria, chamada ouro filosófico ou Apolo dos sábios? Mas « Raymond Lulle e Filalete nos dizem que não se pode ter sucesso na obra, se não percorrermos as Índias » [1].

Depois de contemplar uma lâmpada e uma fonte admiráveis, Panurge penetra sozinho numa capela redonda onde « sem janela nem outra abertura, era recebida a luz do sol tão facilmente e em tal abundância que a luz parecia nascer dentro, não vir de fora ». Apresentado à Divina Garrafa, recebe dela respeitosamente a palavra: Trinch, ou seja: bebe.

Explica-se ao recipiendário que « beber é o próprio do homem; não digo beber simplesmente e absolutamente, pois também os animais bebem: digo beber vinho bom e fresco. Notem, amigos, que de vinho divino se torna ». Esta equívoco final repete, em suma, o sentido do título de Gargantua, tal como cremos poder analisar.

No manuscrito do Quinto Livro, acrescentam-se algumas páginas que não são negligenciáveis. Bacbuc, dando licença aos viajantes, lhes diz: « Ide, amigos, sob a proteção desta esfera intelectual da qual em todo lugar está o centro e em nenhum lugar tem circunferência, que chamamos Deus: e, chegando a vosso mundo, deem testemunho de que sob a terra estão os grandes tesouros e coisas admiráveis. » Assim somos avisados de que a obra foi realizada, e acharemos natural ver Panurge e seus companheiros descerem ao porto « por um país cheio de todas as delícias, agradável, temperado mais que o Vale de Tempe na Tessália, salubre... irrigado e verdejante... fértil... mais que a ilha Hiperbórea no mar judaico..., perfumado, sereno e gracioso como a região de Turena ».

Sem dúvida seria necessário, para chegar a uma penetração completa da mensagem rabelesiana, confrontar esses elementos de uma interpretação hermética da obra com outras explicações esotéricas possíveis. Quisemo-nos limitar no presente estudo ao exame da tradição alquímica e hermética, cujos motivos surgem na obra como tantos pontos de referência, mas são apenas motivos entre outros, e não parecem, como dissemos, constituir o tema principal sobre o qual se desenvolve um mito tão carregado de sentido que não se poderia pretender, sem atentar contra sua riqueza, limitá-lo a um só de seus aspectos.


Ver online : Rabelais et l’alchimie (original na íntegra)


Les Cahiers d’Hermès II. Dir. Rolland de Renéville. La Colombe, 1947.


[1dom Pernety, Fables Egyptiennes, p. 277