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Castro Rocha – Filosofia de Machado de Assis?

sexta-feira 27 de junho de 2025

Contudo, como explicar a insistência na caracterização da “filosofia” de Machado de Assis Machado de Assis Machado de Assis (1839-1908) ? De fato, sua obra é atravessada por um conjunto facilmente discernível de obsessões, cuja recorrência favorece a tese, pois ajuda a criar a aparência de um sistema. Porém, tal abordagem parece ignorar que, muitas vezes, tanto necessidades internas à dinâmica do enredo quanto sutilezas relativas ao contraste entre personagens podem exigir a defesa de determinada posição ou mesmo supor a contradição aberta com princípios expostos no parágrafo anterior. Trata-se, nesse caso, de recurso propriamente ficcional e não filosófico. Nesse sentido, o leitor identificará motivos constantes nos contos deste volume.

Em “O sainete”, por exemplo, Machado alude aos paradoxos do desejo mimético: se me amam, perco o interesse; se não me querem, apaixono-me. Na trama, a viúva Seixas ignora com calculada crueldade Maciel, até que descobre repentinamente seu “amor” por ele ao inteirar-se da paixão de Fernanda pelo jovem médico. Autêntica personagem shakespeariana, a viúva encanta-se com o futuro marido literalmente através dos olhos de sua amiga. Na aguda intuição do narrador: “Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, — o feminino, pelo menos.” Fenômeno idêntico afetou a jovem e obstinada viúva Mariana, em “Três consequências”. Ela decidira manter-se “moralmente casada”, recusando com veemência a ideia de novas núpcias. Bastaram, porém, passeios regulares à Rua do Ouvidor e visitas eventuais aos prazeres proporcionados pela corte para mudar de conceito e, sobretudo, de estado civil — “a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a ideia matrimonial”. A razão do câmbio é tão singela quanto poderosa: como resistir depois de “ter vindo ao atrito da felicidade alheia”?

Em “Na arca —três capítulos (inéditos) do Gênesis” e “O segredo do bonzo (Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto)”, Machado desenvolve uma divertida paródia de estilos literários, muito similar aos futuros exercícios lúdicos de Jorge Luis Borges Borges Jorge Luis Borges (1899-1986) . Em “A igreja do diabo” a condição humana é a autêntica metamorfose ambulante, e a insatisfação fáustica é a única marca permanente. Por isso, Deus fulmina seu rival eterno com a constatação humilhante: “Tudo o que dizes ou digas está dito e rédito pelos moralistas do mundo. E assunto gasto·, e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires.” Essa advertência revela, pelo avesso, a poética machadiana de apropriação de tópicos, estilos e épocas. Em outras palavras, uma vez que o repertório próprio à condição humana é necessariamente limitado, o segredo é tratar os temas de sempre como se fossem originais — tão inéditos quanto uma cópia elaborada. Numa linha semelhante, “História comum” e “Apólogo” exercitam o modelo tradicional da fábula, assim como “Uma excursão maravilhosa” flerta com o gênero do conto fantástico. O ponto é relevante e merece ser assinalado: a literatura machadiana também penso através do jogo propriamente literário. Na ruminação da tradição literária, e de todos os seus gêneros, o conto revela-se o espaço perfeito para testar a mão, estimulando ousadias, muitas vezes ampliadas nos romances.

Em “Questão de maridos” e “Ideias de canário” o problema tratado é o caráter subjetivo da percepção da “realidade”. Entre aspas, por certo. A suspensão na crença em um possível núcleo duro da realidade constitui outro tema que atravessa a obra machadiana. A frase inicial de “Questão de maridos” sintetiza o enredo desse tipo de conto: “ — O subjetivo... O subjetivo... Tudo através do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.” O desfecho é ainda melhor, esclarecendo a natureza da diferença entre os maridos das sobrinhas do escolado professor: “Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...” A última frase do conto espelha o princípio, conferindo à subjetividade condição objetiva, por assim dizer. Portanto, a relatividade dos valores se impõe como o único valor absoluto — e, ainda assim, nem sempre ou nem tanto; afinal, esta é uma seleção detextos machadianos... Aliás, “Ideias de Canário” foi publicado originalmente sob o título “Que é o mundo?”. E, no fundo, o ponto de interrogação vale por todo um conto.

Não desejo encerrar esta breve introdução sem chamar a atenção do leitor para as inúmeras reflexões do relojoeiro Machado de Assis Machado de Assis Machado de Assis (1839-1908) acerca do tempo. O terreno é fértil e a colheita promissora. Já no primeiro conto aqui coligido, “Uma excursão milagrosa”, o narrador rememora: “Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.” Em “Eterno!”, a temporalidade assume de vez o papel de protagonista: “Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho.” A temática reaparece em “Papéis velhos” na lembrança da transitoriedade da condição humana e, especialmente, do caráter efêmero de suas convicções. Brotero é um político amargurado com a aguardada nomeação que não veio e a caroável viúva que se foi, justamente com o adversário contemplado com o cobiçado cargo. Dois sonhos perdidos simultaneamente — o golpe foi duro e Brotero redige uma carta ainda mais áspera, renunciando à cadeira de deputado. Porém, reconsidera rapidamente a decisão ao reler cartas sentimentais cometidas em sua juventude.· “Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler, mas supunha-se. A frase era esta: ‘Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...’ Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. ” O leitor dos contos aqui reunidos talvez se contente com o simples segundo...

Identificar a relevância de temas recorrentes nos contos machadianos e, ao mesmo tempo, estimular a descoberta de novos motivos são os objetivos principais deste volume. Hora, pois, de começar a dedicar seu tempo à obra machadiana — e, se não for pedir demais, um tempo generoso, a fim de ruminar os contos de Machado de Assis Machado de Assis Machado de Assis (1839-1908) .


Machado de Assis. João Cezar de Castro Rocha (org.). Rio de Janeiro: Record, 2008