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Arendt – grandes vilões e o mal

sexta-feira 27 de junho de 2025

Estaríamos numa situação um pouco melhor se nos permitíssemos voltar os olhos para a literatura, para Shakespeare Shakespeare William Shakespeare (?-1616) , Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) ou Dostoiévski Dostoiévski Dostoevsky, Fyodor (1821-1881) , nos quais encontramos os grandes vilões. Eles também podem ser incapazes de nos dizer alguma coisa específica sobre a natureza do mal, mas pelo menos não se furtam ao problema. Sabemos, e podemos quase ver, como o mal assombrava a mente deles constantemente, e como estavam bastante cientes das possibilidades da maldade humana. Ainda assim me pergunto se isso nos ajudaria muito. Nas profundezas dos maiores vilões — lago (e não Macbeth ou Ricardo III), Claggart em Billy Budd de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) , e por toda parte em Dostoiévski Dostoiévski Dostoevsky, Fyodor (1821-1881) — há sempre desespero e a inveja que acompanha o desespero. Que todo o mal radical vem das profundezas do desespero, é o que nos disse explicitamente Kierkegaard — e poderíamos ter aprendido o mesmo com o Satã de Milton e muitos outros. Soa tão convincente e plausível porque também nos disseram e ensinaram que o demônio não é só diabolos, o caluniador que presta falso testemunho, ou Satã, o adversário que tenta o homem, mas que ele também é Lúcifer, o portador da luz, um Anjo Caído. Em outras palavras, não precisamos de Hegel e do poder da negação para combinar o melhor e o pior. Sempre houve algum tipo de nobreza no malfeitor real, embora isso não exista no pequeno patife que mente e trapaceia no jogo. O importante sobre Claggart e lago é que eles agem por inveja daqueles que sabem que são melhores que eles próprios; o que é invejado é a simples nobreza que Deus deu ao Mouro, ou a pureza e a inocência ainda mais simples de um humilde companheiro de bordo de quem Claggart é claramente superior na escala social e profissional. Não duvido do insight psicológico de Kierkegarrd ou da literatura, ambos sob a mesma perspectiva. Mas não é óbvio que ainda exista, mesmo nessa inveja nascida do desespero, alguma nobreza que sabemos estar totalmente ausente nas coisas como elas verdadeiramente são? Segundo Nietzsche, o homem que se despreza respeita pelo menos aquele dentro de si que despreza! Mas o mal real é o que nos causa o horror inexprimível, quando só o que podemos dizer é: isso nunca deveria ter acontecido.


ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tr. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004