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Byung-Chul Han – Bartleby de Melville
sexta-feira 27 de junho de 2025
O relato de Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) ’s “Bartleby”, que foi objeto de diversas interpretações metafísicas ou teológicas [1], admite também uma leitura patológica. Essa “história provinda da Wall Street” descreve um universo de trabalho desumano, cujos habitantes, todos eles, são degradados a animal laborans. Apresenta-se detalhadamente a atmosfera sombria, hostil do escritório espessamente rodeado de arranha-céus. A menos de três metros ergue-se “alto o muro de tijolos, que se tornou preto por causa da idade e por estar sempre à sombra”. Ao ambiente de trabalho, que parece uma caixa de água, falta todo e qualquer traço de “vida” (deficiente in what landscape painters call “life”). A melancolia e o mau-humor, de que se fala constantemente no relato, forma a atmosfera fundamental da narrativa. Os auxiliares do advogado sofrem todos eles de distúrbios neuróticos. “Turkey”, por exemplo, é acometido por uma azáfama estranha, inflamada, confusa e sem rumo (a strange, inflamed, flurried, lighty recklessness of activity). O auxiliar “Nippers”, exageradamente ambicioso, é atormentado por um distúrbio intestinal psicossomático. Durante o trabalho ele range os dentes e está constantemente xingando. Com sua superatividade e excitação neurótica, eles formam um polo oposto a Bartleby, que se cala e fica como que petrificado. Bartleby desenvolve sintomas característicos da neurastenia. Vista dessa forma, a sua fórmula “I would prefer not to” não expressa nem a potência negativa do não-para nem o instinto inibitório que seria essencial para o “caráter espiritual” (Geistigkeit). Representa, ao contrário, a falta de iniciativa e a apatia pela qual Bartleby acaba inclusive sucumbindo.
A sociedade descrita por Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) é ainda uma sociedade disciplinar. Assim, todo relato está perpassado de muros e paredes, elementos de uma arquitetura da sociedade disciplinar. “Bartleby” é propriamente uma “história de Wall street”. Muro (wall) é uma da palavras mais empregadas. Muitas vezes fala-se de “dead wall”: The next day I noticed that Bartleby did nothing but stand at his window in his dead wall revery. O próprio Bartleby trabalha atrás de uma parede divisória e olha totalmente distraído para uma dead brick wall. O muro sempre vem associado com a morte [2]. Não por último o tema recorrente da prisão com fortes muralhas, que Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) chama de túmulos, se aplica também para a sociedade disciplinar. Ali, toda vida foi apagada. Também Bartleby instala-se nos tombs e morre em total isolamento e solidão. Ele representa ainda um sujeito de obediência. Ele ainda não desenvolve sintomas daquela depressão que é uma marca característica da sociedade do desempenho pós-moderna. Os sentimentos de insuficiência e de inferioridade ou de angústia frente ao fracasso ainda não fazem parte da economia dos sentimentos de Bartleby. Ele não conhece autoacusações e autoagressões constantes. Ele não se vê confrontado com aquele imperativo de ter de ser ele mesmo, que marca a sociedade de desempenho pós-moderna. Bartleby não fracassa no projeto de ser eu. O copiar monótono, a única atividade que ele tem de executar, não lhe deixa espaço livre para — onde fosse necessária ou possível — uma iniciativa própria. O que faz Bartleby adoecer é aquele excesso de positividade ou de possibilidade. Ele não suporta o peso do imperativo pós-moderno, de começar a abandonar o próprio eu. Copiar é precisamente a atividade que não admite qualquer iniciativa. Bartleby, que ainda vive na sociedade das convenções e instituições, não conhece aquele exagero de trabalho do eu, que leva a um cansaço do eu depressivo.
A interpretação ontoteológica de Bartleby feita por Agamben, que abstrai de todo e qualquer aspecto patológico, já fracassa nos dados da narrativa. Ela tampouco leva em consideração a mudança da estrutura psíquica da atualidade. Problematicamente, Agamben eleva Bartleby a uma figura metafísica de pura potência: “esta é a constelação filosófica a que pertence Bartleby, o escrivão. Enquanto escriturário que deixou de escrever, ele representa a forma extrema do nada, donde surge toda a criação, e ao mesmo tempo a exigência inexorável desse não, em sua potência pura e absoluta. O escrivão se tornou a escrivaninha, a partir daí ele nada mais é que sua própria folha em branco” [3]. De acordo com isso, Bartleby incorpora o “espírito”, o “ser de pura potência”, que indica a escrivaninha vazia, na qual ainda nada foi escrito [4].
Bartleby é uma figura sem referência para consigo mesmo ou algo outro. Ele não tem mundo, está ausente e apático. Se ele fosse uma “folha em branco”, seria porque está esvaziado de toda referência de mundo e de sentido. Já os olhos cansados e turvos (dim eyes) de Bartleby depõem contra a pureza da potência divina, que supostamente ele incorporaria. Pouco convincente é também a afirmação de Agamben de que, com sua recusa teimosa de escrever, Bartleby continua na potência perseverante no poder-escrever, que sua recusa radical ao querer anuncia uma potentia absoluta. A negação de Bartleby, segundo isso, seria anunciante, querigmática. Ele incorpora o puro “ser, sem qualquer predicado”. Agamben transforma Bartleby num mensageiro angélico, num anjo da anunciação, que no entanto “não afirma nada de nada” [5]. Mas Agamben ignora que Bartleby rejeita todo “curso do mensageiro” (errand). Assim, ele se nega teimosamente a ir ao correio: “Bartleby”, said I, “Ginger Nut is away; just step round to the Post Office, won’t you?” [...] “I would prefer not to”. Sabe-se que a história se encerra com o pós-relato estranho de que Bartleby teria trabalhado por um tempo como empregado em uma agência de cartas mortas, não entregues (Dead Letter Office"): “Dead letters! Does it not sound like dead men? Conceive a man by nature and misfortune prone to a pallid hopelessness, can any business seem more fitted to heighten it than that of continually handling these dead letters and assorting them for the flames?” Cheio de dúvidas, clama o advogado: “On errands of life, these letters speed to death”. A existência de Bartleby é um ser negativo para a morte. A interpretação ontoteológica de Agamben que eleva Bartleby a anunciador de uma segunda criação, de uma “des-criação”, contradiz essa negatividade; essa “des-criação” dissolve as barreiras entre aquilo que foi e aquilo que não foi, entre o ser e o nada.
É bem verdade que, em meio aos tombs, Melville Melville Melville, Herman (1819-1891) deixa surgir uma minúscula semente de vida, mas frente à massiva desesperança, a massiva presença da morte, a pequena mancha de relva (imprisoned turf) como que dá ênfase à negatividade do reino dos mortos. Também a palavra de consolo que o advogado dirige ao preso Bartleby soa totalmente inútil: “Nothing reproachful attaches to you by being here. And see, it is not so sad a place as one might think. Look, there is the sky and here is the grass”. A isso Bartleby responde não muito impressionado: “I know where I am”. Agamben aponta tanto o céu quanto a relva como sinais messiânicos. A pequena mancha de relva como único sinal de vida em meio ao reino dos mortos reforça ainda mais o vazio sem esperança: “On errands of life, these letters speed to death” é, quem sabe, a mensagem da narrativa. Todos os esforços em favor da vida levam à morte.
O artista faminto de Kafka Kafka Kafka, Franz (1883-1924) , ao contrário, não está carregado com essas ilusões. Sua morte, da qual ninguém se dá conta, dá um grande alívio aos envolvidos, um “desafogo inclusive para os que têm o sentido embotado”. Ora, sua morte abre espaço para a jovem pantera, que encarna a alegria despretensiosa da vida: “os guardas lhe traziam, sem refletir muito, o alimento que ela mais gostava; parecia-lhe nem sequer ter perdido a liberdade; esse corpo nobre, dotado de tudo que é necessário até quase para dilacerar, parecia trazer consigo ainda a liberdade. Quando mastigava, em parte alguma parecia-lhe que essa desaparecia; e a alegria de viver vinha com tamanho ardor de sua garganta, que não era fácil para os observadores suportá-la. Mas eles se superavam, se acotovelavam ao redor da jaula e de modo algum queriam sair dali”. Mas ao artista da fome, ao contrário, é só a negatividade da negação que lhe dá o sentimento da liberdade, que é tão ilusória como aquela liberdade que conserva a pantera “ao mastigar”. Também a Bartleby se associa o “Sr. Kotellet”, que aparenta ser um pedaço de carne. Ele elogia exageradamente o local, tentando convencer a Bartleby a comer: “Hope you find it pleasant here, sir; — spacious grounds — cool apartments, sir — hope you’ll stay with us some time — try to make it agreeable. May Mrs. Cutlets and I have the pleasure of your company to dinner, sir, in Mrs. Cutlets’ private room?” As palavras que o advogado dirige ao assombrado Mr. Kotellet, após a morte de Bartleby têm um tom quase irônico: “Eh! — He’s asleep, aint he?” “With kings and counsellors”, murmured I. A narrativa não se volta na direção de uma esperança messiânica. Com a morte de Bartleby, cai precisamente a “última coluna do templo decaído”. Ele sucumbe como um “naufrágio em meio ao Atlântico”. A fórmula de Bartleby “I would prefer not to” afasta-se de qualquer interpretação messiânico-cristológica. Essa “história provinda da Wall Street” não é uma história da “des-criação” [Ent-schopfung], mas uma história do esgotamento [Erschopfung]. Queixa e acusação, juntas, formam a invocação com a qual se encerra a narrativa: “Oh Bartleby!, Oh, humanidade!”


Byung-Chul Han. Sociedade do cansaço. Tr. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015
[1] Assim escreve Deleuze: “Mesmo enquanto catatônico e anoréxico, Bartleby não é o doente, mas o médico da América enferma, o homem da medicina, o novo Cristo ou irmão de todos nós” (Bartleby oder die Formel. Berlim, 1994, p. 60).
[2] Na tradução vernácula “tabique” (Brandmauer = corta-fogo) ou “parede cega de tijolos” desaparece totalmente o aspecto da morte.
[3] AGAMBEN. Bartleby oder die Kontingenz. Berlim, 1998, p. 33.
[4] Ibid., p. 13.
[5] Ibid., p. 40.