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Tempo e Relato I
Ricoeur (TR1) – Aporia do ser e do não-ser do tempo
As aporias da experiência do tempo
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A noção de distentio animi, conjugada à de intentio, emerge de maneira paulatina e laboriosa a partir da aporia fundamental que ocupa o espírito de Agostinho, a saber, a mensuração do tempo , a qual se inscreve num círculo aporético ainda mais originário referente ao ser ou não-ser do tempo, visto que somente aquilo que possui ser é passível de medida. A fenomenologia do tempo origina-se, portanto, no interior de uma interrogação ontológica explícita sobre a natureza do tempo (quid est enim tempus?), desencadeando, desde a proposição da pergunta, todos os embaraços clássicos acerca da existência e inexistência temporal, onde a argumentação cética inclina-se para o não-ser — dado que o futuro ainda não é, o passado já não é e o presente não permanece —, enquanto a confiança no uso cotidiano da linguagem nos constrange a afirmar que o tempo é, sustentando provisoriamente a resistência à tese do não-ser através da capacidade de falarmos sensatamente sobre tempos futuros, passados e presentes.
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A despeito de falarmos do tempo com sentido e mediante termos positivos, a incapacidade de explicar o modo dessa existência (como) surge precisamente dessa certeza linguística, revelando que o paradoxo ontológico não opõe apenas a linguagem ao argumento cético, mas a linguagem a si mesma, evidenciando um hiato entre a afirmação da existência e a sua explicação. O paradoxo estabelece-se na contradição entre a positividade dos verbos que denotam existência ou ocorrência e a negatividade dos advérbios que caracterizam as dimensões temporais, circunscrevendo a questão fundamental sobre como o tempo pode ser, se suas partes constituintes — passado, futuro e presente — carecem de estabilidade ontológica ou permanência.
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Sobre o paradoxo inicial do ser enxerta-se o paradoxo central da mensuração, do qual derivará o tema da distensão, questionando como é possível medir aquilo que não é, muito embora a linguagem e a prática atestem que medimos intervalos e qualificamos tempos como longos ou curtos. Agostinho antecipa a resolução final ao sugerir que é do futuro que se diz que diminui e do passado que se diz que aumenta, mas inicialmente parece renunciar a essa certeza prática para investigar a natureza do presente, uma vez que a solução baseada na oposição entre presente, passado e futuro deve colapsar antes que a ideia de um triplo presente e a interiorização da medida na alma possam emergir.
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O refinamento da noção de presente conduz o paradoxo ao seu paroxismo, alinhando-se ao argumento cético que demonstra a impossibilidade de atribuir extensão ou longevidade ao tempo presente, visto que qualquer período temporal, seja um século, um ano ou um dia, é divisível até se atingir um elemento de tempo indivisível em parcelas de instantes. Conclui-se, assim, que o presente, se concebido rigorosamente como o instante que não pode ser dividido, carece de espaço (spatium) e não possui extensão, o que leva à conclusão dramática de que o tempo presente clama por não poder ser longo.
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Diante da desconstrução cética da extensão do presente, o que resiste é a experiência articulada pela linguagem e iluminada pela inteligência, manifesta nas atividades sensoriais e pragmáticas de perceber, comparar e medir intervalos de tempo (sentimus, comparamus, metimur). A tentativa de fundar a medida na noção de transição ou passagem — medindo-se o tempo enquanto ele passa (praetereuntia) — constitui uma antecipação da solução via distentio, mas apresenta-se inicialmente como um impasse provisório, pois, para compreender como medimos o futuro (como espera) e o passado (como memória ), é necessário primeiramente reivindicar o ser do passado e do futuro, que fora negado precocemente, num sentido que a investigação ainda precisa articular.
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A validação ontológica do passado e do futuro apoia-se novamente naquilo que dizemos e fazemos, especificamente no ato de narrar coisas verdadeiras e predizer eventos futuros, o que implica que tais tempos existem de alguma forma (sunt ergo). Conforme observado em referência ao De Trinitate e ao comentário de Meijering, há um duplo testemunho da história e da previsão que permite discernir pelo espírito coisas passadas e futuras; contudo, essa afirmação não é um mero retorno à tese ingênua inicial, mas opera um deslizamento crucial onde futuro e passado figuram agora como adjetivos (futura et praeterita), indicando qualidades temporais que podem existir no presente sem que os eventos em si existam materialmente.
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A transição da interrogação sobre o como para a interrogação sobre o onde (ubi) marca um passo decisivo e audacioso, buscando um sítio para as coisas futuras e passadas enquanto narradas e preditas, o que conduz à localização das qualidades temporais "na" alma. A resposta fundamental é que, onde quer que estejam, as coisas passadas e futuras não estão lá senão como presentes (praesentia), o que reformula a questão da medida ao sugerir que lidamos com um presente múltiplo e capaz de acolher uma complexidade interna, diferentemente do presente pontual e sem extensão anteriormente refutado.
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A elucidação da presença do passado e do futuro dá-se através das noções de memória e espera, onde recordar é possuir uma imagem -vestígio deixada pelos eventos no espírito, e prever é possuir uma pré-percepção baseada em signos e causas presentes que permitem anunciar o futuro. Assim, a espera é análoga à memória, consistindo numa imagem que já existe e precede o evento que ainda não é (nondum), funcionando como signo e causa das coisas futuras que são antecipadas, de modo que a solução para a aporia do ser e do não-ser do tempo reside na inclusão da memória e da espera num presente alargado e dialético.
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Agostinho formula a célebre tese dos três tempos — o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro —, afirmando que estes três modos de tempo existem na alma (in animo) e em nenhum outro lugar (alibi). Embora reconheça que essa terminologia se afasta do uso comum (impróprio), aceita-se a linguagem ordinária desde que se compreenda a retificação rigorosa de que o relato do passado é a memória, o presente do presente é a visão ou atenção (contuitus/attentio) e o presente do futuro é a espera, constituindo um núcleo fenomenológico que encerra a disputa sobre a existência dos tempos.
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A solução apresentada, embora elegante, revela-se laboriosa e custosa, pois atribui à memória e à expectativa o estranho poder de referenciar o que não está presente através de imagens e signos que estão presentes, mantendo a ambiguidade sobre como vestígios atuais podem ser "sobre" o passado e como sinais atuais podem ser "já" o futuro. Além disso, a linguagem quase espacial utilizada para situar os tempos "na" alma e "na" memória suscita a dúvida se a espacialização é fruto da pergunta sobre o "onde" ou da própria natureza das imagens inscritas na alma, permanecendo a questão da medida do tempo pendente até que se reconheça na triplicidade do presente a falha que permite à alma possuir uma extensão (distentio) distinta daquela negada ao presente pontual, libertando a temporalidade de qualquer suporte cosmológico ou físico.
Ver online : Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Temps et récit I. Paris: Éd. du Seuil, 1983.