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The Origins of Responsibility
Raffoul (2010:233-234) – sentido do ser e verdade do seer
De-subjectivizing Ethics
Como Heidegger explica a mudança de “sentido do ser ” para “verdade do seer” em seu pensamento? Em termos de uma virada na questão do ser , uma virada que teria de se separar de um certo subjetivismo e antropocentrismo que ainda ameaçam afetar as análises de Ser e Tempo . Como ele diz: “Em Ser e Tempo, Da-sein ainda se encontra à sombra do ’antropológico’, do ’subjetivista’ e do ’individualista’, etc.” (GA65EM, 208). A posição inicial da questão do ser em Ser e Tempo em termos de “sentido do ser” e “compreensão do ser” sofre, diz-nos Heidegger no §138 de Contribuições [GA65], de uma dependência excessiva da linguagem da subjetividade (GA65EM, 182-183). Nesse sentido, ele se expôs a uma série de mal -entendidos, todos compartilhando o mesmo subjetivismo: A “compreensão” é tomada em termos das “experiências vividas internas” de um sujeito; aquele que compreende é tomado, por sua vez, como “um eu-sujeito”; a acessibilidade do ser em uma compreensão é tomada como uma indicação da “dependência” do ser em relação a um sujeito e, portanto, como um sinal de idealismo, etc. É a partir dessa perspectiva que devemos entender a mudança de Heidegger da expressão “sentido do ser” para “verdade do seer”. Em 1969, Heidegger retornou a essa questão para esclarecê-la. Em contraste com a questão metafísica relativa ao ser do ente, Heidegger reconhece que tentou, em Ser e Tempo, colocar a questão relativa ao “ser” do “é” em termos do sentido do ser. Pois, precisamente, a metafísica não pergunta sobre o sentido do ser, mas apenas sobre o ser dos entes (ele próprio determinado onticamente como fundamento). A expressão “sentido do ser” deve, portanto, ser tomada como uma primeira tentativa de sair da fusão metafísica do ser com entidade (Seiendheit):
De acordo com a tradição, a “questão do ser” significa a questão relativa ao ser dos entes, em outras palavras: a questão relativa à entidade [beingness] dos entes, na qual um ser é determinado em relação ao seu sendo-um-ente [Seiendsein]. Essa questão é a questão da metafísica [. . .] Com Ser e Tempo, entretanto, a “questão do ser” recebe um significado totalmente diferente. Aqui ela diz respeito à questão do ser como ser. Torna-se temática em Ser e Tempo sob o nome de “questão do sentido [Sinn] do ser”. (FourS, 46)
Agora, o “significado do ser” é mais bem esclarecido em Ser e Tempo em termos do projeto ou da projeção desdobrada pela compreensão do ser: “Aqui o ‘sentido’ deve ser entendido a partir do ’projeto’, que é explicado pela ’compreensão’” (FourS, 40). Nesse ponto, Heidegger observa que essa formulação é inadequada porque corre o risco de reforçar o estabelecimento da subjetividade: “O que é inadequado nessa formulação da questão é que torna muito possível entender o ‘projeto’ como um desempenho humano. Consequentemente, o projeto é então tomado apenas como uma estrutura da subjetividade — que é como Sartre o toma, baseando-se em Descartes” (FourS, 41). Lembramos aqui a conhecida passagem dos volumes de Nietzsche [GA6] em que Heidegger, discutindo o caráter inacabado ou interrompido de Ser e Tempo, explicou que “a razão para a interrupção é que a tentativa e o caminho que escolheu enfrentam o perigo de se tornarem, sem querer, meramente mais um enraizamento da subjetividade”. [1] Assim, Heidegger se engaja em uma virada que dessubjetivaria o pensamento. Dá exemplos dessa “virada no pensamento” quando, por exemplo, no §41 das Contribuições, ele explica que a palavra “decisão” pode ser tomada primeiramente como um ato humano antropológico, “até que subitamente significa a oscilação essencial do ser” (GA65EM, 58). Pensar “a partir do Ereignis” envolverá, portanto, que “o homem [seja] colocado de volta no domínio essencial do ser-aí e cortado dos grilhões da ‘antropologia’” (GA65EM, 58). Em outras palavras, na tentativa de pensar a verdade do seer-aí, o que está em questão é a “transformação do próprio homem” (GA65EM, 58). O Dasein humano é aqui dessubjetivado, e o domínio da ética terá de ser separado da predominância da subjetividade.
Nas Contribuições, Heidegger é muito cuidadoso ao enfatizar que “a projeção-abertura da essenciação [Wesung] do seer é meramente uma resposta ao chamado” (GA65, 56; GA65EM, 39), e vemos aqui como o reino da ética — da ética originária — está localizado no espaço de um certo chamado, um chamado ao qual sempre corresponde uma resposta (e voltaremos a isso). Foi assim, para evitar a subjetivação da questão do ser, que a expressão “verdade do seer” foi adotada. “Para combater essa concepção errônea e manter o significado de ‘projeto’ como ele deve ser tomado (o da revelação inicial), o pensamento após Ser e Tempo substituiu a expressão ‘sentido do ser’ por ‘verdade do seer’” (FourS, 41). Heidegger é então capaz de concluir que,
O pensamento que procede de Ser e Tempo, na medida em que abandona a palavra “sentido do ser” em favor de “verdade do seer”, enfatiza, a partir de então, a abertura do ser em si, em vez da abertura do Dasein em relação a essa abertura do ser. Isso significa “a virada”, na qual o pensamento sempre se volta mais decisivamente para o ser como ser. (FS, 41)
Ver online : François Raffoul
RAFFOUL, François. The Origins of Responsibility. Bloomington: Indiana University Press, 2010
FourS: Martin Heidegger, Four Seminars, trans. Andrew Mitchell and François Raffoul (Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2003)
[1] Martin Heidegger, Nietzsche, ed. David Farrell Krell (San Francisco: Harper & Row, 1991), vol. 4, 141.