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Esoterismo de Shakespeare
Paul Arnold – « O Conto de Inverno » ou A Grande Obra
Capítulo VI
The Historie of Dorastus and Faunia, um conto de Robert Greene, fornece verossimilmente a Shakespeare o que se considera como o essencial de O Conto de Inverno. A maioria dos elementos da "romance" shakespeariana se encontra ali em seu lugar. Um rei (Pandosto em Greene, Leontes em Shakespeare) sucumbe a um ciúme sem fundamento ao ver a acolhida cordial que sua mulher (Bellaria aqui, Hermione ali) prepara a um rei amigo (Egisthus aqui, Polixenes ali). Um servo (Camillo em Shakespeare), incumbido pelo ciumento de envenenar o amigo, revela a este a ordem injusta que recebeu. E ele foge com o hóspede real que regressa precipitadamente à sua pátria. O rei ciumento acusa publicamente a rainha de adultério e a faz guardar à vista durante sua nova gravidez. Acreditando que a criança é adúltera, ele a faz ser apreendida logo ao nascer e ordena que seja exposta, enquanto se consulta o oráculo de Delfos, sobre a culpa da rainha.
Aqui se notam as primeiras variações entre os dois argumentos: no conto de Greene, a rainha reclama ela mesma o oráculo, o qual, nas duas versões, proclamará sua inocência, acrescentando que o rei morrerá sem herdeiro se a criança exposta não for reencontrada. Em Shakespeare, é o rei quem toma a iniciativa dessa consulta tradicional. No conto a resposta do oráculo desencadeia o remorso do monarca; anuncia-se logo a morte do primeiro filho e o falecimento da rainha, desesperada. Em Shakespeare, ao contrário, o rei Leontes renega o oráculo que ele mesmo consultara; e logo sobrevém o castigo por essa blasfêmia: anuncia-se a morte de seu filho Mamilius, e a rainha desmaia, passa por morta, é levada para a casa de sua acompanhante, Paulina, que a esconderá durante vinte anos. Essa variante, ver-se-á, modifica de modo tão total o sentido da peça que desta vez ainda, ela não tem de comum com sua fonte senão o quadro exterior.
Na sequência, em Greene, a criança, envolta em suas vestes reais, é exposta num barquinho que uma tempestade empurrará até as margens de Egisthus. Mais verossímil, Shakespeare imagina que Antigonus, marido de Paulina, embarca com a criança, sofre uma tempestade que fará afundar o barco, atinge as margens de Polixenes, expõe a criança e, por salário de sua crueldade, é devorado por um urso. Nas duas narrativas, a criança é recolhida por um pastor. Greene a batiza Faunia, Shakespeare, Perdita. A criança crescerá, tornar-se-á uma jovem de maravilhosa beleza de quem se apaixonará o filho do rei Egisthus-Polixenes, (Dorastus aqui, Florizel ali). Os dois jovens trocam sua fé — em Shakespeare na presença mesmo do rei disfarçado e hostil, durante uma festa da tosquia que nos fornecerá mais de uma chave. Eles fogem, aportam no país de Pandosto-Leontes. A partir daí, Shakespeare condensa os episódios que Greene acumula a bel-prazer, e ele precipita o desfecho. Greene imagina que Dorastus receia a fúria de Pandosto e se apronta para fugir, mas o rei apaixona-se por Faunia de quem ignora o nascimento, e ele lança Dorastus na prisão. A chegada de Egisthus esclarecerá tudo, mas Pandosto, sempre desesperado pela morte de sua mulher, suicida-se.
Shakespeare modificou completamente o desfecho. Paulina, que segue sua ideia, refresca a lembrança de Hermione e faz jurar a Leontes arrependido que ele não se casará nunca de novo se não for com uma mulher toda semelhante a Hermione. Introduz-se então Florizel (que Leontes reconhece logo, tanto ele se assemelha a seu pai) e Perdita por quem ele sente uma viva simpatia: a jovem assemelha-se de tal modo a Hermione que lhe parece rever aquela que ele crê morta. Sobrevém Polixenes que perseguia seu filho; o reconhecimento tem lugar diante dos dois reis: Perdita é reencontrada. Paulina conduz a sua casa Leontes e a princesa e ela lhes mostra uma pretensa estátua de Hermione que ela teria mandado executar em segredo. E eis o milagre da pseudorressurreição de Hermione de quem Leontes arrependido proclama a pureza. O Tempo « que agrada a certos, põe à prova todo o mundo, ao mesmo tempo alegria e terror dos bons e dos maus, que cria e desvela o erro » (IV, Pról. 1-3), o Tempo concluiu sua obra.
Por que Shakespeare chamou esta peça « O Conto de Inverno »? [1]. A resposta está em parte inscrita num diálogo entre Hermione e seu filho Mamilius (II, Cena 1), logo antes da irrupção de Leontes vindo prender a rainha. Hermione pediu a suas mulheres que afastassem dela Mamilius que a fatiga, pois ela está prestes a dar à luz. Ele se distrai um instante como pode com as acompanhantes que o aborrecem e que ele tratará de « grilos », e ao primeiro sinal ele volta para junto de sua mãe. Ela o convida a sentar-se e a lhe contar um conto. « Deve ser alegre ou triste? » pergunta a criança. « Tão alegre como quiserdes » — « Um conto triste, retoma Mamilius, convém mais para o inverno. Conheço um sobre espíritos e duendes... Era uma vez um homem que habitava perto de um cemitério… » (II, Cena 1, 20-28). Não saberemos mais.
Shakespeare não tem o hábito de perder seu tempo com episódios fúteis para criar uma ambiência. Este tem de modo tanto mais seguro uma relação com o sentido profundo da peça que forneceu o título. Ensina-nos em primeiro lugar que a ação se situa no inverno enquanto se acumulam os acontecimentos trágicos: acusações infames, mortes reais, mortes supostas, exposição de criança, remorsos devorantes. E assim por diante, até o meio da peça, no início do quarto ato que marca ao mesmo tempo uma reviravolta do tom, da ambiência e do destino, e que se situa no meio do verão, vinte anos mais tarde: é numa radiosa jornada estival de alegria e de dança que se inicia a história dos amores de Perdita e de Florizel. Este traz o perfume das flores e da primavera até em seu nome, ver-se-á logo por quê. Desde então, todos os acordes trágicos são imediatamente resolvidos: o Tempo, que introduz essa segunda parte na qualidade de Prólogo, nos adverte: as tragédias são apenas aparência, erros de juízo. Desde então, essa romance não é mais um lúgubre conto de inverno, é um delicioso sonho de primavera ou de verão.
Mas, desconfia-se, ideias tão gerais não bastavam de modo algum a Shakespeare. De fato, a definição do tempo « que faz e desvela o erro » é um empréstimo aos cabalistas. Encontramo-la em Tritêmio, em Paracelso, em Agrippa. A fórmula mais usual é a que reproduz John Dee: Veritas Temporis filia, a Verdade é filha do Tempo. E Francis Bacon inscreve no cabeçalho de sua Nova Atlântida a fórmula de Shakespeare, conservando-lhe o aspecto esotérico: Tempore patet occulta veritas « o Tempo desvela a verdade oculta » na « casca » da vida manifestada; por outras palavras, o curso do destino far-nos-á pouco a pouco decifrar a transcendência do universo.
A alusão vai portanto infinitamente mais longe do que pensam os comentadores de Shakespeare, se eles não buscam aqui senão considerações banais sobre a « verdade » histórica reestabelecida pelo curso do tempo.
Examinemos mais de perto as duas cenas que a análise das fontes nos permitiu isolar como próprias a Shakespeare. E antes de tudo, aquela que se encontra colocada no centro da peça, no instante em que Perdita aparece como jovem aos lados de Florizel. Ela se desenrola, acabo de dizê-lo, na festa da tosquia dada pelo velho pastor e por Perdita para que « prospere o bom rebanho » (good flock shall prosper) (IV, Cena 3, 69), um pouco como, na Tempestade, os esponsais de Miranda e de Fernando suscitam uma festa da colheita e dos ceifeiros. Logo Florizel compara Perdita a Flora de quem ela traz quase as vestes: « Vossos trajes inabituais tornam vivo — cada um de vossos encantos; não é uma pastora — é Flora aparecendo diante de Abril. Vossa festa da tosquia — é como uma reunião de pequenos deuses, e vós sois sua rainha » (IV, Cena 3, 1-5). — « Vós me haveis adornado como uma deusa », lhe responde Perdita, e ela lhe reprocha ter ele mesmo vestido (ela ignora sua qualidade de príncipe, como ele ignora que ela é filha de rei) as roupas de um humilde pastor. E Florizel: « Os deuses mesmos, abaixando sua deidade até o amor tomaram por vezes formas de bestas… Apolo dourado, o deus vestido de fogo, tomou a de um humilde pastor — como eu tenho a aparência. Suas metamorfoses, — eles não as cumpriram nunca por uma beleza mais rara que a vossa — nem por um propósito tão casto, no tempo em que meus desejos — não precedem minha honra e que minha volúpia (lust) — não arde mais que minha fé » (Ibid., 26-35). E com a insistência que, nele, anuncia sempre o tema central, Shakespeare empresta a Perdita um movimento de temor, quando, diante de seu pai disfarçado, Florizel exalta « demasiado generosamente » sua beleza: « Se vossa juventude — e vosso sangue leal que transparece bonitamente através dela — não vos proclamassem francamente um pastor sem mácula — eu temeria com sabedoria que me cortejásseis com más intenções ». Ao que Florizel responde resolutamente: « Penso que tendes tão pouca razão para experimentar temor — quanto eu desejo de o suscitar em vós » (Ibid., 147-153).
É por isso que o casamento só pode, na honra e na castidade, reunir esses dois seres. Uma vez que Florizel não poderá opor-se à vontade de seu pai que desaprova o que ele crê ser uma mesaliansa, é preciso, assegura Perdita, « ou que renuncieis a vosso projeto (isto é, a seu amor) ou que eu renuncie à vida ». A volúpia — e bem se entende, o interesse — não deve ter nenhuma parte na resolução desse casal. Esse amor é um amor espiritual, absolutamente puro de intenções carnais. Só pode vir, replica Florizel, a ruptura com meu pai « no dia da celebração desse casamento — que virá como no-lo juramos ».
Encontramos aqui uma concepção cara a Shakespeare: o casamento celebrado longe da ardor da carne não é uma ofensa à castidade. É uma outra fórmula dessa renúncia à carne à qual Shakespeare obriga Bassanio escolhendo o cofrinho de chumbo. Mas é bem mais ainda.
Pois quando os convidados sobrevêm — Polixenes e Camillo disfarçados em pastores —, quando seu pai adotivo lhe reprocha não fazer seu ofício de mestra de casa, de não preparar boa comida aos recém-chegados, Perdita se limita a lhes oferecer flores frescolhidas. E esse gesto fornece o tema de um diálogo recheado de símbolos e de emblemática das flores. Eis a passagem em tradução literal:
PERDITA a PolixenesPara vós, eis alecrim e arruda; estes conservamfrescor e perfume durante todo o inverno;que a graça e a lembrança sejam vossa parte,e sede bem-vindo a nossa festa da tosquia.POLIXENESPastora,— como sois bela! — vós combinais bem a idadeàs flores do inverno.PERDITASenhor, o ano envelhecendo,não que o verão já esteja morto nem que tenha nascidoo inverno trêmulo, as mais belas flores da estaçãosão nossos cravos sanguíneos e as goivos-rajadas (barioladas).Alguns as chamam os bastardos da natureza: daquelasnosso jardim rústico é desprovido, e não me importode buscar delas mudas.POLIXENESPor que então, doce jovem,as negligis?PERDITAPorque ouvi dizerque há artificialidade (arte) que participa da naturezapara produzir seu bariolado. (Ibid., 74-88.)
A chave dessa pequena charada literária encontra-se numa passagem já citada do poema de Maier sobre a ressurreição da Fênix. Falando do sangue de Cristo que os sábios versados na « arte » (alquimia) fazem correr simbolicamente nos « metais » (ou qualidades do espírito) para os regenerar e tornar imortais (redenção). Maier explica: « É esse sangue que, correndo do pé de Vênus em seus jardins plantados de roseiras, avermelha as rosas que antes eram brancas ». Em nossa cena como em numerosos outros lugares de Shakespeare e de todos os elisabetanos, opõe-se o símbolo vermelho-carne-volúpia ao símbolo branco-inocência-castidade. Polixenes que fazia semblante de não compreender ou que talvez de fato não compreende o sentido esotérico das palavras de Perdita, retoma:
POLIXENESAdmitamos;contudo a natureza não é melhorada por nenhum meiosenão pela natureza que cria esse meio: assim, acima dessa artificialidadeque, dizes, acrescenta à natureza, há uma artificialidade que a natureza cria.O mesmo para a enxertia que enobrece uma planta selvagem. É aí uma arteque emenda a natureza ou ao menos a muda, mas essa arte é ela mesma natureza.PERDITAÉ verdade.POLIXENESEntão enriquecei vosso jardim de cravose não os chameis bastardos.PERDITANão enfiareio plantador na terra para ali plantar uma única muda;não mais que desejaria se estivesse pintadaque esse jovem dissesse « está bem » e que me desejassepor causa disso. (Ibid. 88-103.)
Desta vez, Perdita retomou mais claramente a alusão alquímica de há pouco: tudo o que é oriundo de Vênus, tudo o que é volúpia e obra de volúpia — planta-símbolo ou desejo humano — deve ser rejeitado para que reinem a inocência e a castidade e não a artificialidade, a pintura.
E terminando esse debate, ela se dirige a Camillo, o homem na força da idade:
Eis flores para vós,quente alfazema, menta, segurelha, manjerona;o malmequer que adormece com o sole com ele se levanta chorando: são estas floresdo meio do verão, e penso que se dãoaos homens de meia-idade. Sois bem-vindo.CAMILLOSe eu fosse uma ovelha de vosso rebanhodeixaria de pastar e passaria minha vida a vos mirar.PERDITAAi, estaríeis logo tão magro que as brisas de janeirosoprariam através de vós. (Ibid., 103-112.)
E enfim a oferenda a Florizel, no centro da cena:
Agora, belo amigo,eu desejaria ter flores da primavera que convêma vossa hora do dia (Às jovens) e à vossa,vós que levais ainda em vossos ramos virginaiso botão do estado de jovem donzela. Ó Proserpina!que não tenha eu agora as flores que em teu pavordiante do carro de Dis (Plutão) deixaste cair: (Ibid., 112-118).
Segue uma enumeração de flores, essencialmente virginais:
narcisos que se desabrocham antes que ouse vir a andorinhae que fascinam por sua beleza os ventos de março;
isto é, de antes da estação dos amores:
sombrias violetas mas mais doces que as pálpebras de Junoou o hálito de Citeréia
Juno, deusa da virgindade, violetas símbolo da pudicícia:
pálidas prímulasque morrem não casadas, antes que elas possam miraro brilhante Febo em sua força, um malmuito frequente nas jovens;
Não se poderia mais belamente exprimir a ideia de virgindade e o temor da carne ardente (Febo em sua força):
o cuco ousadoe a íris imperial e toda espécie de gladíolosentre os quais o lírio.
emblema tradicional da pureza.
Oh, como elas me faltampara vos fazer grinaldas e para dela cobrir todo inteiro,ele, meu doce amigo.FLORIZELQuê? como um cadáver?PERDITANão, como um tapete de flores onde o amor se estenda e brinque;não como um cadáver, ou senão, para ser enterradomas vivo e em meus braços...
Ora, tomai essas flores, prossegue ela, pois me parece que estou a tagarelar. Não, responde Florizel:
O que fazeismelhora o que está feito. Quando falais, doce,eu desejaria que falásseis sem cessar, quando cantaiseu desejaria que cantásseis comprando e vendendo,fazendo a esmola e rezando e mesmo dando vossas ordens.Quando dançais, eu desejaria que fôsseisuma onda sobre o mar, para que não pudésseis nuncafazer nada mais que isso, balançar-vos sempre,sempre assim, sem nenhuma outra função; cada um de vossos atostão único em cada coisacoroa o que fazeis no instantede tal modo que todos os vossos gestos são os de uma rainha. (Ibid., 118-146.)
Não se poderia melhor definir uma ninfa que é todo ritmo e som puro, toda castidade e perfeição sobre-humana à uníssono com todos os emblemas da pureza e da beleza virginal. Não ter outra função que balançar-se ritmicamente: Proserpina ou a alma antes da queda, Psiquê no jardim florido de Cupido antes da tentação da lâmpada e do punhal.
Por uma sorte fortuita rara que escapou à sagacidade dos comentadores e historiadores da literatura, possuímos a exata réplica mítica de nossa cena. Thomas Heywood, de fato, descreve na mesma época (1610, publicado em 1613; O Conto de Inverno é de 1610-1611) em sua vasta composição dramática A Idade de Prata, o rapto de Proserpina ao qual ele restitui o sentido esotérico que esse mito possuía em Eleusis e nos discípulos de Pitágoras. Era mesmo, sabe-se, o mito por excelência dos destinos da alma ou essência pura arrebatada pelo amor terrestre depois remontando ao céu para se reencarnar após um ciclo [2]. Eis como Heywood imagina a cena, exato pendant da de Shakespeare:
Ceres, rainha da fertilidade, irmã da terra e mãe da Lua-Proserpina a casta, entra em cena com esta em companhia de jovens pastores e pastoras que a festejam. Ela irá com eles fazer um sacrifício no templo. Mas Proserpina demora-se no prado para « se trançar toda sorte de grinaldas de todas as flores mais escolhidas que restam nesse prado ». Ela quer « se cobrir a testa e guardar assim (seu) rosto das queimaduras de Febo ». Reencontramos até as palavras empregadas por Shakespeare. É a bela Flora que lhe prestará seu concurso, como Florizel em Shakespeare e, promete ela a Ceres, « a bela Flora não terá antes coroado minhas têmporas — que eu virei participar de vossas oferendas » e « cerimônias rurais ».
E quando Ceres e seus pastores se afastaram, Proserpina diz este monólogo de todo ponto análogo ao de Perdita:
Oh, que esses prados sejam para sempre estéreis — que não levam mais variedades de flores. — Aqui, não há nem a rosa branca nem a sanguínea: — me parece que escolhi um prado demasiado pobre, — indo mendigar encontrei um mendigo — que deseja tanto quanto eu: eu faria mal — em lhe tomando aquilo de que ele precisa. Aqui não cresce mais — que o necessário para cobrir teu próprio peito despojado. — Os prados que quero roubar deverão ter maior abundância. — Tuas flores, tu não podes delas prescindir, nem emprestar teu peito, — sobre o qual quero repousar enquanto a erva sobe.
Ela se estende e adormece. Cercado de diabos tão hediondos quanto ele, Plutão entra sobre seu carro, desembocando da caverna. Sua vista aterroriza Proserpina cujos gritos de espanto atraem a atenção do deus subterrâneo. Ele se joga sobre ela com suas « garras de diabo » e a leva ao inferno dizendo: « Eternais trevas me cercam lá onde vivo; — salvo teus olhos, não teremos nenhuma luz no inferno ». Conhece-se o fim do mito que Thomas Heywood trata seguindo a tradição: Ceres busca em vão Proserpina, condena a terra à esterilidade, até que enfim Júpiter impõe a Plutão um juízo de Salomão: Proserpina partilhará sua existência entre a terra (miticamente o céu), como rainha dos vivos (espíritos), e o inferno (miticamente nossa terra) como rainha dos mortos (humanos vivendo no corpo-túmulo). O sentido do mito também é bem conhecido. Ele simboliza os ciclos cósmicos da alma humana, tantas vezes livre e feliz em seu luminoso séjour elisiano, tantas vezes acorrentada às trevas do mundo formal, à dor humana ao longo de uma de suas reencarnações sucessivas iluminadas somente pela centelha da lembrança, « teus olhos », como diz bonitamente Heywood.
O prado, é o Eliseu, como o inferno ou caverna simboliza este baixo mundo (« a caverna, diz um escrito grego, tem sido chamado o mundo»); o retorno do inferno, é a libertação do corpo, morte física e ressurreição espiritual. Exotericamente, o mito simboliza o ritmo das estações análogo aos ritmos cósmicos da alma: é, diz o mito, a cada seis meses que, seguindo o juízo de Júpiter, Proserpina deve mudar de residência; é por isso que o inverno coincide com seu mórbido séjour nos infernos, a primavera e o verão com seu alegre séjour no céu.
O Conto de Inverno respeitou esse aspecto exterior do mito: no tempo que Perdita está perdida e que Hermione desapareceu deste mundo dos falsos vivos, como Ceres descida aos infernos à procura de sua filha, o inverno reina sobre as almas e sobre a natureza. Mas quando Perdita vive numa felicidade elisiana, preparando a « ressurreição » de sua mãe, é o meio do verão e a festa da abundância.
Um só personagem do mito grego parece à primeira vista faltar na cena shakespeariana: Plutão o raptor de almas, o sedutor dos corpos, o corruptor da inocência virginal, o Tentador. Porém, a mirar de perto ele não está ausente da festa dada por Perdita. Qual é de fato o papel que ali assume certo gatuno-ambulante vindo vender quinquilharias e tentar as filhas Autolycus? E por que esse nome estranho de um personagem que o poeta não encontrou em suas fontes literárias? « Meu pai, explica o ladrão ele mesmo, meu pai me nomeou Autolycus o qual, tendo sido como eu posto abaixo sob Mercúrio, foi semelhantemente um pick-pokett » (lit. gatuno de bagatelas sem importância) (IV, 2, 24-26). De fato, ele trapaceia, rouba, corrompe, mente. E antes de tudo ele busca seduzir e tentar filhas e rapazes e a ajudá-los a se seduzir uns aos outros, colhendo ele mesmo de passagem alguma virgindade mal defendida. É por isso que ele canta ao entrar:
Quando os narcisos começam a perfuraró alegre! a prostituta no prado:sim, então chega a deliciosa estaçãopois o sangue vermelho reina em vez do pálido inverno (Ibid., 1-4.)
Eis a exata antítese das estações de Proserpina. Para Autolycus, o inverno é a estação da continência forçada, o verão a da volúpia do sangue:
A cotovia que canta a valeró alegre, ó alegre! o tordo e o gaiosão as canções do verão para mim e minhas putasquando nós cambaleamos no feno. (Ibid., 9-12.)
Amores sem amanhã, prazeres da carne, fruto do inferno, aquele mesmo que ao dizer de Heywood Psiquê não provou. É por isso em antístrofe ao virginal diálogo Perdita-Florizel, Shakespeare escreve um canto alternado entre Autolycus e duas pastorais-virgens loucas:
MOPSA. — Se teu juramento é sériodeves me dizer teus segredos.DORCAS. — A mim também: deixa-me ir contigo lá.MOPSA. — Onde vais? Ao celeiro ou ao moinho?DORCAS. — Em ambos os casos fazes mal.AUTOLYCUS. — Nem um nem outro. (IV, Cena 3, 298-303.)
Gatunagem, tal é a marca do sedutor, do « pérfido aliciador ». Ele gatuna as almas por seu espelho de cotovias, as quinquilharias que vende com astúcias de judeu. Ele compra as almas por essa falsa moeda, a fim de as corromper. Quando Polixenes reprova a Florizel ter deixado partir o ambulante sem nada comprar para Perdita, o jovem responde: « Sei que ela não aprecia tais bagatelas. » Os presentes que ela espera de mim estão encerrados sob chave em meu coração que já dei — mas não ainda entregue. (Ibid., 360-363). Nenhuma das seduções terrestres atrai um para o outro essas duas almas semelhantes « a um par de rolas que nunca têm a intenção de se separar » e verdadeiramente semelhantes em sua castidade à Fênix e à Rolinha.
Então nos aparece a verdadeira transposição que o poeta fez sofrer ao mito de Proserpina. Perdita-Proserpina não é em nenhum grau tentada por Plutão, ela não é arrebatada pelo Desejo. Ela colhe flores com Florizel (algo como o anjo Flora) no prado de Cupido, não o de Vênus, símbolo do desejo de carne, mas o do mito de Psiquê e dos Rosa-Cruzes, símbolo de eurritmia numa eterna virgindade. Esse renovamento do mito não poderia vir senão da mão de um Shakespeare sonhando sem cessar em reconduzir o homem a essa pureza virginal e pré-adâmica então esperada pelos iluministas.
Assim a primavera de Perdita não simboliza de modo banal a felicidade dos homens, mas, todo como o mito Proserpina-Psiquê do qual é a transposição, o retorno da alma em seu estado edênico. Em face dessa restauração, o inverno-Leontes representa o homem prisioneiro das paixões desprovidas de razão, abstratas, estúpidas como toda paixão humana, a vida na matéria tenebrosa, desprovida das luzes espirituais da segunda nascença.
Veremos que esse tema da redenção em face das trevas é levado muito mais longe ainda no outro episódio capital da peça, o de Hermione « ressuscitada ».
Acreditava-se até hoje que o desfecho de O Conto de Inverno, fortemente diferente, lembra-se, do epílogo lúgubre proposto por Greene tinha sido imaginado de todas as peças por William Shakespeare e que o bem curioso ritual da « ressurreição » de Hermione era uma fantasia do poeta. Revelarei aqui a verdadeira fonte. Para permitir uma confrontação é indispensável reproduzir in extenso a cena da romance. O acontecimento se situa, recordo, depois que Leontes reencontrou sua filha e que ele decidiu Polixenes a aprovar seu casamento com Florizel. Paulina conduz o velho rei e Perdita numa capela instalada em sua casa a fim de lhes apresentar, diz ela, uma estátua de Hermione recentemente acabada por um escultor italiano.
PAULINAQuando ela vivia, ela era sem igual,de mesmo na morte, ela ultrapassa, me parece,tudo o que haveis podido verou que tenha jamais feito mão de homem; é por issoque a guardo só, longe do mundo. Mas eis aqui:preparai-vos para ver a vida tão bem imitadaquanto o sono imita a morte; vede e dizei que isso é perfeito.Ela puxa a cortina e descobre Hermioneque tem o aspecto de uma estátua.Amo vosso silêncio: ele prova melhor que qualquer coisavossa estupefação; no entanto falai; vós primeiro, senhor.Isso não é semelhante?LEONTESSua postura natural!Ralhai comigo, pedra querida, pois então somente ousarei dizer:sim, é Hermione... (V, Cena 3, 14-25.)Oh, é bem assim que ela se mantinhacom esse mesmo ar de majestade — calor da vidaque é frio agora — quando a cortejava...Há magia em tua majestadeque revivifica minhas faltas em minha memóriae arrebata o espírito a minha filha que te admirase mantendo diante de ti, petrificada, como tu mesma estás.PERDITAPermiti, sem dizer que é superstição, que me ajoelhee implore sua bênção. — Senhora, cara rainha,vós que termináveis na hora em que eu não fiz senão começar,dai-me vossa mão para beijar. (Ibid., 34-46.)
Mas Paulina se interpõe, de mesmo que se interporá
um instante mais tarde, quando Leontes quiser por sua vez
beijar a estátua: a cor toda fresca, diz ela, não está seca. Demais, o rei está de tal modo comovido que valerá melhor sem dúvida puxar a cortina por temor que ele se imagine ver mover a estátua. Não, « deixa, diz Leontes:
Eu desejaria estar morto, e todavia me parece, já —Quem é aquele que fez isso? — Vede, senhor (Polixenes),não se acreditaria que ela respira, e que essas veias alirolam realmente sangue?POLIXENESObra de mestre!o calor da vida parece sobre seus lábios.LEONTESA fixidez de seu olho tem movimento nele,tanto somos fascinados pela arte. (Ibid., 61-68.)Então Paulina o adverte que ela poderia se quisesse, afligi-lo ainda mais.LEONTESFaze-o, cara Paulina,pois essa aflição tem um gosto tão docequanto o sabor de um cordial. Ei-la ainda, parece-me,uma respiração que vem dela: que cinzel bastante finopôde jamais talhar uma respiração? Não vos escarneçais de mim,pois quero beijá-la... (Ibid., 75-80.)PAULINAAgora deixai esta capela ou preparai-vosa maiores surpresas. Se tendes a força de mirarfarei mover realmente esta estátua, fá-la-ei descere tomar-vos a mão; mas então pensareis— protesto de novo — que sou assistidapor potestades malignas.LEONTESO que lhe puderes fazer executarserei feliz de ver: o que lhe fizeres dizerserei feliz de ouvir; pois é tão fácilfazê-la falar quanto fazê-la mover.PAULINAÉ necessárioque desperteis vossa fé. Assim, ficai todos imóveisou que aqueles que pensam que é uma obra proibidase retirem!LEONTESProssegue!Que ninguém se mova!PAULINAMúsica, despertai-a: batei!Eis a hora; descei, não sejais mais de pedra; aproximai-vos;feri de estupefação todos os que vos miram. Vinde;vou preencher vossa tumba: caminhai, sim, avançai;legai à morte vossa torpor, pois é da morteque uma vida cara vos resgata. — Vede, ela se move.(Hermione desce do pedestal.)(A Leontes) Não recueis; seus atos são santoscomo é legítima minha fórmula mágica que ouvis.Não a fujais, senão vê-la-ais morrer uma segunda vez,então a tereis matado duas vezes. Ora, dai-lhe a mão. (Ibid., 86-107.)
O rei a beija, constata que sua carne é quente, que ela vive. Ele pede a Paulina que a faça falar. Que ela diga « onde ela viveu ou como escapou à morte ». E Paulina:
Se se vos dissesseque ela está viva, vos escandalizaríeiscomo a propósito de um velho conto; mas aparece que ela viveembora não fale. Esperai um instante.(A Perdita.) Rogo-vos, senhora, interponde-vos: ajoelhai-vose solicitai a bênção de vossa mãe(A Hermione.) Cara rainha, nossa Perdita é reencontrada.HERMIONEÓ vós, divindades, olhai para baixo,e de vossas urnas sagradas derramai vossas graçassobre a cabeça de minha filha! (Ibid., 115-123.)
Toda essa cena mais que estranha onde se nos assegura por três vezes que se trata de magia pura, de magia branca ou divina, onde se insiste sobre o aspecto sagrado do « milagre », toda essa prodigiosa fantasmagoria não é verossimilmente senão uma transposição do último estádio do « grande obra » ou fabricação do homúnculo ou « ressurreição dos reis ». As Núpcias Químicas de Andreae nos têm, pode-se crer, conservado a versão alemã de mesma época. Depois do enterro fictício dos caixões dos reis decapitados e do transporte dos verdadeiros caixões à ilha de Olympi, os eleitos procedem à fabricação do « ovo » a partir dos corpos reais; depois com as cinzas da fênix oriunda do ovo eles formam uma pasta que, cozida em dois moldes, torna-se os corpos de dois recém-nascidos ou homúnculos. Corpos sem almas todavia, mas tão mimosos que os eleitos não resistem ao prazer de beijá-los. O velho que dirige os trabalhos se interpõe como Paulina. Graças a um filtro os recém-nascidos atingem num piscar de olhos a talha adulta de um homem e de uma mulher. Então estende-se-os sobre uma mesa, cobre-se-os com um pano e planta-se ao redor deles tochas, transformando desse modo o local (andar superior da torre de Olympi) numa verdadeira capela.
Até então, os dois corpos não fazem senão assemelhar-se a corpos animados, com a circulação do sangue e a respiração, todo como a « estátua » de Hermione. Como esta eles não são capazes de nenhum movimento. É então que a jovem (iniciadora) sobrevém com os músicos e dois trajes reais brancos como vidro. Leva-se à boca dos dois corpos uma longa trombeta cuja extremidade comunica com o teto onde repousam as seis almas dos reis decapitados. Ao som da música, uma alma desce como uma bola de fogo através da trompa em cada um dos corpos. Imediatamente, estes abrem depois fecham os olhos. Recomeça-se três vezes a operação até que as seis almas tenham sido insufladas aos dois homúnculos. Então estes se põem a mover e agitar-se como seres vivos. Mas eles não falam ainda. Adormecem e são levados a uma cama onde Cupido os provoca até que despertem. A jovem ajoelha-se diante deles e lhes entrega os dois vestidos brancos que eles vestem exprimindo sua alegria. Sentam-se sobre uma espécie de trono e recebem a homenagem dos eleitos.
Sublinhei de passagem as fases sucessivas da « ressurreição » de Hermione e da do casal real. Ter-se-á podido ver que essas fases se recobrem constantemente e perfeitamente de um texto a outro. Aqui e ali, mesma evolução da inércia à vida vegetativa depois ao movimento do olho, do corpo, da língua. Enfim, de mesmo que ao fim Hermione deve dizer como ela viveu durante seu desaparecimento, de mesmo o casal real de Andreae ignora o que se passou entre o momento de sua decapitação e o de sua ressurreição e busca informar-se a esse respeito. Aqui e ali, mesmo procedimento mágico: gestos rituais para trazer a vida vegetativa, música para trazer a vida espiritual, enfim a prece, de joelhos, da jovem para trazer a palavra. Compreendemos melhor a presentemente por que Paulina protesta por três vezes da legitimidade de sua « arte mágica ». Trata-se, como em Andreae, da arte alquímica de ordem divina, desembocando num e noutro caso numa bênção dos eleitos, ao final de suas provas: pois de mesmo que o sofrimento trouxe o arrependimento e a sabedoria na alma obnubilada de Leontes, e que o Tempo e suas provas desvelaram a verdade, de mesmo, no momento de aceder depois de uma última e muito penosa prova na sala onde vão cumprir a ressurreição do casal real, os eleitos de Andreae ouvem dizer no momento mesmo em que desesperavam como Leontes: « O homem nunca conhece a benevolência de Deus. »
A parábola de Andreae permite enfim explicar algumas fórmulas à primeira vista obscuras do texto shakespeariano. Lembra-se dessa objurgatória de Paulina: « Legai à morte vossa torpor, pois é da morte que uma vida cara vos resgata. » Nas Núpcias Químicas as almas-vidas dos seis reis decapitados resgatam da morte o casal novo; de mesmo que uma fênix deve morrer para que dela nasça outra mais perfeita, o antigo casal dos « noivos » deve morrer para que nasça o casal perfeito. E de mesmo, o antigo casal Hermione-Perdita, ambas « petrificadas » e « perdidas », deve desaparecer durante um tempo para que nasçam uma nova Hermione e uma nova Perdita, concluindo assim a obra de redenção do eleito provado, Leontes. Errar-se-ia fortemente em não buscar na fórmula de Shakespeare senão uma notação psicológica, algo como: Perdita deve ter sofrido para resgatar sua mãe.
A outra fórmula obscura é esta: « Vou preencher vossa tumba, vinde. » Esse apelo mágico que Paulina dirige à rainha no momento em que ela « legará à morte sua torpor », faz alusão ao instante da alegoria onde os corpos dos homúnculos são literalmente preenchidos pelas almas dos reis decapitados. O corpo « inanimado » de Hermione é até esse instante um túmulo seguindo a fórmula célebre de Platão: « corpo-túmulo » (soma-sema); só a « ressurreição » ou « segunda nascença » dos iluminados proporcionará ao homem a verdadeira vida, preencherá o corpo, preencherá a tumba que ele foi até essa hora.
Assim se percebe o elo estrito que o poeta estabelece entre o tema de Proserpina-Perdita e o tema da ressurreição de Hermione: um é o acabamento do outro. Proserpina-Perdita e Hermione-Ceres desaparecidas durante a estação de inverno por causa da paixão abstrata, bestial de Leontes, são magnificadas no verão, e sua coroação assegura a redenção de Leontes renunciante e arrependido. É preciso, para resgatar o homem, o milagre do grande obra, de mesmo que é preciso para trazer à vida Hermione e Leontes (morto espiritualmente, primeiro por causa da paixão, depois por causa do desespero) o aparente milagre e a pseudomagia de Paulina. O drama cósmico do resgate pela Virgem é cumprido em sua forma gnóstica.
Ver online : Paul Arnold
ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955.
[1] Palavras emprestadas de Marlowe (The Tragedie of Dido, 1954): « Quem não suportaria toda sorte de penas para ser deleitado com tal conto de inverno? »
[2] Cf. notadamente V. Magnien e Carcopino, op. cit.