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Esoterismo de Shakespeare

Paul Arnold – "O Mercador de Veneza": Belmont ou o castelo na noite

Capítulo IV

Shakespeare, como é bem sabido, tomou de empréstimo a dois contos italianos e a um episódio da Gesta romanorum as diversas peripécias que compõem O Mercador de Veneza. Uma vez constatado este fato evidente, atribui-se à fantasia ou ao propósito deliberado do poeta fazendo obra literária as estranhas divergências — adições ou modificações — que não se podem deixar de notar entre as cenas e as ideias da obra dramática e as peripécias dos três contos.

Dessas fontes, a principal é Il Pecorone de Giovanni Fiorentino. Eis o seu argumento:

Ansaldo, rico veneziano, mercador considerado, tem por seu afilhado Giannetto uma ternura toda paternal. Confia-lhe as chaves do seu cofre-forte; incita-o a gastar todo o dinheiro que quiser e assegura-lhe que quanto mais gastar, mais lhe demonstrará a sua afeição filial. Uns amigos aconselham o jovem a acompanhá-los a Alexandria. Ele aceita. A frota passa diante de um golfo onde habita, segundo o piloto, uma dama tão rica quanto bela de cuja mão ninguém, todavia, logrou obter. Impulsionado pela curiosidade, o jovem dá escapula aos seus amigos e faz rumo ao golfe onde aporta no dia seguinte. É acolhido com entusiasmo, conduzido ao palácio da dama misteriosa, festejado pelos cortesãos. A dama marca-lhe visivelmente amizade e aceita o seu pedido de casamento, sob a condição de que ele sofra com sucesso certa prova. Se fracassasse, seria enviado de volta a Veneza e o seu barco seria confiscado com toda a sua rica carga.

A prova — Shakespeare substituí-la-á por outra emprestada à gesta romanorum — é bastante picante. O pretendente deverá deitar-se na cama da dama. Se tiver a força de velar até que ela se lhe junte, e se lhe propiciar todo o prazer que ela tem direito a esperar, ela consentirá em desposá-lo. Mas quando Giannetto entrar no quarto, uma camareira oferecer-lhe-á um último copo de vinho que na realidade é um soporífero. Adormece imediatamente, perde o seu navio e regressará a Veneza no cavalo que a bela dama lhe entrega como prova de afeição. Cala a sua aventura e explica o seu regresso por um naufrágio.

Mas não se esquecerá da dama de Belmont (assim se chama tanto no italiano como em Shakespeare o domínio da bela desconhecida). Recomeçará a sua tentativa uma segunda, depois uma terceira vez. Para pagar as despesas de equipagem, Ansaldo pedirá emprestados dez mil ducados a um judeu de Mestri; e como já não tem nada para dar em penhor, o prestamista estipula que, se faltar ao vencimento, Ansaldo lhe deverá uma libra de carne cortada do seu próprio corpo. Mas desta vez o jovem logra o seu intento, pois uma criada incita-o a não beber o vinho que lhe oferecem; casa-se no dia seguinte e, todo absorto na sua felicidade, esquece o pobre Ansaldo. Este, incapaz de reembolsar a sua dívida, cai nas mãos do judeu que, no seu ódio aos Cristãos, arde em desejos de matar o seu melhor mercador: recusa o dinheiro que outros lhe oferecem para libertar Ansaldo. Informada desta crueldade, a dama de Belmont envia Giannetto, disfarça-se ela mesma de juiz, chega a Veneza pouco depois do seu marido e faz de modo que recebe a missão de dirimir o litígio de Ansaldo e do judeu. Convida este a aceitar o dinheiro, e como ele recusa, adverte-o que a letra apenas lhe dá direito a uma libra de carne: se portanto, ao cortar no peito de Ansaldo, fizesse correr a mais ínfima gota de sangue, teria a cabeça cortada. O judeu cede, rasga o contrato e vai-se embora sob vaias. Giannetto oferece àquela que toma por um juiz os dez mil ducatos como honorários. Mas ela recusa e reclama-lhe como lembrança desse dia o anel que lhe havia entregado em Belmont, no dia do casamento. Giannetto não pode esquivar-se, ainda que receie que a sua esposa o acuse de infidelidade. Ela regressa a Belmont antes dele, esconde o seu disfarce e, quando ele volta, acusa-o de ter dado o anel a alguma amante. Ele desculpa-se, e ela dá-lhe a conhecer toda a verdade. Para acabar, Giannetto casará Ansaldo com a criada graças às indiscrições da qual havia podido desposar a dama.


Apesar das aparências, este conto bastante ingênuo tornou-se bem outra coisa sob a pena de Shakespeare. Paradoxalmente Antonio, mercador de Veneza por excelência, quase não se interessa pelos seus negócios que prosperam apesar dele. Mantém uma tristeza e um mutismo aparentemente desprovidos de razão. Casto, virtuoso, generoso até ao sacrifício, não nutre senão um único ódio, o ódio aos judeus comummente partilhado em Veneza; não deixa transparecer senão uma única razão de viver: a sua afeição — pura e desinteressada [1] — por Bassanio, um amigo fiel mas pródigo, a cuja vida dispendiosa fornece desde há tempo tudo o que é necessário. Para permitir a este cavalheiro ir, como diz, à conquista da «nova Toison de Ouro», de fazer honrosamente a corte a uma jovem perfeitamente bela e virtuosa, e além disso riquíssima, Pórcia de Belmont, Antonio, momentaneamente desprovido de recursos, estando toda a sua fortuna no mar, endivida-se junto do seu inimigo pessoal, o usurário judeu Shylock. Na intenção ainda inconsciente de se vingar dos maus tratos que Antonio lhe infligiu sem cessar, este prestamista faz-lhe assinar uma letra estipulando como pena, se não se puder libertar no dia do vencimento, uma libra da sua própria carne cortada bem perto do coração.

Entretanto, em Belmont, os pretendentes devem sofrer uma prova que o pai de Pórcia exigiu antes de morrer: devem descobrir entre três cofres fechados (um de ouro, o segundo de prata, o terceiro de chumbo), aquele que contém o retrato da jovem. Se escolherem mal, não devem apenas partir imediatamente, sem cerimônia e guardar silêncio sobre o que viram e sobre a escolha que fizeram, mas perdem o direito de falar de amor a uma virgem. Uma inscrição figurando em cada cofre guiará a escolha de quem sabe renunciar às coisas deste mundo, de quem sabe, «dar e arriscar tudo o que tem» (tal é a exigência inscrita no cofre de chumbo). Numerosos candidatos veem-se recusados, uns não ousando sequer tentar a escolha, outros escolhendo o ouro ou a prata e provando pelas suas reflexões que estão apegados aos bens deste mundo e escravos das suas paixões. Finalmente, Bassanio, a quem Pórcia ama em segredo, chega a Belmont, ricamente equipado graças a Antonio. E ao som da música e de uma melodia bem estranha, cantando o dobre de finados do amor, escolhe o cofre verdadeiro, o cofre de chumbo e da renúncia.

Contudo, em Veneza, na própria noite em que Bassanio se embarcara para Belmont, Jessica, a filha de Shylock, havia sido raptada pelo seu amante, o Cristão Lorenzo, no decurso de uma mascarada. Havia levado consigo uma boa parte da fortuna do judeu que ela dissipa presentemente, antes de se refugiar em Belmont com o seu raptor. É aí que será batizada e que renunciará não só à fé dos seus antepassados, mas a toda a ideologia do seu pai. O rapto leva Shylock ao cúmulo do desespero e da fúria vingativa, no momento mesmo em que Antonio, provado, segundo crê, por perdas no mar, deveria reembolsar o empréstimo que contraíra para equipar Bassanio. E o mercador cai nas mãos do judeu que o faz prender e reclama ao doge a execução da cláusula, a libra de carne.

O doge e toda a corte de Veneza conjuram em vão Shylock para que seja piedoso e aceite o dinheiro que Bassanio, vindo a toda a pressa, lhe oferece da parte de Pórcia. Antonio está pronto a renunciar à vida, uma vez que o seu último desejo está cumprido: Bassanio veio, provando-lhe a sua indestrutível amizade. Como no conto italiano, Pórcia disfarça-se de advogado, enviado por Bellario, um célebre jurisconsulto de Pádua, e a esse título admitida a dizer o direito em lugar do doge. Parecendo levar o jogo até ao fim, reclama a execução da pena, faz ver a Antonio a morte de frente, prepara Bassanio para o sacrifício total pelo amigo, demonstra a Shylock a sua crueldade e explica-lhe o que é a piedade: justiça de Deus perante a lei-justiça dos homens. Para jugular enfim a malignidade, recorre à astúcia do italiano mas com desenvolvimentos que conferem ao tema um valor metafísico; uma vez que a letra não permite ao judeu derramar o sangue de Antonio, pronuncia contra ele a pena de morte por ter querido atentar contra a vida de um veneziano: que reclame portanto a graça do doge e essa piedade que ignorava. A lei quer que sejam confiscados os bens dos assassinos: Shylock que só vivia para o dinheiro, verá toda a sua fortuna confiscada a favor do Estado e do raptor da sua filha. Ele que odiava os Cristãos terá de se batizar, enquanto que Antonio que odiava os judeus terá de se humilhar perante o pior deles.

Voltando depois ao conto italiano, Shakespeare adota o episódio do anel: Pórcia reclama a Bassanio (e a sua camareira Nérissa, falsa escrivã, reclama ao criado deste, o patife Graziano) a aliança que ela lhe havia entregue na véspera e isso — nova extensão do tema — com precauções toda especiais. Assim é encetado o quinto ato imaginado quase inteiramente, poder-se-ia crer, por William Shakespeare, uma vez que o desenlace desta peripécia, imitada do Fiorentino, aí ocupa bem pouco lugar. O ato desenrola-se em Belmont, de noite. Ao claro de lua, Jessica batizada é iniciada por Lorenzo no mistério da harmonia das esferas e da música das almas tal como ensinavam Pitágoras e Orfeu. É pela música que se atrai Pórcia para casa. E eis que ela também revela a Nérissa o sentido secreto das coisas: o da vela, lume que arde na noite iluminando o seu palácio como uma alma pura ilumina as almas no meio da impureza do mundo; e o sentido elevado da música e do silêncio que Pórcia reclama subitamente, pois «a lua dorme com Endimião».

E quando Bassanio volta por sua vez com Antonio, constata que Pórcia ilumina a noite como um sol. Pois esta noite, Pórcia notara-o, é «um dia doente», um dia em que o sol estaria escondido. É nesse ambiente bem estranho — uma singularidade que pouco embaraçou os comentadores — que Shakespeare situou o incidente do anel, nova e última ilusão, nova e última prova de Bassanio. Quando no fim Bassanio consternado recebe a aliança por intermédio de Antonio, este garante uma vez mais o amigo. E o mercador recebe a sua recompensa, não uma esposa como no italiano: Pórcia sem se explicar sobre a origem desta nova, revela-lhe que ele também se iludira, que as suas desgraças não haviam sido senão falsas desgraças, que nenhum dos seus barcos se perdera, que ele é mais rico do que nunca. Pois todos os acontecimentos passados não eram senão provas, como todas as nossas desgraças não são senão ilusão.

Sublinhei de passagem o essencial daquilo que Shakespeare não deve nem ao Fiorentino nem à Gesta e de que revelarei mais adiante a verdadeira fonte.


Perdem-se em conjecturas sobre as razões que poderão ter levado Shakespeare a estruturar com materiais tão diversos este drama aparentemente compósito. Apenas se vislumbra claramente uma certa «unidade de tom» fazendo passar a custo o facto diverso da libra de carne.

Mas se o tema dos cofres ocupa mais de um quarto da peça, se Shakespeare nele insiste a tal ponto que repete três vezes a cena da boa escolha; se o quinto ato, visto sob o ângulo do facto diverso Antonio-Shylock, pode parecer inútil à ação e cheio de hors-d’œuvres, se as ações secundárias (Jessica — episódio emprestado a Massucio de Salerno — Lancelot, servo de Shylock, fugindo da «casa do inferno» (II, Cena 3) refugiando-se em casa de Lorenzo, etc.) parecem sem ligação profunda com o tema que se crê central, é porque verossimilmente não se detém a chave para penetrar o segredo da peça.

Sempre se hesitou em classificar O Mercador de Veneza num dos gêneros conhecidos: comédia ou tragédia. Nicolas Rowe, o grande admirador, o primeiro comentador de Shakespeare, constata já esta hesitação menos de um século após a morte do poeta: «Ainda que tenhamos visto representar esta peça, dada como comédia, e o papel incomparável do judeu confiado a um excelente cômico, não posso deixar de crer que ela foi concebida num espírito trágico.» É que já o sentido e o alcance reais desta obra estavam esquecidos e que se ficava pelo melodrama do assunto Shylock-Antonio.

Situa-se geralmente O Mercador de Veneza em 1594, o ano da execução de um médico judeu, de origem espanhola, Roderigo Lopez, acusado de ter querido, em 1592, atentar contra os dias da rainha: tratava-se talvez simplesmente de um episódio da luta contra a Espanha batida no mar em 1589 e contra o catolicismo espanhol. Este facto diverso onde os comentadores querem vislumbrar o verdadeiro à-propos da peça shakesperiana, provocou em Inglaterra uma vaga de anti-semitismo. E se pode à rigueur explicar a escolha de um herói judeu de uma crueldade lendária [2], tornava-nos ainda menos claras as razões que poderiam ter levado Shakespeare a tomar pública e veementemente a defesa dos judeus na célebre apostrofe de Shylock condenando a atitude inumana do mundo cristão e lembrando que o judeu é um homem como os outros, submetido às mesmas misérias e sensível às mesmas dores.

Esta explicação não pode portanto satisfazer-nos mais do que a de Rowe. Shakespeare deu-nos efetivamente uma comédia cheia de acontecimentos trágicos, como fará mais tarde nas suas romances, Cimbeline, o Conto de Inverno, Péricles, a Tempestade. Mas tem demasiada delicadeza para ter procurado divertir o espectador com peripécias cruéis, demasiada humanidade para associar a angústia mortal de um homem honesto condenado a sofrer sob os nossos olhos o pior suplício, porque se sacrificou pela causa de um amigo querido. Certamente, Shakespeare também não quer fazer-nos chorar: cada vez que a situação ia passar do jogo do terror ao irreparável da tragédia, ele a revira, a desbarata, a metamorfoseia numa mascarada, numa bouffonnerie. De fato, Pórcia confronta com a morte física ou moral sucessivamente Bassanio escolhendo o cofre, Antonio temendo a faca do judeu, e Shylock incorrendo na pena capital, e leva-os a renunciar expressamente a todo o apego às coisas deste mundo; Bassanio escolhe o cofre de chumbo «arriscando e dando tudo o que tem», enquanto o coro toca o dobre de finados do amor; Antonio declara-se pronto a morrer, pois «os frutos mais fracos devem cair primeiro»; Shylock enfim é condenado à morte e indultado, depois renuncia de bom ou mau grado a todos os seus bens terrestres. Eis que já todos os temas de O Mercador de Veneza — o da libra de carne, o dos cofres, o do rapto de Jessica dissipando ou recebendo os bens do judeu, o do anel, infligindo a Bassanio uma última humilhação — concorrem para uma unidade outrem profunda que a do tom e do ambiente. Já nos aparece uma unidade filosófica e metafísica tanto quanto dramática e poética, com, de um personagem a outro, de uma trama a outra, essa mesma gradação que Shakespeare desenha — a isso voltarei — entre os diversos pretendentes de Pórcia, desde os que não ousam arriscar a escolha até aos que escolhem o ouro, a prata e enfim o chumbo. Mas não é o único elo quintessencial entre as diversas peripécias.


Só a Tempestade é tanto quanto O Mercador de Veneze salpicada de música e de explicações órficas da sua suavidade. Nos momentos mais elevados da peça, a música intervém para apaziguar e regular o curso dos pensamentos, para restituir à alma o seu equilíbrio, o seu sentido da justiça e da bondade, para a afastar das paixões terrestres, do desejo, das preocupações humanas, para a guiar para as coisas do céu. Pórcia faz tocar uma música suave, quando Bassanio se prepara para escolher o cofre da verdade e da renúncia e que dirige o curso dos seus pensamentos para a ascese e o desprezo das paixões e das vaidades terrestres. No quinto ato, Lorenzo — que Pórcia, partindo secretamente para Veneza, havia instituído seu substituto — explica a Jessica: logo que as feras ouvem qualquer música «ficam imóveis — os seus olhos selvagens mudam-se num olhar tímido — pelo poder suave da música: eis porque os poetas — fingiam crer que Orfeu arrastava as árvores, as pedras e as ondas; — pois não há nada tão teimoso, tão duro e tão furioso — que a música não possa por um tempo mudar a sua natureza» (V, Cena 1, 71-82). Assim a música e a harmonia são um aspecto da bondade e da doçura, da pureza espiritual; só o mal foge à música. «O homem que não tem música em si mesmo — e que não é comovido pelo acordo dos sons suaves — é capaz de traição, de estratagemas e de latrocínios; — os movimentos da sua alma são tenebrosos como a noite — e as suas paixões negras como o Érebo. Desconfia de tais homens» (Ibid., 83-88) e, antes de todos, de Shylock que tem horror à música até «a tapar os ouvidos da sua casa» (II, Cena 5, 34). Pois a música põe o coração e a alma à uníssono com a harmonia universal; ela é a expressão audível da vida espiritual, angélica, celeste. Jessica não está «nunca alegre quando ouve bela música». «A razão disso é que o teu espírito então está atento» (V, Cena 1, 69-70), isto é, recetivo às coisas da vida eterna; pois vê o firmamento, «vê como o pavimento do céu — está incrustado espessamente de discos de ouro cintilante: — não há sequer o mais pequeno destes globos que contemplas — que, no seu movimento, não cante como um anjo — juntando-se aos querubins de olho eternamente jovem. — Uma harmonia semelhante está nas almas imortais; — mas durante o tempo que este vestuário de lodo perecível — as envolve grosseiramente, não a podemos ouvir» (Ibid., 58-65).

Vimos o lugar primordial que ocupavam nos iluministas dos séculos XVI e XVII e nos Elisabetanos as ideias órficas sobre a harmonia das esferas e sobre as relações entre os acordes da música e os movimentos da alma, a sua elevação e o seu retorno ao estado celeste. Contudo ninguém as exprimiu não só tão elegantemente — o que é próprio do poeta — mas com um conhecimento tão seguro da verdadeira tradição de que Shakespeare reproduz os próprios termos [3].

O poeta, recordei-o, tomou de empréstimo à Gesta romanorum o tema dos cofres. Esta compilação medieval conta como o rei de Nápoles, oferecendo ao Imperador de Roma uma paz duradoura, casou a sua filha com o filho do soberano. A noiva partiu para se juntar ao príncipe. Mas uma tempestade provocou a perda do navio, corpo e bens, com exceção da jovem que foi engolida por uma baleia. Instalou-se no ventre do cetáceo, logrou matá-lo queimando os destroços do barco que ele havia engolido com ela, e fez-o encalhar na praia. Um cavalheiro compassivo recolheu-a e, sabendo pela sua boca a sua qualidade, conduziu-a à corte do Imperador. Como não tinha nenhuma prova da sua identidade, o monarca decidiu submetê-la a uma prova, a fim de saber se ela procurava a fortuna. Mandou forjar três cofres de ouro, de prata e de chumbo, encerrou no primeiro ossos e nos outros dois pedras preciosas e ouro. O primeiro portava esta legenda: «Quem me escolher, encontrará em mim o que merece»; o segundo: «Quem me escolher, encontrará em mim o que a natureza e a carne desejam»; o terceiro de chumbo: «Quem me escolher, encontrará em mim o que Deus dispôs». O Imperador convidou a jovem a escolher o estojo que seria o mais proveitoso. A jovem pediu o socorro de Deus. «Que mereci então, pensou ela, diante do estojo de ouro, para ter um cofre tão precioso?»; os exteriores, disse a si mesma, nunca são tão belos se o interior é corrompido. Diante do cofre de prata refletiu que «a sua natureza e o seu coração não pediam as delícias da carne». É por isso que escolheu o cofre de chumbo, pois «Deus, disse a si mesma, nunca dispõe o mal». «Donzela, respondeu-lhe o Imperador, escolheste sabiamente, e ganhaste o meu filho que te dou por marido».

Eis em pormenor, o que se tornou na peça shakesperiana este pequeno esquema primário.

Como na Gesta, a peça subordina o agrado do esposo à boa escolha entre cofres de três metais. Mas Pórcia, acrescenta-lhe uma série de outras condições. «Por juramento, diz o príncipe de Aragão (que escolherá a prata) foi-me ordenado observar três coisas: — primeiro nunca revelar a ninguém que cofre escolhi, em seguida, se falhar — o bom cofre, nunca mais em toda a vida — pedir em casamento uma virgem; — enfim, se tiver má sorte na minha escolha, — deixar-vos imediatamente e partir». E Pórcia insiste: «Deve jurar, diz ela a Bassanio, observar estas instruções quem quer que venha para tentar a sorte». Veremos que tudo isso é bem pesado.

Shakespeare, de hábito tão econômico dos meios dramáticos, repete três vezes a cena da escolha: com o Príncipe de Marrocos, primeiro; com Aragão em seguida; com Bassanio enfim. E o todo é precedido por um quadro muito colorido dos outros candidatos que não ousam sequer arriscar uma escolha tão arriscada. Quanto aos três outros, os ditos redigidos pelo pai de Pórcia e contidos nos cofres respetivos resumem muito judiciosamente o seu estado de avanço espiritual. Aliás, eles mesmos se pintaram ao espectador pelas reflexões de que acompanham a sua escolha. Eis a gradação perfeita que Shakespeare estabeleceu do primeiro ao último, cronologicamente. Primeiro, a galeria daqueles que são demasiado cobardes para tentar a sorte: o príncipe napolitano que só fala de cavalos, o conde palatino, sobrancero e suficiente, o francês Le Bon, paulista impenitente, o barão Folconbridge, ignorante e vaidoso, o sobrinho do príncipe de Saxe que está bêbado desde a manhã e «nos seus melhores momentos vale um pouco menos do que vale um homem» (I, Cena 2, 89). Pode dizer-se isso de toda a galeria destes originais atolados na matéria, na paulícia, na gula, no orgulho estúpido e na ignorância. Não têm a mais pequena sorte, e nem sequer verdadeiramente o desejo de obter o que procura Bassanio (e que é, veremos, bem mais que um casamento).

A um grau acima, o príncipe de Marrocos, um Mouro que escolherá o cofre de ouro. Intrépido, capaz de sacrifício, mas orgulhoso: «Quanto valho? Muito se julgo pela minha reputação — o meu nascimento e os meus bens, os meus encantos e a minha educação». Primário, este filho de África confunde a riqueza espiritual com a riqueza material: «uma alma de ouro, diz ele ingenuamente, não se abaixa às aparências grosseiras» do vil chumbo. É preciso ouro para envolver «esta santa mortal» que é Pórcia. Para ele, o anjo está «gravado no ouro» (II, Cena 7, 14-59). É por isso que o dito do pai lhe responderá:

Tudo o que brilha não é ouro;
ouviste-o muitas vezes;
mais de um homem vendeu a sua alma (vida: life)
por não ter senão os meus exteriores:
as tumbas douradas encerram vermes.
Tivesses sido tão sábio como ousado,
jovem de corpo, velho de juízo,

terias encontrado melhor resposta (Ibid., 65-73). É que a coragem não basta, é preciso a sabedoria para escolher Pórcia.

O príncipe de Aragão que escolhe a prata não quer «fazer escolha daquilo que muitos homens desejam, — porque (não) quer dançar com os espíritos comuns e (se) alinhar nas multidões bárbaras». Este vaidoso perde-se; e embora reconheça que só «o selo do mérito» autoriza a «ganhar as honras», que «se os domínios, as dignidades, os cargos — não se obtivessem por corrupção» haveria muita mudança no mundo (II, Cena 9, 10-51); e embora se aperceba disso, está demasiado imbuído de si mesmo para atingir a sabedoria de que a humildade é o limiar. E o dito falando da prata responder-lhe-á:

O fogo provou-o sete vezes:
sete vezes é provado o juízo
que nunca escolheu mal. (Ibid., 63-65.)

Esta fórmula, Shakespeare não a inventou. Encontra-se na Prognosticatio de Paracelso num texto inspirado na Escritura Sagrada e onde se diz: «Como o ouro e a prata, deves ser purificado das tuas nódoas e posto à prova mais de sete vezes, com uma severidade mais estrita do que o fogo purifica o ouro e a prata das suas escórias». O empréstimo — para além da Escritura — é provável. Autoriza-nos a pensar que Shakespeare atribuía à escolha dos cofres um sentido esotérico próximo do da Prognosticatio: a necessidade de uma purificação espiritual pela renúncia e as provas para atingir o que Paracelso chama «uma renovação e uma transformação que nos tornará como crianças» no estado pré-adâmico ou angélico da alma.

Vem enfim a escolha de Bassanio (III, Cena 2), ao som da música e de uma canção bem estranha. Desde logo Bassanio compreende tudo o que significa o símbolo dos cofres. Sabe que os exteriores brilhantes, a beleza das formas manifestadas, perceptíveis, não são senão ilusão dos sentidos: «Assim, as aparências exteriores são muitas vezes estranhas a si mesmas (isto é, enganadoras): — sem cessar o mundo é enganado pelo ornamento». Uma bela voz pode enganar a justiça, a hipocrisia triunfa na religião, o veste-se nas aparências da virtude, os covardes tomam ares de heróis, e até a beleza «é adquirida ao preço». O ornamento, as aparências não são senão «o falso semblante que a astúcia veste — para apanhar o mais sábio. É por isso, tu, ouro cintilante — duro alimento de Midas, não quero de ti, — nem de ti, pálido e vulgar intermediário — entre os homens: mas tu, magro chumbo — que ameaças mais do que prometes» pois para o escolher é preciso «dar e arriscar tudo o que se tem». «A tua palidez, acaba Bassanio, comove-me mais que a eloquência» (III, Cena 2, 73-107).

Bassanio recusa todos os bens perecíveis; renuncia à riqueza e à beleza, ao poder e às honras; vislumbra a vaidade de todas as formas e de todos os apetites. O mundo das aparências não é senão um logro, um engana-sábio: renuncia ao mundo das aparências. Para ganhar o que quer ganhar, Bassanio deve «dar e arriscar tudo o que tem». É assim somente que encontrará, como diz o cofre da gesta, «o que Deus dispôs»; encontrará o que o dito do pai chama o destino, a sorte (fortuna).

Mas Bassanio deve renunciar a mais ainda. Pois — e eis um dos grandes mistérios da peça shakesperiana, tão grande que os comentadores passaram por cima sem sequer o vislumbrarem — é preciso também que Bassanio renuncie ao amor. No momento em que se adianta para escolher, quando dessa única escolha depende o seu casamento com Pórcia, o seu amor por Pórcia, o amor de Pórcia por ele, o coro, por instigação da jovem, canta uma canção aparentemente a mais extravagante e a mais deslocada que se possa imaginar em semelhante circunstância:

1.
Dizei-me onde é gerado o amor (fancy)
no coração ou na cabeça?
como nasce, como é alimentado?
Respondei, respondei!
 
2.
É gerado nos olhos,
alimentado de olhares; e o amor morre
no berço onde repousa (os olhos).
 
Toquemos todos o dobre de finados do amor;
eu começo — ding, dang, dong (ibid. 63-71).

Esta canção, Shakespeare não a inventou de todas as peças. Encontrei-a sob uma forma mais desenvolvida nas Noces Químicas de Christian Rosencreutz, de Andreae, inserida num capítulo desta parábola rosacruz de que detetaremos logo mais muitos outros traços em O Mercador de Veneza. Situa-se no momento em que os «eleitos», tendo sofrido a prova de iniciação, e assistido à decapitação depois ao enterro dos «reis» sob o signo da Fênix, velejam para a ilha Olímpia onde serão admitidos a cooperar à «grande obra». Nesta viagem simbólica a bordo dos navios transportando os corpos dos «reis», encontram as sereias que lhes querem fazer compreender o perigo mortal que o amor-paixão faz correr à alma, comparativamente à elevação que proporciona o amor místico. Eis o que canta o coro das sereias:

Perguntamos; respondei, vós!
 
1.
Quem nos trouxe a vida?
O amor.
Quem nos restituiu a graça?
O amor.
De que nascemos?
Do amor.
Como nos perdemos?
Por falta de amor.
 
2.
Quem pois nos gerou?
O amor.
Por que nos amamentaram?
Por amor.
O que devemos aos nossos pais?
O amor.
Por que são tão pacientes?
Por amor.

Segue uma estrofe sobre a união da dualidade por amor, tema que Shakespeare desenvolve na sua Fênix e a Rola («Amavam-se tanto que o amor na dualidade não tinha essência senão na unidade»). Depois:

Assim cantai todos
a plenos pulmões
em honra do amor
que quer multiplicar-se
junto do nosso rei e nossa rainha:
o seu corpo está aqui, a sua alma partiu.

Por outras palavras, o amor-desejo do corpo está morto; o amor místico da alma é glorificado no céu. Vislumbra-se o paralelo entre o texto de Andreae e o de Shakespeare. Adotando o mesmo esquema que o canto ritual rosacruz — de que só temos uma versão alemã em versos rimados por Andreae e tardia — conservando a forma por perguntas e respostas — modo de ensino esotérico bem conhecido —, reproduzindo grosso modo, não só a mesma sucessão das ideias mas versos inteiros, apertando o texto, eliminando os duplicados, Shakespeare, crer-se-ia, limitou-se a transpor o tema para o acordar às circunstâncias dramáticas, substituindo a condenação do amor-paixão, do amor dos só olhos, à exaltação do amor místico. Canta o dobre de finados do amor «nascido na cabeça», de um olhar, do apego a esses exteriores que estigmatiza Bassanio; não canta o dobre de finados do amor «nascido no coração» que exaltam as sereias. E é por isso que o dito lhe dirá:

Vós que não escolheis pela vista (a aparência),
acertais e escolheis bem.
Uma vez que este destino vos toca,
contentai-vos com ele e não procureis outro.
Se isto vos agrada
e se tomardes o vosso destino pela vossa felicidade (Ibid., 132-139),

ide desposar a bela Pórcia cujo retrato o mais perfeito que se possa imaginar está encerrado no cofre de chumbo.

O conteúdo dos diversos cofres não é menos instrutivo. Na gesta romana, o cofre de ouro continha ossos; os outros dois estavam cheios de pedras preciosas. Em O Mercador de Veneza, em vez de ossos, encontramos no cofre de ouro uma caveira; no cofre de prata, um retrato da vaidade e da estupidez; no cofre de chumbo o retrato da beleza ideal, o retrato de Pórcia de quem um olho «uma vez acabado devia ter poder de raptar os dois» ao pintor (Ibid., 123-126).

Ora, eis o que conta a parábola de Agnostus intitulada Raptus Philosophicus (1619) já citada por paralelos precisos com a elegia da Fênix e da Rola. Agnostus sonha que procura o caminho da verdadeira Fraternidade da Rosa-Cruz. Depois de diversos incidentes onde se encontram implicadas algumas das feras emblemáticas da elegia, o eleito vê vir a ele o cortejo de uma mulher idealmente bela, doce, ricamente vestida de púrpura e portando um diadema de ouro realçado de brilhantes. Está sentada numa carruagem coberta de má estopa cinzenta, puxada por dois ursos e um cervídeo — em linguagem cabalística os cornos numerosos simbolizam o conhecimento esotérico completo — e portando sobre os joelhos o livro da sabedoria suprema que entregará ao eleito em sinal de iniciação. Pois ela é Natura, a Natureza (alquímica, portanto o Conhecimento de toda a Verdade revelada e não revelada). De uma e outra parte da sua carruagem, marcham duas virgens [4]: uma, toda de negro, leva na mão uma caveira; a outra, de branco e em grande aparato de sedução leva «um frasco de perfume de que se servem as mulheres para se perfumarem», alegoria por excelência da sedução feminina. Assim os atributos destas três mulheres coincidem, no seu valor simbólico, com o conteúdo dos cofres: caveira, aqui e ali; vaidade, simbolizada aqui pelo perfume levado por uma mulher coquete, ali por uma cabeça de fatuo; Sabedoria enfim simbolizada nos dois casos por uma mulher admiravelmente bela, rica, casta e boa. Se a mulher portando a caveira está vestida de negro por assimilação, a segunda está de branco como a prata e Sophia está sentada numa carruagem «coberta de má estopa cinzenta», como o retrato de Pórcia está contido no «vil chumbo cinzento». Demais, em mitologia, a escolha entre três ou sete objetos, dos quais um só assegura a salvação e os outros arrastam à perdição, é uma imagem usual da iniciação à sabedoria metafísica. Simboliza os diversos caminhos que se abrem aos homens: um de acesso difícil (a renúncia) levando diretamente a Deus, os outros fáceis e agradáveis levando pelo gozo terrestre mais ou menos completamente à morte da alma. Já Spenser nos havia descrito estas diversas vias entre as quais o Cavaleiro da Cruz Vermelha escolherá a mais árdua. E do mesmo modo à entrada de uma floresta, Rosencreutz, no início da viagem alegórica que descrevem as Noces Químicas, deverá escolher entre três vias que levam ao palácio real (céu): uma só é curta mas perigosa e árdua (uma quarta sendo interdita aos mortais e reservada só aos «corpos incorruptíveis»). Do mesmo modo ainda, no início do Raptus philosophicus, o eleito está na presença de numerosos caminhos, perguntando-se qual é o bom e finalmente empreendendo a vereda estreita, difícil, mal reconhecível e cheia de emboscadas, pouco frequentada, enquanto o caminho largo e fácil pulula de passantes. No fim desta vereda perigosa, o eleito, tendo vencido pelo sofrimento, tendo perdido todos os seus bens e renunciado a todos os prazeres deste mundo, encontrará a revelação sob as espécies de Natura, mulher idealmente bela, comparável à jovem iniciadora, anjo da sabedoria, nas Noces Químicas. Do mesmo modo, em O Mercador de Veneza aquele que soube escolher o chumbo e renunciar, dar e arriscar tudo o que possui, encontra o ideal feminino: Pórcia.

Quem é ao certo Pórcia? Certamente, é a rica herdeira, a jovem de maravilhosa beleza, «feliz, diz ela, por ser bastante inteligente e não demasiado velha para poder aprender ainda». Certamente, é idealmente casta, virtuosa, doce. Mas é bem mais ainda. Bellario, o velho advogado de Pádua, diz na carta que recomenda ao doge Baltazar-Pórcia: «Ele aperfeiçoou a minha opinião pela sua própria ciência de que não saberia recomendar-vos bastante a extensão. Nunca vi um corpo tão jovem provido de uma inteligência tão madura». Não são hipérboles. Pórcia domina todo o mundo pela sua infinita sabedoria tanto quanto pela sua encantadora malícia. Domina todo o mundo pela extensão da sua ciência nunca em falta, seja qual for a matéria; brilha pela sua caridade e pela sua compreensão da graça e da clemência, essa piedade que, vimos a propósito do sacrifício da fênix, é a fonte da redenção: O elogio que dela faz perante o doge e perante Shylock não é só o momento mais elevado da peça, é um dos mais altos cumes da obra shakesperiana inteira:

A essência da piedade é estranha à coação;
cai gota a gota do céu como uma doce chuva
cai sobre a terra abaixo dela; é duas vezes bendita,
pois bendiz aquele que dá e aquele que recebe:
é a mais poderosa nos mais poderosos:
assenta melhor ao monarca que a coroa...
está acima da autoridade do cetro;
tem assento no coração dos reis,
é um atributo do próprio Deus;
e o poder terrestre assemelha-se ao de Deus
quando a clemência tempera a justiça (IV, Cena 1, 184-197).

Aqui, Pórcia identifica-se com a Sabedoria universal. Brinca com a fraca inteligência humana, seja a do Talmude; responde à malícia pela malícia, mostra que a lógica é coisa do inferno, coisa de Shylock: um beco sem saída; demonstra que só o coração pode dar à inteligência as verdadeiras luzes e salvar-nos do egoísmo; ensina-nos numa palavra que a nossa inteligência não é senão um trompe-l’oeil e que a verdadeira sabedoria começa onde a outra para. A lógica é coisa do inferno, fruto da árvore da ciência, danação do homem: a condição humana não permite aplicar à letra uma lei humana sem chocar outra lei humana. Para Deus, não é a lei que é a justiça, mas a graça: «com uma justiça estrita nenhum de nós veria a salvação» (Ibid., 193-200).

E é bem a salvação da alma que é a sua verdadeira preocupação. Pórcia liberta Antonio, depois de haver ocasionado as suas desgraças aparentes. Traz a Bassanio, a Lorenzo e a Antonio tanto a riqueza material como a riqueza espiritual, depois de os ter empurrado para a beira do abismo. Todas as provas, é ela que as ocasiona e é ela também que as resolve. Com uma habilidade e uma malícia sem par, servindo-se alternadamente do sofrimento e do terror, da esperança e do amor, conduz os homens na via da sabedoria, desvenda-lhes a vaidade do mundo terrestre e a realidade da nossa vida profunda, como Lorenzo, o seu substituto em Belmont, o fará para Jessica. E não é senão meia-metáfora quando, no quinto ato, diz a Bassanio, numa cena que analisaremos: «Deixai-me dar a luz (light), mas não ser light (leve ou luz, ambiguidade querida) (V, Cena 1, 129).

O papel que assim joga ultrapassa singularmente o que o Fiorentino empresta à Dama de Belmont. Lembra por pormenores precisos — que se poderia crer próprios do poeta — o que joga «a bela jovem» ou iniciadora angélica nas Noces Químicas que Andreae chama também Virgo Lucifera, «virgem portadora de luz». É esta virgem que convida os eleitos a vir às «fianças do rei» — em jargão cabalístico: aproximar-se de Deus, — no seu castelo solitário. É ela que os leva a escolher a sua via entre os três caminhos possíveis. É ela que os recebe no castelo, os submete a provas onde creem roçar a morte, coroa os puros e renvia os impuros não sem os castigar, fazer-lhes beber o copo do esquecimento (para que não se lembrem do que viram no castelo) e fazer-lhes tomar o compromisso de não mais voltar durante esta vida. Esta alegoria da transmigração, que simboliza a breve estadia da alma imperfeita no céu e o esquecimento da felicidade celeste após a reencarnação, cobre traço por traço o triplo juramento que devem prestar os pretendentes de Pórcia: fazer silêncio sobre o que viram — e não mais que os impuros de Andreae viram o interior do verdadeiro cofre — afastar-se sem pedir a sua parte e nunca mais durante esta vida falar de amor a uma virgem ou pretender a sua mão, isto é, não mais pretender a uma felicidade semelhante à de Bassanio, todas condições acrescentadas por Shakespeare ao relato da Gesta.

Eis portanto o verdadeiro papel daquela de quem a cabeleira, diz-nos Bassanio falando-nos dela pela primeira vez, é «a nova Toison de Ouro». A expressão devia soar bem familiarmente aos ouvidos dos conhecedores. Jasão e a Toison de Ouro — era bem sabido, se necessário Heywood recordá-lo-á longamente na sua Idade do Bronze — a viagem dos Argonautas, com Hércules e Orfeu tendo a sua lira, a conquista da Toison fabulosa, era um dos principais mitos da iniciação antiga, da iluminação eleusina. Será também um dos grandes símbolos da Rosa-Cruz; e nas mesmas Noces Químicas, Rosencreutz, na manhã seguinte à prova capital da pesagem da alma, é promovido cavaleiro da Toison de Ouro.


Agora, vejamos mais de perto o quinto ato. Qual é a sua personagem central? Nenhuma daquelas que apareceram até aí, mas uma presença muda: a lua que vai comandar o comportamento de todo o pessoal dramático e à qual, bem entendido, o Fiorentino não faz alusão. O ato abre com estas palavras: «A lua brilha com esplendor». Introduzem a célebre melopeia de Lorenzo e de Jessica cantando sete maravilhas de amor que se cumpriram «numa noite semelhante» a essa. Paul Jamot estabeleceu desde há muito tempo, uma aproximação entre este trecho e um texto da liturgia católica, contido no ofício do Sábado Santo. Cantando em sete versículos os milagres de uma mesma noite de Salvação, o texto, tal como o de Shakespeare, começa cada cesura pelas palavras: «É esta mesma noite na qual...»

Este ambiente religioso do texto, Shakespeare não o escolheu ao acaso. Quando, um instante mais tarde, Lorenzo faz tocar música e explica a Jessica o sentido esotérico, constata com insistência a doçura com que o luar dorme no banco onde vai sentar-se com a sua bem-amada. É sob os raios da lua que inicia Jessica nos segredos da alma e do universo. Imediatamente depois, é a entrada discreta de Pórcia e de Nérissa e, depois de algumas palavras sobre as quais voltarei, esta ordem da jovem:

Silêncio: a lua dorme com Endimião,
e não quereria que a acordassem (V, Cena 1, 109-110).

Sabemos pelo Endimion de Lyly (1591, sendo O Mercador de cerca de 1594) que o mito da Lua, suprema iniciadora do sábio, não era menos familiar aos poetas elisabetanos que aos Gregos que o colocavam no centro da sua doutrina religiosa: é Sêmele-a Lua que presidia aos Mistérios de Eleusis juntamente com o seu filho Íacoco «doador de riqueza»; e as Bacantes, as suas sacerdotisas, iniciadas e iniciadoras, eram consideradas as suas filhas. Tinha-se apaixonado por Endimião, dizia a fábula grega recordada por Lyly (o qual, recorda-se, mistura Pitágoras ao assunto) [5]; e desde então a personagem mítica não simboliza só o sono noturno e o sono da morte, estado da alma liberta do corpo, mas a iluminação do iniciado morto para as coisas da terra. O casamento da Lua e de Endimião, era o símbolo por excelência da alta iniciação. Recordando este mito imediatamente depois do diálogo Lorenzo-Jessica sobre a harmonia das esferas e o de Pórcia-Nérissa sobre o lume e a música, Shakespeare demonstra que conhecia o sentido esotérico tão bem como Lyly [6]. E de uma vez temos a prova de que não situou arbitrariamente durante a noite e ao claro de lua este último ato que dramaticamente poderia ter-se desenrolado em pleno dia, como acontece no italiano.

Ora, numa fórmula que já não é para nós de todo sibilina, imediatamente antes da entrada de Bassanio e de Antonio regressado de Veneza, Pórcia constata: «Esta noite parece-me ser apenas a luz de um dia doente; — parece apenas mais pálida: é um dia — como é o dia quando o sol está escondido». A estas palavras Bassanio, regressando, responderá: «Teríamos dia com os Antípodas — se vos passeásseis na ausência do sol»; pois Pórcia «dá a luz...» (V, Cena 1, 124-128).

A observação da jovem sobre a estranheza desta noite luminosa — estamos a duas horas da aurora! — releva na verdade de todo um simbolismo tradicional de que encontramos na elegia da fênix por «Ignoto» um outro eco: «Febe doente», e, no poema de Ben Jonson na mesma coletânea, o pendant exato, até às palavras: «Fênix, uma beleza de clara... Luz que da Noite faria um Dia.» Há muito que se aproximou do texto shakesperiano este versículo de Isaías, XXX, 26: «A luz da lua brilhará como a luz do sol; a luz do sol será sete vezes mais deslumbrante no dia em que o Senhor fechar a ferida do seu povo e curar as suas chagas». Mas este versículo, Andreae também o reproduz nas Noces, pois está gravado, diz ele, numa medalha onde a lua está em oposição com o sol; símbolo alquímico tradicional da redenção.

Isto não é tudo. Textos bem conhecidos, de Porfírio — De Antro Nympharum — e de Jâmblico — Vida de Pitágoras — que praticavam os Elisabetanos, informam-nos que os templos pitagóricos eram ao mesmo tempo subterrâneos e iluminados pelo dia de tal maneira que, tal como a caverna de Platão, não se podia nunca ver o sol [7] beneficiando da luz do dia. E não é menos sabido que os «mistérios» de Eleusis se desenrolavam num subterrâneo, à luz artificial, de onde se reconduzia o iniciado para uma luz do dia difusa no recinto de um templo escondendo à vista o céu e o sol. Esta tradição antiga era bem viva nos tempos de Shakespeare, pois nas Noces Químicas, durante a noite que segue a iniciação dos eleitos, a «jovem» aparece, vestida com uma roupa de prata (lua) tão brilhante que se podia mal suportar o seu esplendor e que com o concurso de milhares de pequenas luzes (estrelas) iluminava a sala «como em pleno dia».

É manifestamente a uma cena semelhante que Shakespeare alude aqui. O objetivo da iniciação, diz muito justamente M. Victor Magnien, é reconduzir à luz e à ordem a alma lançada nas trevas da vida terrestre e corpórea. A luz física simboliza tradicionalmente a luz espiritual; é por isso que as iluminações de Eleusis — «de Noite em Eleusis, sob uma luz deslumbrante» — significam propriamente, segundo os termos de Olimpiodoro, que a alma do iniciado «venceu a vida tenebrosa e terrestre» e vive doravante «no dia», isto é, na verdade e na luz. Tais parecem bem ser este «dia de que o sol está ausente» e esta Luz que Pórcia dispensa aos visitantes de Belmont.

Desde então, o episódio dos cofres toma bem este significado primordial que suspeitávamos à partida considerando o lugar concedido por Shakespeare a este tema. É com o objetivo de tornar possível o casamento-iniciação Bassanio-Pórcia e a fim de garantir o juramento prestado diante dos cofres, que Antonio consente ao seu duplo aval e vai até ao sacrifício supremo.

Mas primeiro o que é Antonio?

O seu mutismo pouco intrigou os comentadores. Shakespeare sublinha com insistência o seu caráter triste e taciturno. Antonio não tinha contudo sido sempre assim: «Mudastes muito» constata Graziano. Este mercador-tipo da cidade mercadora por excelência professa uma indiferença total pelos bens deste mundo e pelo risco que correm os seus navios carregados de especiarias, espalhados por todos os mares do globo. É em vão que no decurso da longa cena do início os seus amigos procuram decifrar as causas desta melancolia e deste mutismo; Antonio diz-nos sem rodeios: não é nem o comércio e os perigos do mar, nem o amor, nem nenhuma paixão nem nenhum vício. Só tem um prazer: a sua amizade por Bassanio — pura, insuspeitável, absoluta até ao sacrifício, comparável à da Fênix pela Rola. Mas este sacrifício é uma espécie de missão à imitação de Cristo: «Sou a ovelha gasta do rebanho (porquê? ele é o mais puro, o mais desinteressado!) prometida à morte: o fruto mais fraco cai em terra primeiro» (IV, Cena 1, 114-116). Sente-se suficientemente pago pois Bassanio veio «vê-lo no momento de morrer».

Não mais que Bassanio escolhendo o cofre de chumbo, Antonio hesitou em empenhar tudo pelo bem do amigo. Serve-lhe de aval ao perigo da sua vida corpórea — compromisso perante Shylock —, depois ao perigo da sua vida espiritual — compromisso perante Pórcia que, no quinto ato, reclama formalmente o seu aval (uma invenção do poeta) restituindo definitivamente a aliança a Bassanio e exigindo dele um segundo juramento de fidelidade, como era o uso também em Eleusis.

Há neste duplo aval uma progressão muito significativa. Eis em que termos Antonio resume ele mesmo a situação no fim da peça: «Uma primeira vez, empenhei o meu corpo pelo seu bem… — desta vez, ouso jurar de novo — pela minha alma, que o vosso marido — não quebrará mais nunca de pleno grado a sua fé» (V, Cena 1, 249-253). Se tivesse tomado o primeiro compromisso um pouco levianamente, se estava seguro de antemão de que a letra proposta pelo judeu «não podia ser a menor causa de temor», é com toda a gravidade do juramento e em pleno conhecimento de causa que empenha a salvação da sua alma para avalizar «a fé» de Bassanio. Tem a certeza de que a sua salvação, de que mede a importância, não corre nenhum risco, que nunca mais Bassanio se separará de pleno grado da aliança.

Shakespeare desmesurou o desenvolvimento deste tema da aliança de que não encontrou no Pecorone senão um esquema breve. Quando, imediatamente depois da boa escolha do cofre, Pórcia entregou a aliança a Bassanio, conjurou-o a guardá-la preciosamente: «Se vos separásseis dela, se a perdesses ou a déssedes, que isso pressagiasse a ruína do vosso amor!» (III, Cena 2, 171-175). Otelo atribui uma virtude análoga ao lenço da Síbila. Mas trata-se aqui de uma coisa bem mais grave: é por isso, repetindo quatro vezes a palavra, no fim de cada verso, Pórcia apostrofa assim Bassanio: «Se soubésseis a virtude da aliança, — ou mesmo só a metade do valor daquela que vos deu a aliança — ou a honra que vos era feita de conservar esta aliança — então não vos teríeis separado desta aliança. Se vos tivesse agradado defendê-la — com palavras bastante ardentes, — que homem seria tão desarrazoado — para faltar a tal ponto de tato e reclamar a aliança que se tinha por um emblema sagrado (ceremony)» (V, Cena 1, 199-206). Se se tratasse de um banal compromisso nupcial, como seriam estranhas estas palavras de emblema sagrado e de honra feita ao portador de a conservar, de virtude da aliança, de preço daquela que lha tinha dado!

Nada no caráter de Bassanio pode fazer suspeitar a sua fidelidade; e não é verosímil que Shakespeare, que tomou muitas outras liberdades com o Fiorentino, tenha adotado um tema tão sórdido sem uma segunda intenção. De fato, o segundo juramento de Bassanio e o segundo aval de Antonio, selam o compromisso tomado no momento da escolha do cofre de chumbo: a constância, o ne varietur que estes versos impõem a Bassanio em consequência do seu casamento-iniciação. Eis por que Pórcia, na apostrofe citada, mistura casamento e sagrado, zelo de adepto e veneração, e ousa — pela primeira vez — proclamar o seu «valor» mais que humano, quando no momento da escolha não era senão uma «rapariga sem instrução» (unlesson’d girl).

É que este casamento, condicionado pela renúncia a todas as coisas terrestres, mesmo ao amor, não está longe do da Fênix e da Rola de que vimos que simboliza a perfeição da alma, a sua segunda nascença, a união da Constância e do Amor. É isso que garantia a conservação da aliança, para além dos usos sociais. Acrescentarei que uma aliança era do mesmo modo entregue às Bacantes no momento da sua iniciação e que atestava o seu poder? Direi enfim que é uma aliança que, nas Bodas Químicas, é o sinal distintivo do guardião da porta do castelo de Deus; que o «rei» entregará esta mesma aliança a Christian Rosencreutz como insígnia da sua função; e que um dos principais ofícios desta consiste em entregar aos eleitos uma medalha portando a legenda Constantia?

Tal é para além de um conto banal, a «fidelidade» que avaliza Antonio.

Mas por que faz Shakespeare jogar ao só Antonio este papel de avalista, ao físico como ao moral? Por que faz dele o bode expiatório, «a ovelha gasta», o «fruto mais fraco que cai primeiro»? Pois nunca Antonio age por sua própria conta, mas unicamente para a salvação do amigo. Encarrega-se do fardo a fim de abrir a Bassanio o caminho da salvação e da felicidade física e moral. É como o deus salvador e sacrificado. Mas se ao ponto de chegada Antonio nos aparece como um homem dotado de absoluta perfeição, não é de todo irrepreensível no início. Certamente, Shylock, o titã que o fere e ameaça matá-lo, é um ser abjeto pelo menos aparentemente — veremos que não é nada, — um ser de quem se põe quase em dúvida o caráter humano e de quem Graziano se pergunta se não é a reencarnação de um lobo enforcado por ter estrangulado um homem [8]. Não deixa de ser que Shylock é um ser humano e que Shakespeare, levantando maravilhosamente e talvez pela primeira vez a questão racial e a questão social, condena aqueles que, tal como Antonio, atentam contra a sua dignidade humana.

Antonio, ter-se-ia podido crer, era o altruísta perfeito, renunciando a todas as alegrias da terra, vivendo só por e para a amizade ideal, mística. Era aquele de quem nos dizem: «Não há homem melhor no mundo» (II, Cena 8, 35). É contudo ele que encarna o preconceito racial sob a sua forma mais cruel. É ele que inflige a Shylock todas as infâmias, abatendo-o de injúrias, cuspindo-lhe no rosto, espancando-o em pleno mercado. Como justificará o seu ódio? Pelo só ódio à usura e pelo horror ao talmudismo. De tudo isso nem uma palavra nas fontes.
Não compreendeu o que Shylock — que ousadia da parte do poeta, no ano mesmo da execução de Lopez, em plena vaga de anti-semitismo! — gritará na face de Salanio: o judeu também é um homem, sangrando ou sofrendo na sua carne e no seu coração, como um cristão, capaz de bondade — Shylock não dirá, lamentando o seu criado que o foge: «No fundo ele era gentil, este pequeno» (II, Cena 5, 46)? — capaz também de ódio como um cristão, tendo as mesmas reações físicas e morais. De tudo isso também a mais pequena palavra nas fontes. E se Shakespeare, pelo truque do mesmo Shylock, estende o problema à escravatura e às desigualdades sociais, é que Antonio não compreendeu mais que os outros esta verdade humana e divina:

Tendes entre vós mais de um escravo comprado em leilão
que como os vossos asnos e os vossos cães e as vossas mulas
empregais em trabalhos abjetos e servis
porque os comprastes: dir-vos-ei
libertai-os, casai-os com os vossos filhos?
Por que devem eles suar sob os fardos? Que os seus leitos
sejam tão macios como os vossos, e que os mesmos alimentos lisonjeiem o seu paladar! (IV, Cena 1, 90-97.)

Seria portanto um erro reduzir o duelo Antonio-Shylock a uma protestação contra os preconceitos raciais. Trata-se em primeiro grau de uma protestação contra todas as iniquidades sociais, contra qualquer preconceito; eis bem por que, pregando com o exemplo, Pórcia zomba do estilo submisso no qual o seu criado se dirige a ela, enquanto trata ela mesma Nérissa a sua seguinte como uma verdadeira irmã, desvendando-lhe no quinto ato os altos símbolos do universo. Fraternidade, tal é a exigência que formula o poeta.

Antonio não o tinha compreendido. Tinha reduzido a uma escolha a mensagem aos Gentios. Tinha ignorado a igualdade de todos os homens perante Deus. Tal é a sua parte de obscurantismo de que bem entendido o Fiorentino não suspeita nada. Este obscurantismo não será só castigado, será dissipado pela humilhação e pelo terror. Explorando uma situação, Shakespeare constrangerá Antonio o anti-semita a ajoelhar-se perante o seu inimigo, a suplicá-lo, a humilhar-se perante ele publicamente como o havia humilhado, a receber as suas injúrias, as piores, tão pacientemente como o outro as tinha suportado, a sofrer na sua própria carne a dor que tinha infligido a Shylock. Do homem, de quem julgava não ter nada a aprender, aprenderá a vaidade da vida, a necessidade do último sacrifício para se resgatar.

Ora, do mesmo modo que em Belmont Pórcia joga, maliciosamente, com o terror de Bassanio e o leva, pela escolha dos cofres, à beira do desespero recusando facilitar-lhe o caminho e revelar-lhe o segredo de que depende a sua felicidade, mas guia a sua escolha pela música, do mesmo modo, em Veneza, perante o doge, leva o jogo com uma encantadora crueldade. Sabe de antemão que o judeu não poderá triunfar do seu último argumento e que Antonio será necessariamente salvo; contudo, ordena-lhe que descubra o peito, que se prepare para receber o golpe mortal. Reclama uma balança e um cirurgião. Põe tudo em obra ao mesmo tempo para suscitar a piedade no coração de Shylock e o terror no de Antonio. O que em Giovanni Fiorentino era um facto diverso sem consequências torna-se aqui uma prova de duas almas.

Não é sem dúvida por acaso que Shakespeare insiste na pesagem da libra de carne e põe sob os nossos olhos e sob os olhos de Antonio a balança de vida e de morte — de que não fala o contador italiano. É que a pesagem é um velho símbolo esotérico, a prova maior que a alma humana deve sofrer no fim do périplo e que separa o puro do impuro. Os Rosa-Cruz tinham recolhido esta alegoria. Andreae descreve-nos longamente nas Noces Químicas: na manhã seguinte à chegada ao «castelo» de Deus, todos os chamados são pesados numa balança, e todos aqueles que estão agravados pelo peso do pecado deverão sofrer a pena capital; esta prova, perante a qual Rosencreutz ele mesmo não treme menos que o Mercador de Veneza, separa os justos dos injustos e determina a admissão à grande obra da redenção. Antonio liberto, penetra na própria noite no «paraíso» de Belmont — a palavra é de Jessica (III, Cena 5, 74) — é admitido na presença da «luz» noturna de Pórcia, avaliza o segundo juramento de fidelidade de Bassanio e faz restituir definitivamente a aliança: do mesmo modo no «castelo» de Deus, a noite depois da pesagem e da coroação dos eleitos, eis o esplendor fulgurante emanando da roupa prateada da jovem, o juramento de fidelidade prestado ao «rei», e enfim a transmissão da aliança do porteiro.


Assim a pesagem separa aqui e ali o mundo obscuro do mundo iluminado. Belmont é o «paraíso» para Jessica salva, batizada depois iniciada; do mesmo modo a casa de Shylock é para ela um «inferno» (hell). Em face de Pórcia dadora de luz, há Shylock o obscuro de alma «negra como o Érebo» [9]; em face da iniciação ao som da música, há o homem «que não traz a música em si».

Shylock é «uma espécie de diabo» (II, Cena 2, 24), é mesmo para Lancelot «o diabo encarnado» (Ibid., 27). Simples metáfora. É um homem estranho à música, aos acordes da harmonia universal; é consequentemente um homem privado de toda a luz espiritual, «capaz de todas as traições», de todas as baixezas. É um homem sem coração, sem piedade, e prova-o sobejamente; é demasiado inteligente, demasiado lógico — «teologia de inferno» dirá Iago. É prisioneiro da inteligência racional, enquanto o «coração dá instantaneamente o Conhecimento». Pórcia compreendeu-o desde logo: é pela via da piedade, acesso secreto do coração, que poderá reconduzir esta alma desgarrada para a Luz do Espírito.

Pois tal é na realidade o «inferno» de Shylock: a secura do coração, a obscuridade das paixões — paixão do ouro, da dominação, da vingança, — a obscuridade da ignorância. Um inferno que cabe ao homem destruir ou fugir; e é a mensagem de todos os iluministas da época. É por isso que todos aqueles que não estão irremediavelmente ligados à noite do espírito, fogem da casa de Shylock: Jessica e Lancelot, e refugiar-se-ão no paraíso de Belmont onde a noite é tão clara como o dia. Fugindo ao pai, Jessica quer escapar ao inferno do desespero e do ódio para aceder pelo batismo e pela afeição («a esposa amante») à música da alma e ao amor universal.

Claro, Shylock não irá tão longe na via da redenção. Mas o monstro de crueldade que é até ao julgamento será corrigido ele também e reposto no direito caminho. Atravessará a grande prova do roubo, da dilapidação dos seus bens pela «sua própria carne, o seu próprio sangue»; não se poderia mais cruelmente castigá-lo por causa da sua avareza. Sofrerá a penhora de tudo o que lhe resta, e é para ele a pena mais pesada: «Tirais-me a vida quando tomais aquilo por que vivo» (IV, Cena 1, 376-377). Será condenado à morte e deverá pedir de joelhos a sua graça ao duque, essa graça que vinha de recusar a Antonio. Ressentirá na sua própria carne a necessidade da piedade que a lógica não tinha bastado para lhe explicar, quando Pórcia tinha feito o seu elogio. Certamente, o seu gesto está longe de atingir o valor do de Antonio: não renunciou deliberadamente às coisas da terra. Mas é um primeiro passo. A coação ao bem é já um começo de bem: por coação, ele que nunca tinha dado, legará a Lorenzo, ao raptor-salvador da sua filha, uma parte dos seus bens; por coação batizar-se-á, abjurando o legalismo-talmudismo que dava à sua obscuridade um semblante de justificação. Certamente, este primeiro périplo espiritual o esgota e o mata, a sua última palavra é uma súplica e uma confissão: que o autorizem a regressar a casa, não se sente bem. Irá morrer à parte como uma fera mortalmente ferida. Mas o «lobo encarnado» tornou-se um ser humano, as condições exteriores da salvação estão preenchidas; poderá, noutra vida, esperar novos progressos espirituais.

É assim que, com uma gradação recordando os graus do avanço espiritual dos seus pretendentes, Pórcia renova perante os principais antagonistas o milagre de Orfeu reacordando as almas. Realiza estas metamorfoses empurrando os heróis para a renúncia sob as suas diversas formas: piedade, caridade, humildade, desdém dos bens, desprezo da existência. E recorre ao meio tradicional dos mestres da iniciação mística e dos hierofantes de Eleusis: o terror, a prova terrificante. Pois o terror rasga o véu da lógica e desnuda o coração que, segundo a palavra de Ben Jonson, «dá instantaneamente o Conhecimento». Até no pormenor, Pórcia, dadora de luz, age como a virgo lucifera das Noces Químicas.

O objetivo dramático do quinto ato aparece-nos desde então claramente, e nada se justifica mais que a hora noturna escolhida por Shakespeare, a hora em que «a Lua dorme com Endimião». Do mesmo modo que ao sair das passagens subterrâneas de Eleusis onde é suposto renunciar e morrer para a terra e onde aprende as verdades esotéricas por alegorias terrificantes e pela euritmia da música e da dança, o misto remonta para a luz artificial onde o hierofante lhe ensina, desta vez em linguagem clara, o sentido das alegorias místicas, (mutatis mutandis, a escolha entre as três vias, as provas noturnas, o temor da morte, e a renúncia depois o triunfo de Christian Rosencreutz), do mesmo modo, à saída da iniciação pela euritmia (escolha entre os três cofres ao som da música e do canto da renúncia), depois à saída de provas terrificantes (o sacrifício virtual de Antonio e de Bassanio e o assunto da aliança), os eleitos aprendem nos jardins de Belmont, numa «noite clara como um dia de que o sol está ausente», o sentido secreto das coisas; e Pórcia que «dá a luz» convida-os enfim a interrogá-la, a fim de que lhes possa «dizer toda a verdade».

Certamente, como sempre, Shakespeare só fala por alusões, numa parábola que só compreendem os iniciados (era na época, sabe-se, toda a elite londrina). Como fará em Cimbeline, no Conto de Inverno, na Tempestade, propõe ao espectador uma imagística eleusina desenhada a partir de um miserável conto popular. Mas, como à leitura dos livros sagrados que nunca falam senão por alegoria, a semente levanta à revelia do não-iniciado e leva os seus frutos no subconsciente. Dessa sorte, Shakespeare soube pôr a mensagem iluminista ao alcance do vulgo sem a vulgarizar [10].


Ver online : Paul Arnold


ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955.


[1Sobre a interpretação proposta pela escola de Wilde, cf. p. 262, nota 1.

[2A. Lefranc, pelo contrário, pretende negar toda a relação entre a peça e o fato histórico. É difícil ir até aí; não é possível que o espectador da época não tenha estabelecido uma aproximação. Mas sem dúvida o objetivo de Shakespeare era todo outro que o que pensa a crítica stratfordista, como vamos ver.

[3Quintiliano (De Musica) fazendo como ele a parte da lenda e do simbolismo diz: «A música... em épocas recuadas foi não só cultivada, mas venerada, a tal ponto que os mesmos homens eram considerados músicos, poetas e sábios, Orfeu e Lino entre outros, ... o primeiro, porque adoçava maravilhando-os os espíritos selvagens e incultos, teve a reputação de ter arrastado não só as feras selvagens, mas ainda as rochas e as florestas.»

[4Como toda alegoria cabalística perfeita deve ter cinco elementos, Agnostus acrescenta, marchando atrás destas duas mulheres, duas outras, das quais uma leva um fole, símbolo pneumático, a outra uma tocha acesa, símbolo usual da luz iniciática transmitida pelo ensino secreto.

[5O Mercador de Veneza é a única obra shakesperiana onde Pitágoras figura em nome. Cf. infra, p. 169.

[6Assinalo de passagem a verdadeira fonte de um mito muito pouco conhecido que Shakespeare aproveitou nos seus dois últimos sonetos: Eros-Amor adormecido perto de uma fonte havia deposto a sua tocha ao lado dele; umas ninfas aproximaram-se; uma delas apanhou o archote e mergulhou-o na fonte gelada; o fogo do «general do desejo ardente» extinguiu-se para sempre e a fonte aquecida tornou-se «um banho e um remédio salutar». Este mito está inscrito só num texto antigo que nos chegou, a Vida de Jâmblico, capítulo das Vidas dos filósofos neoplatónicos de Eunápio. Este livro secundário era portanto bastante conhecido na época para fornecer um tema aos poetas.

[7No seu notável estudo sobre a Basílica pitagórica da Porta Maior, M. Carcopino demonstrou que este edifício preenchia exatamente todas as condições arquitetónicas exigidas por Jâmblico. É subterrâneo e iluminado por meio de um «poço» perfurado no teto, por cima da entrada do templo.

[8A alusão que o texto de Shakespeare faz aqui a Pitágoras e à sua doutrina da transmigração é, na boca do rústico Graziano, uma recordação da tradição popular, heterodoxa, do pitagorismo que, do mesmo modo que o budismo mahayanista, sempre rejeitou a crença na encarnação da alma humana num corpo animal ou inversamente. Nova prova de que Shakespeare nada ignorava destas nuanças doutrinais. A licantropia ou crença na metamorfose do homem em lobo era de outro lado um dos grandes temas das polémicas religiosas no seu tempo. Jean Bodin em 1580, o seu adversário Reginald Scot em 1584, entre outros, dedicaram-lhe capítulos inteiros.

[9Landauer (SHAKESPEARE) tentou analisar o nome de Shylock em «lock»: lugar, recinto, antro (ingl. loch) e «shy»: temer a luz, espantar-se, manter-se à parte. Ignoramos a etimologia ou a fonte do nome que Shakespeare talvez encontrou nos meios judeus (o nome próprio Schiloh aparece várias vezes nas Escrituras). Mas habituou-nos demasiado a nomes falantes (Philharmonus, Eriphyle, Sycorax, etc.) para que se possa de início afastar esta hipótese.

[10As aproximações assinaladas por M. Jean Paris (Shakespeare par lui-même) entre O Mercador de Veneza e as Noces químicas de Andreae são emprestadas a uma pré-publicação do presente capítulo em Les Cahiers du Sud.