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O Dia do Juízo

Agamben (2020) – Dos ajudantes em Kafka

Os Ajudantes e o Messianismo: Constatações sobre o Inacabado e o Esquecido

O Fenômeno dos "Ajudantes" em Kafka e a Figura Crepuscular
  • Nos romances de Kafka, surgem criaturas que se autodenominam "ajudantes" (Gehilfen), mas que, paradoxalmente, parecem inteiramente incapazes de prestar qualquer auxílio, demonstrando ignorância sobre qualquer assunto, carência de "aparelhos" e cometendo apenas disparates e infantilidades, sendo por vezes descritos como "molestos", "descarados" e "lascivos".
  • Em termos de aparência, estas figuras são tão semelhantes que se distinguem apenas pelo nome (como Arturo, Geremia), assemelhando-se "como serpentes", mas manifestam-se como atentos observadores, "rápidos" e "ágeis", dotados de olhos faiscantes e, em contraste com seus modos pueris, possuem rostos que parecem adultos, "quase de estudantes", e barbas longas e fartas.
  • Esses seres, designados por uma fonte não identificada e difíceis de serem afastados, geram a incerteza quanto à sua verdadeira identidade, podendo ser inclusive "enviados" do inimigo (o que explicaria sua incessante atividade de espreitar e espionar); contudo, evocam a imagem de anjos ou mensageiros que desconhecem o conteúdo das cartas que devem entregar, mas cuja expressão – sorriso, olhar, ou mesmo a maneira de andar – "parece uma mensagem".
  • A experiência humana encontra-se com tais criaturas, que Benjamin designa como "crepusculares" e inacabadas, guardando semelhança com os gandharva das sagas indianas, seres metade gênios celestes e metade demónios.
  • Tais figuras caracterizam-se pela ausência de um lugar fixo, de contornos nítidos e inconfundíveis, e pela constante condição de ascensão ou queda, de intercâmbio com seu inimigo ou vizinho, apresentando-se sempre em uma idade completa, mas ainda imatura, profundamente exaustas, mas no início de uma longa jornada.
  • Embora frequentemente mais inteligentes e dotadas que outros amigos, e incessantemente envolvidas em imaginações e projetos para os quais parecem ter todas as qualidades, estas criaturas falham em concluir qualquer empreendimento, permanecendo geralmente sem obra e encarnando o tipo do estudante eterno e do "enganador do mundo", que envelhece mal e que, no fim, o indivíduo deve, ainda que a contragosto, deixar para trás.
  • Apesar de sua incompletude, nessas figuras há sempre algo — um gesto não finalizado, uma súbita graça, uma certa audácia matemática nos julgamentos e no gosto, uma leveza etérea de membros e palavras — que atesta sua pertença a um mundo complementar e alude a uma cidadania perdida ou a um além inviolável.
  • O auxílio por eles oferecido pode ter residido exatamente em sua qualidade de inajudáveis, em sua obstinada afirmação de que "para nós não há nada a fazer", mas é precisamente por isso que o indivíduo reconhece, no final, tê-los de alguma forma traído.
A Figura do Ajudante na Literatura Infantil e o Arremedo da Seriedade
  • A literatura infantil, talvez porque a criança seja um ser incompleto, está repleta de ajudantes: seres paralelos e aproximativos, ora muito pequenos, ora muito grandes, tais como gnomos, larvas, gigantes bondosos, génios e fadas caprichosas, grilos e lesmas falantes, burrinhos que defecam moedas e outras criaturinhas encantadas que surgem milagrosamente no momento de perigo para salvar a boa princesinha ou João Sem Medo.
  • Estes são os personagens que o narrador tende a esquecer no desfecho da história, quando os protagonistas vivem felizes para sempre, e nada mais se sabe a respeito dessa "gentelha" inclassificável à qual, no fundo, eles devem a totalidade de sua felicidade.
  • A importância dessas figuras é evidenciada pela reflexão sobre o que seria a vida de Próspero sem Ariel, após ele ter se despojado de todos os seus encantamentos e retornado, junto aos outros humanos, ao seu ducado, conforme a peça.
  • Pinóquio, o boneco maravilhoso que Geppetto fabrica para juntos viajarem pelo mundo e assim ganharem "um pedaço de pão e um copo de vinho", constitui um exemplo perfeito de ajudante.
  • Essa figura, que não está nem morta nem viva, meio golem e meio robô, eternamente pronto a ceder a todas as tentações e a prometer, no instante seguinte, que "de hoje em diante serei bom", representa o arquétipo da seriedade e da graça do inumano.
  • Na versão original do romance, antes da inclusão de um final edificante pelo autor, Pinóquio "estica os pés" e morre da forma mais vergonhosa, sem ter se transformado em um menino de verdade.
  • Também Lucignolo é um ajudante, com sua "personinha seca, magra e esgalgada, exatamente como o pavio novo de uma lamparina de noite", que anuncia aos companheiros o País da Cucanha e ri às gargalhadas ao notar o crescimento de suas orelhas de asno.
  • Os "assistentes" de Walser são da mesma estirpe, irremediavelmente e teimosamente engajados em colaborar em uma obra inteiramente supérflua, para não dizer inqualificável.
  • O estudo que parecem realizar diligentemente tem o propósito de se tornarem um zero redondo e completo, pois se recusam a auxiliar o que o mundo considera sério, visto que, na verdade, não passa de loucura, preferindo, em vez disso, dedicar-se a passear.
  • Ao se depararem com um cão ou outro ser vivo durante o passeio, eles sussurram: "não tenho nada para te dar, caro animal, te daria de bom grado algo, se o tivesse", apenas para, no final, deitarem-se em um prado e chorarem amargamente por sua "estúpida existência de imberbes".
  • O fenômeno dos ajudantes estende-se também aos objetos, e cada indivíduo preserva um destes objetos inúteis, que é metade recordação e metade talismã, dos quais sente certa vergonha, mas dos quais não renunciaria por nada no mundo.
  • Tais objetos podem ser um velho brinquedo sobrevivente das hecatombes infantis, um estojo escolar que guarda um odor perdido ou uma t-shirt apertada que se mantém, sem razão, na gaveta das camisas "de homem".
  • Algo semelhante deve ter sido o trenó Rosebud para Kane, ou o falcão maltês para seus perseguidores, objeto que, no fim, revela ser feito da "mesma matéria de que são feitos os sonhos", ou ainda o motor de motocicleta transformado em batedor de nata, descrito por Sohn-Rethel em sua descrição de Nápoles.
  • A destinação final destes objetos-ajudantes, que são testemunhas de um éden inconfessado, não é conhecida, e para eles não existe um depósito ou uma arca para a eternidade, semelhante à genizah em que os judeus guardam os velhos livros ilegíveis, pela possibilidade de que neles possa estar escrito o nome de Deus.
Os Ministros do Messias no Sufismo de Ibn-Arabi
  • O capítulo 366 das Iluminacoes da Meca, obra-prima do grande sufi Ibn-Arabi, é dedicado aos "ajudantes do Messias".
  • Esses ajudantes (wuzara, plural de wazir, o vizir encontrado nas Mil e Uma Noites) são homens que, no tempo profano, já possuem as características do tempo messiânico, pertencendo já ao último dia.
  • De maneira curiosa — e talvez por essa mesma razão —, eles são escolhidos entre os não-árabes, sendo estrangeiros entre os árabes, mesmo que falem sua língua.
  • O Mahdi, o messias que surge no final dos tempos, necessita de seus ajudantes, que são de certa forma seus guias, embora na verdade não sejam senão as personificações das qualidades ou "estações" de sua própria sabedoria.
  • O Mahdi toma suas decisões e profere seus julgamentos somente após consultar-se com eles, visto que são os verdadeiros conhecedores daquilo que existe na realidade divina.
  • Graças aos seus ajudantes, o Mahdi consegue compreender a linguagem dos animais e estender sua justiça tanto aos homens quanto aos jinn.
  • Uma das qualidades dos ajudantes é, de facto, a de serem "tradutores" (mutarjim) da língua de Deus para a linguagem dos homens.
  • Segundo Ibn-Arabi, o mundo inteiro não passa de uma tradução da linguagem divina, e os ajudantes são, neste sentido, os operadores de uma incessante teofania, de uma contínua revelação.
  • Outra qualidade dos ajudantes é a "visão penetrante", por meio da qual eles reconhecem os "homens do invisível", ou seja, os anjos e outros mensageiros que se ocultam sob formas humanas ou animais.
  • A questão de como reconhecer os ajudantes e tradutores permanece, visto que, sendo estrangeiros, eles se ocultam entre os fiéis, levantando a dúvida sobre quem possuirá a visão necessária para distinguir os visionários.
O Anão Corcunda, o Esquecimento e a Redenção
  • O anão corcunda, que Benjamin evoca em suas memórias infantis, é uma criatura intermediária entre os wuzara e os ajudantes de Kafka.
  • Este "inquilino da vida distorcida" não é apenas a cifra da inabilidade pueril ou o malandro que rouba o copo de quem deseja beber e a oração de quem deseja rezar.
  • Aquele que o contempla "perde a capacidade de prestar atenção" tanto a si mesmo quanto ao anão.
  • O corcunda é, na verdade, o representante do esquecido, que se apresenta para exigir em cada coisa a porção do esquecimento.
  • Esta porção tem relação com o fim dos tempos, assim como a desatenção não é senão um antecipação da redenção.
  • As distorções, a corcunda, as inabilidades são a forma que as coisas assumem no esquecimento.
  • Aquilo que o indivíduo sempre esqueceu é o Reino, pois a existência é vivida "como se Reino não fôssemos".
  • Quando o messias chegar, o torto se tornará direito, a inabilidade se transformará em desembaraço e o esquecimento se lembrará de si mesmo.
  • Isto se fundamenta na ideia de que "para eles e seus semelhantes, os incompletos e os inaptos, é-nos dada a esperança".
Messianismo, Redenção e a Permanência do Não-Realizado
  • A convicção de que o Reino está presente no tempo profano em formas dissimuladas e distorcidas, de que os elementos do estado final se ocultam precisamente naquilo que hoje parece infame e ridicularizado, e de que a vergonha está secretamente ligada à glória, constitui um profundo tema messiânico.
  • Tudo o que agora se apresenta como envilecido e insignificante é o penhor que deverá ser resgatado no último dia, e a salvação será guiada justamente pelo companheiro que se perdeu pelo caminho.
  • O rosto que será reconhecido será o do companheiro perdido, seja ele o anjo que toca a trombeta ou aquele que, distraído, deixa cair o livro da vida.
  • A faísca de luz que emerge nos defeitos e nas pequenas abjeções não era outra coisa senão a própria redenção.
  • Nesse sentido, também foram ajudantes o mau colega de escola que passou as primeiras fotografias pornográficas por baixo da carteira ou o sórdido quartinho onde alguém mostrou a nudez pela primeira vez.
  • Os ajudantes são os desejos não realizados, aqueles que não são confessados nem a si mesmo, e que no dia do juízo virão ao encontro do indivíduo sorrindo como Arturo e Geremia.
  • Nesse dia, os rubores serão descontados como promissórias para o paraíso, pois reinar não significa realizar, mas sim que o não-realizado é aquilo que permanece.
O Ajudante como a Figura da Relação com o Perdido
  • O ajudante é a figura daquilo que se perde, ou, mais precisamente, da relação com o perdido.
  • Esta relação abrange tudo aquilo que, na vida coletiva e individual, é esquecido a cada instante, a massa interminável daquilo que irrevogavelmente se perde nessas vidas.
  • A cada momento, a medida do esquecimento e da ruína, o desperdício ontológico que se carrega, excede em muito a piedade das recordações e da consciência.
  • Este caos informe do esquecido, que acompanha o indivíduo como um golem silencioso, não é inerte nem ineficaz; pelo contrário, atua com não menos força do que as recordações conscientes, embora de modo diferente.
  • Existe uma força e quase uma interpelação do esquecido, que não podem ser medidas em termos de consciência nem acumuladas como um saber, mas cuja insistência determina o status de todo saber e de toda consciência.
  • O que o perdido exige não é ser lembrado ou realizado, mas sim permanecer no indivíduo enquanto esquecido, enquanto perdido e, unicamente por isso, inesquecível.
  • Nisso tudo o ajudante está em casa, pois ele soletrar o texto do inesquecível e o traduz para a língua dos surdos-mudos.
  • Daí deriva seu gesticular obstinado e seu rosto impassível de mímico, e também sua irremissível ambiguidade, visto que do inesquecível só se manifesta a paródia.
  • O lugar do canto encontra-se vazio, e ao lado e ao redor os ajudantes se agitam, preparando o Reino.

Ver online : Giorgio Agamben


AGAMBEN, Giorgio. Il giorno del giudizio. Roma: nottetempo, 2020.