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L’été sans bord
Michel Onfray – Thoreau
Journal hédoniste
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A análise dos quinze volumes do diário mantido por Henry David Thoreau entre 1837 e 1861 revela a constituição de um filósofo romântico que, ao longo de duas décadas e meia, rejeita deliberadamente a orientação europeia e a tradição do Leste para voltar-se ao Oeste, aos territórios virgens e às culturas indígenas, demonstrando um interesse inabalável e preferindo escavar o solo em busca de relíquias e pontas de flechas a dedicar-se aos livros de Descartes ou Hegel, visto que nos artefatos reside uma energia humana concentrada em forma, enquanto nos livros há apenas papel.
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A verdadeira compreensão da realidade para este pensador manifesta-se na preferência pela materialidade tátil de uma ponta de flecha, avaliando sua ergonomia, corte e fabricação através do contato físico direto, em detrimento da leitura de tratados teóricos sobre a fabricação de flechas ou teses acadêmicas sobre o assunto, estabelecendo uma crítica à corporação filosófica acadêmica que confunde o ensino do pensamento alheio com o ato de pensar e viver por si mesma.
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A filosofia é redefinida não como uma prática sofística, retórica ou dialética de escrita de livros, mas como uma ética e uma arte de viver inspirada na existência instintiva e integrada de seres naturais como o salmão, o esquilo ou a montanha, e fundamentalmente na vida indígena, levando o autor a dedicar seus últimos doze anos a um monumental projeto inacabado de história pré-colombiana da América do Norte, fundamentado na leitura de centenas de obras e na compilação de milhares de páginas de notas etnológicas abrangendo desde ritos funerários e estruturas de governo até botânica e superstições.
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A metodologia de conhecimento exige a união indissociável entre as notas de leitura e a observação de campo, rejeitando a exclusividade livresca em favor de um contato sensual e sensorial com a natureza que envolve todas as faculdades perceptivas, levando o indivíduo a experiências físicas extremas e imersivas, como banhar-se diariamente em águas gélidas, consumir carne crua, caminhar na escuridão, trabalhar manualmente na construção de abrigos e submeter o corpo às intempéries para validar empiricamente a presença no mundo.
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O saber prático e a acuidade sensorial dos povos nativos superam a erudição dos filósofos europeus como Platon, Kant e Hegel, manifestando-se na capacidade linguística de distinção botânica refinada, na percepção auditiva aguçada de sons naturais imperceptíveis ao homem branco e na compreensão etológica profunda que permite a comunicação mimética com animais, estabelecendo uma epistemologia onde a observação naturalista e a leitura erudita formam um contraponto original e necessário.
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O perfil intelectual do pensador amalgama o sensualismo empírico e experimental com a meditação filosófica, vivendo na floresta enquanto absorve obras como o Bhagavad-Gita e as Leis de Manu, e mantendo uma biblioteca eclética que justapõe clássicos como Homero, Dante, Sofocles e Euripides a manuais técnicos de ornitologia, geologia e relatórios de exploração ártica, operando uma distinção crítica entre livros nocivos que alienam o homem no mundo das ideias e livros cardinais que facilitam a compreensão e a vivência no mundo concreto.
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A influência da leitura de Typee de Herman Melville, realizada durante a estadia em Walden, reforça a visão crítica sobre a corrupção introduzida pela civilização ocidental e missionária, alinhando-se a um primitivismo que, ecoando Montaigne e Rousseau, questiona se as invenções da modernidade tecnológica, como o vapor e a eletricidade, trouxeram felicidade real ou apenas alienação, em contraste com a autonomia e a osmose com a natureza observada nas sociedades indígenas que dispensam o supérfluo para viver o essencial.
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A mitologia do lago Walden é interpretada através de uma síntese intelectual que não vê contradição entre a lenda indígena de um cataclismo sagrado provocado por profanação durante um ritual e o relato colonial pragmático sobre a prospecção de água por um radiestesista, sugerindo uma composição onde o evento mítico e a ação humana técnica coexistem na gênese da paisagem.
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As verdadeiras antiguidades do continente americano não são as ruínas clássicas greco-romanas, mas os vestígios líticos deixados por uma raça considerada extinta, cuja memória deve ser preservada em oposição ao esquecimento imposto pela civilização industrial dos arranha-céus e máquinas, na qual os remanescentes indígenas figuram apenas como ecos de um passado quase obliterado.
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O romantismo encarnado por Thoreau distingue-se radicalmente do romantismo alemão de Schiller, Schlegel, Schelling, Novalis, Fichte e Hegel, que submete a natureza ao conceito idealista, e do romantismo francês gótico e católico marcado pela nostalgia e pelo lamento pós-revolucionário, constituindo-se, em vez disso, como uma filosofia americana de reação ao Iluminismo cartesiano, propondo a submissão humana à natureza e não o inverso.
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Esta forma singular de romantismo caracteriza-se pela primazia da sensibilidade corporal, utilizando o corpo purificado de estimulantes como instrumento de ressonância com o mundo; pela preferência do sublime, entendido como o sentimento oceânico diante da grandiosidade natural, em detrimento do conceito monoteísta de Belo; e pela busca de uma vida orgânica e esférica que alinha o eixo individual ao eixo celeste.
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A filosofia assume um caráter dionisíaco que valoriza o fluxo, a força vital e o movimento vegetal contra a ordem matemática e apolínea, integrando uma meditação sobre as ruínas que valoriza a verdade empírica dos artefatos indígenas e manifestando um dandismo ascético e interior, comparável ao de um rei bárbaro entre dois mundos, onde a construção de si e a transformação da própria vida em obra de arte constituem o objetivo supremo.
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A sabedoria final reside na capacidade de encarar a morte sem arrependimentos, validando a existência pregressa através de uma aceitação serena do fim, pois ter construído uma vida de observação profunda da natureza e de autonomia intelectual permite ao filósofo adentrar a morte como quem aprofunda sua experiência de conexão com o cosmos, tal qual a transição observada na própria natureza.
Ver online : Michel Onfray
ONFRAY, Michel. L’été sans bord Journal hédoniste. Paris: Albin Michel, 2025.