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Os sentidos de Walden
Stanley Cavell (Walden) – Sentenças
Henry David Thoreau
O Simbolismo do Despertar e a Função Profética
- A figura central que perpassa as linhas de direção da obra encontra-se na epígrafe de Walden, a única sentença repetida no livro, onde a proposta não é escrever uma ode ao abatimento, mas sim bradar vigorosamente como o galo, Chanticleer, pela manhã, com o intuito primordial de despertar os vizinhos; esta identificação do escritor com o galo é explicitada no capítulo Sons, onde a voz da ave é descrita como mais indígena que os nativos e capaz de despertar até marinheiros nos oceanos Atlântico e Pacífico.
- Se as florestas abundassem com tais aves, isso colocaria nações em alerta, pois são clarins de seus senhores; contudo, o homem domesticou esta ave para mitigar o temor que seu clarim límpido provoca, preferindo ser consolado em seus medos a ter suas esperanças confirmadas, uma ironia que ecoa a observação de que se essas aves pudessem ser naturalizadas sem domesticação, a humanidade despertaria cada vez mais cedo para uma saúde e sabedoria inefáveis, numa resposta direta às profecias de Benjamin Franklin.
- Ao assumir a postura de Chanticleer, o escritor incorpora os dois arquétipos do folclore americano distinguidos por Constance Rourke, o Ianque e o Galo de Briga da Natureza Selvagem, adotando a atitude do trapaceiro e a capacidade para trocas agudas e sagacidade, submetendo, porém, tais figuras às leis de mudança e escrutínio de seu próprio mundo literário.
- A coruja, ave tradicional da filosofia e profecia, não é substituída pelo galo, mas seguida por ele; o escritor regozija-se com a existência das corujas e confere-lhes um novo marco profético, o de anunciar um amanhecer mais lúgubre e apropriado, estabelecendo passagens de identidades trocadas onde observador e ave tentam realizar a existência um do outro.
- A identificação com o galo de briga atinge o limite permitido pela razão, pois o escritor afirma nunca ter sido despertado pelo som estridente da ave, o que implica que ele já estava acordado pela mesma força que desperta o galo; esta interpretação demonstra uma motivação para os cálculos verbais do escritor, sugerindo que a incerteza sobre ter ouvido o galo advém da familiaridade ou da natureza alucinatória e mítica desse som, que representa a clareza da própria consciência.
- A pureza da profecia de Chanticleer reside em sua capacidade de falar apenas para despertar e avisar, definindo sua vocação essencial como a de vigia, o que distingue o verdadeiro profeta dos falsos, aos quais Ezequiel chama de raposas; enquanto o falso profeta proclama paz onde não há paz e fala visões de seu próprio coração, o verdadeiro vigia, conforme a lógica divina apresentada por Ezequiel, deve tocar a trombeta ao ver a espada, sob pena de o sangue do povo ser cobrado de suas mãos se o aviso não for dado.
- Embora o escritor de Walden não satisfaça a condição maior da profecia hebraica — pois o povo não o escolheu como sentinela —, ele cumpre sua parte do acordo isolando-se para ouvir o que está no vento e transmitir a mensagem, ainda que seus concidadãos não lhe tenham oferecido lugar oficial na sociedade; assim, as aves em Walden carregam momentos de identificação íntima do escritor, competindo com o rouxinol, como demonstrado pela evocação de um gato alado ou pela comparação da prosa do escritor com o trinado e o riso contido do pardal.
- O canto do curiango ilustra a resposta da ave às mudanças de luz e delineia a própria progressão do escritor, cujas notas referem-se ao pôr do sol que as inspira, mas versam sobre a aurora, sugerindo que a natureza sustenta múltiplas ordens de entendimento e não exige que se fale apenas de modo a ser compreendido pela Inglaterra e pela América.
A Metamorfose, a Loucura e a Escrita da Natureza
- O mobelho é apresentado como o profeta mais inarticulado, porém dramaticamente o mais impressionante, exemplificando através de sua risada selvagem e escárnio a glória em sua própria fé e recursos, uma atitude comparável à loucura santa defendida por São Paulo aos Coríntios, onde o apóstolo se gloria na carne e na insensatez para afirmar sua verdade.
- A muda, ou metamorfose, é um conceito central exemplificado pelo mobelho que vai ao lago para mudar de penas; tal processo é levado ao extremo da literalidade, onde o abdômen da borboleta ainda representa a larva e o homem que se alimenta grosseiramente permanece em estado larval, com nações inteiras traídas por seus vastos abdômens desprovidos de fantasia ou imaginação.
- A condição humana atual é descrita como baixa e primitiva, comparável a uma cobra listrada em estado de torpor no fundo da água, sugerindo que se os homens sentissem a influência da primavera das primaveras, ascenderiam necessariamente a uma vida mais etérea; a muda humana, diferentemente da das aves, não é uma crise natural gerida pela natureza, mas uma crise que deve ser assumida voluntariamente, exigindo que a própria natureza seja superada através da natureza.
- A natureza atua não como habitat regido por instintos, mas como exemplar e sonho de habitação, onde a redenção pode ser sugerida mas não realizada por ela; a salvação deve ser trabalhada com temor e tremor, conforme a carta aos Filipenses, implicando que a sexualização da natureza é tão marcada quanto no Éden de Milton e que o silêncio verdadeiro não é o emudecimento, mas o desatar da língua.
- A escrita deve possuir a precisão de uma cimitarra, dividindo o sujeito com sua borda doce em êxtases de exatidão; o escritor deve conhecer simultaneamente o detalhe do acontecimento e o significado de que ele ocorra exatamente daquela forma, reconhecendo que um fato possui duas superfícies: o evento no mundo e a asserção desse evento, ou seja, o frasear do mundo.
- Descobrir o a priori ou a necessidade da linguagem é como ver a primeira haste de uma planta retornando por entre a neve; a vida humana morre até a raiz para lançar sua lâmina verde à eternidade, propondo um mundo que zomba da esqualidez e covardia das imaginações humanas, pois se não formos repreendidos e instruídos pela natureza e pelas palavras, seremos enlouquecidos por elas.
O Experimento de Walden e a Relação com o Leitor
- O abandono dos bosques ocorreu por uma razão tão boa quanto a da ida para lá, a percepção de que havia outras vidas a viver e que não se podia dispensar mais tempo naquela específica, servindo de aviso aos leitores de que a vida do escritor não se encontra em Walden, mas que cada um deve trabalhar a sua própria; o experimento consistiu não em aprender que a vida lá era maravilhosa, mas em aprender a deixá-la, pois ganha-se a vida gastando-a.
- O motivo de "acordar os vizinhos" pode resultar apenas em incitá-los a outra rodada de atividade nervosa, a menos que o escritor, tornando-se desperto como o Buda, consiga incutir neles a ideia da manhã e da muda como trabalhos e caminhos de viagem, ou ao menos um interesse verde em seus destinos.
- A estrutura retórica do livro utiliza a ficção de responder a perguntas impertinentes dos concidadãos para, na verdade, induzir o leitor a fazer as perguntas e perceber que não sabe o que está perguntando; o problema é filosófico, religioso, literário e político, visando capturar o leitor para que este, como o galo, a raposa ou o mobelho, traia a si mesmo e publique sua culpa.
- O escritor descobre que para coletar evidências basta permanecer imóvel em um local atraente para que os habitantes se exibam; seus leitores são identificados como estudantes cuja educação foi negligenciada, e o ato de leitura é transformado em um desafio existencial onde a continuação ou o abandono do livro é uma escolha absoluta do leitor.
- A leitura de Walden gera uma curiosidade crescente à medida que as conjecturas são confirmadas nas palavras, criando uma sensação de acidente contingente por estarmos presentes diante do texto; a clareza do texto paradoxalmente obscurece a existência do escritor, cuja indiferença aparente e isolamento forçam o leitor a encontrar-se sozinho, perdido, condição necessária para apreciar a vastidão e estranheza da natureza.
- A afirmação de não ter atingido a obscuridade significa que o ego do escritor não desapareceu completamente e que ele talvez não tenha deixado o leitor suficientemente só para que ambos se encontrem; a escrita só atinge seu objetivo quando absorve a responsabilidade por sua existência, tornando-se imóvel e sem asserções que exijam fé cega.
Perda, Distância e a Busca Interior
- A passagem críptica sobre a perda de um cão de caça, um cavalo baio e uma rola não necessita de novas propostas biográficas, mas deve ser entendida como um pequeno mito onde os símbolos representam a conexão com as coisas e o rastro do desejo; o livro é um registro de perdas, onde o ganho do crescimento implica sempre a perda da infância, da nação e do Deus dos pais.
- Walden, ou o Paraíso, é tudo o que há para perder, e o objeto da fé esconde-se do escritor, que permanece em seu encalço através da aceitação verdadeira da perda, numa lógica semelhante à de Pascal, onde conhecer a perda é a condição natural para não cair em repouso ilusório.
- A condição de ser um "peregrino na vida civilizada novamente" indica que o escritor aprendeu em Walden como peregrinar, ou seja, como gastar seu dia; a vida na terra é um teste e uma estadia temporária, e ser peregrino é ser um estranho, uma condição enfatizada pelo retorno do escritor ao lago dentro do livro para medir sua condição atual contra a anterior.
- O mito dos animais perdidos identifica a audiência como aqueles que, como viajantes estranhos, percebem que perderam o mundo; o destino de ter um eu é ser encontrado ou não, e a descrição fenomenológica de encontrar o eu em Walden é uma atividade contínua de rastreamento e recuperação, uma interpretação da injunção "conhece-te a ti mesmo".
- O escritor concede o título de viajante ou estranho àqueles que aceitam essa condição de existência, dirigindo-se a eles como "parentes de uma terra distante", o que revela o paradoxo de que o mais íntimo é o mais distante e que a realização de nossas relações infinitas é uma realização infinita de nossa separação.
- A sinceridade é definida como a capacidade de viver na própria separação, de navegar o oceano privado do ser sozinho; a exigência de um relato simples e sincero pressupõe essa distância, onde a "condição exterior" dos leitores é precisamente a posição de estranheza em relação ao mundo, o primeiro passo para a educação.
Desespero, Esperança e a Prática da Escrita
- Thoreau propõe não escrever uma ode à dejeção, diferentemente de Coleridge, mas bradar a partir da possibilidade de superar o abatimento, reconhecendo que a "manhã" é uma ocasião perpétua, mas que poucos ouvidos a escutam; a dejeção é a condição metafísica compartilhada, uma visão de beleza com um olho vazio, um luto sem expressão.
- A "vida de desespero silencioso" que a massa dos homens leva é o tema central que o escritor se propõe a não calar; seu brado reconhece a formidabilidade desse inimigo e tenta despertar os vizinhos para a sua condição real, que é a falta de expressão.
- Existe uma santidade nos vizinhos que tateia por expressão, tal como um cego ou uma criança; o escritor valida seu discernimento da condição alheia confessando sua própria iniquidade e aceitando os limites epistemológicos de seu conhecimento moral.
- A raposa, adversária de Chanticleer, relaciona-se com os homens pelo ato de amaldiçoar e com o escritor pelo ato de escavar; sua busca por expressão, latindo demoniacamente e buscando luz, reflete a ansiedade da transformação e a espera pela palavra da língua-mãe que requer renascimento.
- A meditação é o estado de um ser humano aguardando expressão; o escritor assume o fardo dessa espera num mundo ensurdecido por falsas profecias de novidade e redenção americana, onde a verdadeira compreensão exige reconhecer a insanidade coletiva e a necessidade de estranheza para o crescimento adulto.
- Como "repórter de um jornal", o escritor noticia que infinitamente mais está mudando do que se percebe; seu problema é que cada linha de seu relato é causa de desespero se não resultar em transformação, e o experimento do "presente" é uma tentativa de tornar-se presente a cada circunstância através da escrita.
- A sucessão de palavras é uma repreensão que compromete a presentidade, mas aprender a esperar na escrita é aprender a não desesperar da oportunidade imprevista; o brado do galo, mesmo sem o amanhecer, expressa a aceitação da promessa e o estudo da expectativa infinita da aurora.
- "Melhorar o tempo" significa realizar onde estamos e para que vivemos; todas as vocações são isomorfas e ações como construir, ler ou capinar são alegorias umas das outras, devendo ser edificantes para serem dignas de habitação humana.
A Autonomia da Linguagem e a Leitura como Avaliação
- A fidelidade à escrita é fidelidade às condições da linguagem, e incluir o leitor nessas condições estabelece um campo de ação onde escritor e leitor se encontram na palavra, reconhecendo a contingência e a separação mútua; é necessário aprender a partir das palavras e retornar a elas, descobrindo a autonomia da linguagem e a nossa própria.
- Reconhecemos que temos escolha sobre as palavras, mas não sobre seus significados, os quais residem na linguagem e na forma de vida que ela encarna; a literalidade expressa o retorno mútuo entre nós e a palavra, uma literalidade frequentemente derrotada na religião e na política quando permitimos que nossas escolhas sejam feitas por nós, transformando palavras sagradas em maldições e definições políticas em servidão.
- Não sabemos o que é o fundo de um lago se não soubermos o que é sondar; o retorno da palavra requer a recuperação de seu objeto para nós, uma tarefa tanto da poesia romântica quanto do projeto kantiano de resposta ao ceticismo, aceitando que as palavras vêm de uma distância e que compreendê-las é descobrir a localização precisa de onde são ditas.
- A arte da ficção ensina a distância, e ler profundamente não é afundar longe da superfície, mas partir de uma palavra dada como de um ponto de origem; as figurações da linguagem refletem superfícies e profundezas, e o escritor utiliza modificações como "o chamado" para nos fazer reter a palavra e avaliar nossa fidelidade aos critérios de seu uso.
- O escritor controla a ambiguidade através de construções que exigem ênfases específicas, revelando a mão do autor e forçando o leitor a avaliar sua orientação; o uso extraordinário da palavra "interesse" convida o leitor a tomar interesse em sua própria vida.
- Se Walden é uma escritura, contém uma doutrina, sugerida pela metáfora da cesta tecida (aludindo às "Três Cestas" budistas); o mito do leitor é apresentado na comparação entre ler a Ilíada e ler fragmentos de jornal encontrados no chão da floresta, sugerindo que se soubermos ler, qualquer fragmento oferece o mesmo propósito épico, mas que o estudo verdadeiro exige mais do que apenas olhar para a página ocasionalmente, exigindo uma preparação para encontrar estados de ser, sejam eles de melancolia ou êxtase incipiente, como sugerido por Confúcio.
Ver online : Stanley Cavell
CAVELL, Stanley. The senses of Walden. Expanded edition. Chicago: the University of Chicago press, 1992.