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Consciência e romance
Jean-Louis Chrétien – Stendhal e o "coração humano a nu"
Capítulo II
A Natureza da Ficção e a Cardiognosia Stendhaliana
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Estabelece-se uma distinção ontológica fundamental entre o interesse histórico e o interesse romanesco, tal como Stendhal anotara nas margens das Crônicas italianas, onde a história, apoiada em documentos, difere radicalmente do romance, o qual detém a prerrogativa da possibilidade do impossível, ou seja, a penetração na intimidade de uma consciência alheia e o conhecimento do que se passa no coração dos heróis, uma característica essencial da ficção meditada contemporaneamente por Dorrit Cohn.
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Ainda que Stendhal se dedique ao gênero histórico nas suas crônicas, ele não se priva de exercer a sua prerrogativa de romancista, introduzindo o leitor, através do monólogo interior, no segredo das almas, tornando audível o silêncio interior que fundamenta o silêncio exterior, como se verifica na descrição da vermelhidão súbita da princesa ou nos pensamentos não confessados do conde ao sair da abadia de Santa Riparata, elucidando motivos que o próprio personagem não ousaria confessar a si mesmo.
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A técnica stendhaliana opera frequentemente por preterição, onde aquilo que inicialmente é indicado como oculto acaba por ser revelado através do estilo indireto livre e frases de monólogo, fazendo prevalecer o interesse romanesco sobre o histórico, uma cardiognosia que Stendhal, em seus "privilégios", chegou a sonhar possuir magicamente na vida real para adivinhar os pensamentos das pessoas ao seu redor, um poder que o romance moderno concede permanentemente aos seus leitores.
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A penetração na consciência alheia encontra limites na finitude histórica e na variação dos horizontes de percepção temporal, uma problemática introduzida por Walter Scott e reconhecida por Stendhal, que questionava a sua própria capacidade, enquanto francês do século XIX, de decifrar as almas italianas de 1559, sugerindo que a distância histórica possui também uma dimensão axiológica que separa o autêntico do factício e as paixões profundas das vaidades gangrenadas da França ou Inglaterra modernas.
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O projeto de conhecimento stendhaliano, comparável em ambição mas distinto em método do de Balzac ou Hugo, visa pintar o coração humano quase a nu, concentrando-se não em povos exóticos, mas no homem conhecido, uma empreitada que ganha forma através de uma meditação que não ocorre no isolamento de um gabinete, mas em movimento, "correndo a posta", onde o acaso e a contingência abrem o destino e o espelho do romance é aplicado primeiramente ao próprio coração do autor e dos personagens.
A Recepção Crítica e a Mecânica da Alma
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Emile Zola, ao traçar a sua própria genealogia literária, identifica em Stendhal um ancestral parcial influenciado por Condillac, situando-o no limiar de um século de ciência onde o romancista parte à conquista da verdade sem dogmas, embora Zola critique a limitação deste "espelho" que refletiria apenas a cabeça e a mecânica cerebral, negligenciando o corpo e o meio ambiente, reduzindo os personagens a nobres mecânicas de pensamentos e paixões que operam num tique-taque contínuo de autoanálise.
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A crítica zoliana aponta para uma uniformidade estilística nos monólogos que daria a impressão de um mecanismo de relojoaria, contrastando o psicologismo de Stendhal com a aventura de Dumas Pai, onde o extraordinário dos pensamentos substitui o extraordinário das peripécias, embora tal analogia mecânica seja questionável diante da impulsividade e imprevisibilidade frequentes nos heróis stendhalianos como Julien Sorel e Mathilde de La Mole.
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Balzac, referindo-se a A Cartuxa de Parma, notava uma certa negligência formal, sugerindo que Stendhal escrevia como os pássaros cantam, uma observação que se conecta ao uso espontâneo e por vezes abrupto da mudança do estilo indireto livre para o monólogo interior em primeira pessoa, sem fórmulas de introdução, conferindo à narrativa o charme do natural e levantando a questão se os personagens são introspectivos por natureza ou se assim parecem devido à predominância da forma monológica.
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Paul Bourget, diferentemente de Zola, interpreta o solilóquio stendhaliano não como um defeito, mas como a marca do gênio e um método heurístico de descoberta, onde o espírito de análise penetra na ação e os personagens agem como psicólogos experimentais que escrutam a sua existência moral, anunciando e produzindo um novo tipo de homem moderno, sugerindo que a literatura acaba por modelar a vida real e gerar "pessoas stendhalianas".
Fenomenologia e Modalidades do Monólogo
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O termo monólogo é empregado pelo próprio Stendhal para designar os atos de fala interna de seus personagens, sendo a distinção entre a modalidade sonora e a tácita nem sempre rígida, havendo passagens fluidas entre o grito, o murmúrio e o pensamento silencioso, corroborando as análises positivistas de Victor Egger sobre a continuidade entre a agitação do pensamento e a descarga na exclamação.
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A interiorização da palavra não apaga a sua origem oral, mantendo-se a estrutura de uma conversa onde se pode "exclamar interiormente" ou "dizer em voz baixa" dentro da própria mente, preservando a cisão entre a voz interior e a voz proferida, e demonstrando que, para Stendhal, influenciado pelos Ideólogos, o pensamento é essencialmente articulado e articulável, não havendo espaço para o inefável ou para o silêncio místico.
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O monólogo stendhaliano define-se fundamentalmente como um diálogo do eu consigo mesmo, raramente dirigindo-se a um tu que não seja o próprio sujeito (exceto em orações ou apelos a ausentes), e caracteriza-se por uma proliferação extraordinária que abrange desde breves exclamações até longos discursos que ocupam várias páginas, constituindo uma técnica de apresentação direta que rivaliza com a narrativa em terceira pessoa.
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A frequência e a extensão dos monólogos operam uma resolução de todo evento em evento interior, transformando o "teatro do coração" no verdadeiro palco da ação romanesca, onde o peso dos acontecimentos se torna subjetivo e arbitrário, e onde um incidente minúsculo pode adquirir dimensões de época, caindo o mundo público no privado do foro íntimo e eliminando qualquer critério objetivo de importância factual.
Teatralidade, Retórica e a Psicomaquia
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A natureza teatral do monólogo é evidenciada pela presença de verdadeiras didascálias narrativas que indicam gestos ou expressões faciais simultâneos ao pensamento, bem como pelo uso de uma retórica declamatória em monólogos como o do ciúme do Conde Mosca, que parecem prontos para serem encenados, e pelo uso de verbos de elocução — como "acrescentou", "retomou" ou "enfim" — que tratam o pensamento silencioso como uma réplica numa conversa contínua.
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A palavra interior em Stendhal, longe de ser um fluxo de consciência caótico, segue as regras da conversação e apresenta as mesmas cisões entre o sentir e o dizer que a palavra exterior, revelando que a interioridade não é o lugar da transparência absoluta, mas um espaço de representação onde o sujeito pode mentir para si mesmo ou adotar uma linguagem "cavalheira" para mascarar o medo e a insegurança, como no caso de Julien Sorel diante de Sra. de Rênal.
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Ocorre uma democratização do monólogo, que não é privilégio dos protagonistas, mas estende-se a personagens secundários e até fugitivos, criando um perspectivismo irônico onde o leitor transita por múltiplas consciências, as quais, segundo Alain, são desenhadas com traços nítidos e claros, sem a incognoscibilidade ou o mistério profundo que caracterizariam o romance posterior.
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Ao contrário da tradição trágica onde o monólogo surge em momentos de aporia ou crise extrema, em Stendhal ele ocorre em qualquer circunstância, banalizando-se como meio comum de apresentação, embora recupere a dimensão retórica da psicomaquia, o combate interior secularizado onde "partidos" ou faculdades hipostasiadas (o amor, a prudência, a vaidade) debatem como advogados antagonistas, disputando o controle de um eu volúvel.
O Aparté, o Riso e a Palavra Fatal
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Muitos monólogos breves funcionam como apartés cômicos derivados da comédia, onde o personagem comenta, julga ou zomba da situação e dos interlocutores, criando uma cumplicidade com o leitor baseada na ironia e na percepção do ridículo alheio, uma postura de distanciamento onde a interioridade da consciência irônica se manifesta como uma exterioridade crítica em relação ao papel social desempenhado.
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O "riso interior" ou o "sorriso interior" surge como uma manifestação de superioridade e de desforra da inteligência contra a sottise do mundo, diferindo da alegria espiritual antiga ou do riso metafísico de Hugo, configurando-se antes como uma zombaria contida que desarticula o discurso do outro, parodiando-o e esvaziando-o de sentido, transformando os interlocutores em pantins aos olhos do observador silencioso.
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A conversa consigo mesmo é pontuada pelo poder de nomeação das palavras, onde termos "fatais" como adultério ou liberdade surgem com a força de uma aparição ou de um golpe de foudre, provocando revoluções interiores e cristalizações sentimentais que escapam ao controle racional do sujeito, demonstrando que a realidade interior depende de surgimentos verbais que iluminam o que a análise lúcida não consegue ver.
O Monólogo no Diálogo e a Incomunicabilidade
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Uma especificidade notável é o exercício do monólogo interior no seio dos diálogos, onde a conversa com o outro não interrompe, mas muitas vezes alimenta o discurso ininterrupto que o sujeito mantém consigo mesmo, sugerindo que as réplicas externas são apenas breves "saídas" de um bunker de egotismo e desconfiança onde o personagem se refugia permanentemente.
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O diálogo stendhaliano é frequentemente corroído ou dissolvido pela prevalência dos monólogos, gerando cenas de desencontro e mal-entendidos fundamentais, como no encontro noturno entre Julien e Mathilde, onde cada um persegue sua própria lógica interna de vaidade ou dever, resultando numa incomunicabilidade que não é acidental, mas estrutural, decorrente do individualismo e do medo do julgamento alheio.
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A técnica do "refletor", antecipando Henry James, é utilizada para filtrar diálogos inteiros através da consciência julgadora de um terceiro, como na cena em que Coffe observa Lucien e o prefeito, reduzindo a interação a uma série de veredictos irônicos sobre a fatuidade dos interlocutores, reforçando a solidão e a separação das consciências.
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Existe também a figura do monólogo iterativo ou habitual, onde o narrador resume em discurso direto pensamentos que ocorrem repetidamente ("dizia-se ele algumas vezes"), uma singularidade formal que sublinha a predileção de Stendhal pela apresentação imediata da voz interior, mesmo sacrificando a verossimilhança estrita da repetição literal.
Conclusões sobre a Subjetividade Stendhaliana
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O privilégio do presente da consciência no monólogo stendhaliano cria um efeito de ecoar e improvisar, onde o leitor assiste à gênese dos atos e ao tremor dos motivos em tempo real, mas essa mimesis da interioridade revela uma consciência que é o "exterior do exterior", socializada, articulada e analítica, distinta da rêverie difusa de autores modernos como Virginia Woolf.
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Apesar da aparente transparência e da intimidade do eu como refúgio num mundo de máscaras, a autoafirmação do sujeito stendhaliano desemboca frequentemente no desespero ou no vazio, onde o culto do eu revela, na pergunta "Por que sou eu?", a fragilidade de uma identidade que se busca incessantemente sem se encontrar, fazendo do romance uma tragédia do egotismo onde a confiança no outro e em si mesmo se torna impossível.
Ver online : Jean-Louis Chrétien
CHRÉTIEN, Jean-Louis. Conscience et roman. Paris: Éd. de Minuit, 2009.