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Esoterismo de Shakespeare

Paul Arnold – « A Tragédia de Cymbeline » e a Fraternidade

Capítulo V

A Tragédia de Cymbeline é um resumo da obra shakespeariana. Encontra-se nela o essencial das situações dramáticas delineadas em todas as grandes tragédias ou comédias anteriores ou posteriores a 1610. Mas todas essas situações são resolvidas; como no Mercador de Veneza, seu aspecto trágico é simples ilusão: falsas infidelidades, falsas mortes, falsos sepultamentos, retornos do destino. Tudo isso prefigura as duas últimas «romances».

Diz-se que é uma obra densa, composta, no gosto do momento. Ainda se busca seu núcleo e mesmo seu interesse. Discute-se sua autenticidade; recentemente, G. Wilson Knight tomou a pena de demonstrar que sua escrita não é em nada inferior à das grandes peças shakespearianas [1]. A peça é de fato difícil de resumir. Influenciado pela orgulhosa rainha, uma viúva que desposou em segundas núpcias, e por Cloten o filho vaidoso e imbecil desta última, Cimbelino, rei dos Bretões, recusa pagar tributo a César e provoca assim a guerra com Roma. De seu primeiro leito, não tem mais que uma filha, Imogène, pois seu antigo general, Belário, que se distinguira no curso de uma campanha precedente, caído em desgraça, por vingança raptara seus dois filhos e se refugiara na montanha; ele lá cria as duas crianças, Guiderio e Arvírago, deixadas na ignorância de suas origens e de sua posição. Vive com eles e sua mulher Erifila nas selvagens vales das montanhas galesas, habitando uma caverna, nutrindo-se dos produtos da caça e da pesca e ensinando aos jovens príncipes uma filosofia heroica plena de desdém pelos costumes da corte. É nesse quadro falsamente histórico que se desenrolará o drama. Enfeitiçado pela rainha que não pensa senão em instalar Cloten no trono, Cimbelino faz prender sua filha Imogène que desposara em segredo um gentil-homem perfeito mas pobre, Póstumo, filho póstumo de Leonato. A rainha espera desse modo por constrangimento ou lisonja constranger a jovem mulher a renunciar a esse matrimônio secreto e a ceder à paixão do odiável Cloten. Póstumo é exilado. Instala-se em Roma e, no curso de uma discussão, fala com o fingido Iachimo que Imogène é a mulher mais casta do mundo e que esse italiano fanfarrão não conseguiria seduzi-la. Munido de uma carta de introdução, Iachimo parte para a Inglaterra, tenta em vão Imogène e, para não perder sua aposta, introduz-se noturnamente em seu quarto, anota seu aspecto, inclina-se sobre o corpo da jovem mulher adormecida de quem observa as particularidades e, sem a despertar, lhe remove uma pulseira. Munido desses falsos testemunhos, retorna a Roma, ali sustenta sua impostura. Póstumo decide vingar-se daquela que crê infiel, engaja-se nas fileiras do exército romano que desembarca na Inglaterra e ordena por carta ao fiel servo de Imogène, Pisânio, que mate a jovem mulher.

Esta mal conseguira escapar a outro perigo. A rainha, desesperando de vencê-la, fizera preparar por seu médico uma poção que ela crê envenenada e que não é na realidade senão um soporífero. Entrega-a a Imogène pretendendo ser um excelente cordial. No entanto Pisânio arrasta sua ama, disfarçada em pajem, para as montanhas galesas onde a abandona ao desespero, após lhe haver revelado a acusação que Póstumo lança contra ela e a ordem que lhe dera. Pois deixa-se convencer de sua inocência e levará a Póstumo falsas provas da execução. Imogène vagueando perto da caverna de Belário escapa por pouco a Cloten que a persegue, vestido com as roupas de Póstumo, para lhe fazer violência e constrangê-la assim a desposá-lo. E enquanto ela repousa na caverna, sobrevêm Belário e os príncipes, seus irmãos, que, bem entendido, ela não reconhece e com quem traba amizade. No dia seguinte, a seu retorno da caça, um deles, provocado pelo orgulhoso Cloten, lhe corta a cabeça que joga no rio. Mas entretanto, Imogène não podendo superar sua melancolia, absorveu o «cordial» da rainha e adormeceu. Belário e seus filhos adotivos a crêem morta e no curso de uma fort estranha cerimônia fúnebre a depositam em uma tumba por sobre o corpo decapitado de Cloten.

Ela despertará sozinha, tomará Cloten por Póstumo de quem traz a vestimenta, ensopará o rosto com seu sangue e desfalecerá sobre o cadáver. Os legionários romanos passando por ali, descobrem assim a jovem sempre disfarçada, a despertam, e Lúcio, seu chefe, a toma como pajem. A batalha engaja-se e, graças à intervenção discreta de Belário e de seus «filhos», depois de Póstumo reencontrando seu patriotismo, ela vira a vantagem dos Bretões. Lúcio e Imogène são feitos prisioneiros, ao mesmo tempo que Iachimo e Póstumo que, cansado de viver, faz-se passar por traidor de sua pátria. É lançado na prisão onde Júpiter lhe prediz em sonho o fim de seus infortúnios. Eles findarão de fato no dia seguinte, quando toda a verdade eclodirá diante do rei Cimbelino: este reencontrará seus dois filhos, Iachimo confessará sua impostura, Imogène revelará sua verdadeira identidade, a rainha morrerá de fúria e desespero, e o rei decidirá pagar tributo a Roma, a fim de fazer triunfar por toda parte a paz e a fraternidade.

Admite-se habitualmente que Shakespeare edificou sua peça fundindo uma passagem da crônica de Holinshed com o conto XI, 9 do Decamerão. Não parece duvidoso que ele haja buscado na crônica o ponto de partida, ou antes, ver-se-á, um dos pontos de partida da situação política e militar. O conto de Boccaccio relata em grosso, o episódio Iachimo, a aposta, a impostura, o ciúme de Póstumo, o falso assassinato de Imogène por Pisânio. Mas é tudo.

Em contrapartida, François-Victor Hugo assinalou paralelos impressionantes entre a peça inglesa e o «milagre» francês de Oton rei da Espanha. Como não se conhece edição da obra que pudera passar o Canal, a crítica rejeita a aproximação. Mas ninguém se avisou de que o tema do milagre inspirara o Romance da Violeta que circulava no século XV e que, tal como a peça, situa o drama de família no quadro de uma guerra e na mesma atmosfera principesca que a obra inglesa. A questão não está portanto resolvida e encontros estranhamente precisos entre o drama shakespeariano e o milagre [2] não autorizam a afastar uma fonte simplesmente porque ignoramos como Shakespeare pôde conhecê-la. Pode-se aliás imaginar um original europeu de onde são saídas ao mesmo tempo as diversas versões conhecidas.

Além do mais, não importa a nosso propósito saber onde Shakespeare buscou os diversos episódios, mas bem saber quais não se encontram em nenhuma das fontes literárias possíveis. Eis aqui o inventário: os personagens de Cloten e de sua mãe, todo seu papel, toda a influência nefasta e decisiva que têm sobre Cimbelino, sua corte e os eventos públicos e privados; a atmosfera particular do mundo da caverna, Belário e seus «filhos»; a falsa morte de Imogène, sua colocação no túmulo, seu despertar sobre o corpo decapitado de Cloten; o sonho de Póstumo; o perdão geral do fim, a esperança de paz universal e de fraternidade. Em suma, e mesmo à primeira vista, tudo o que é filosoficamente essencial e que comanda as anedotas emprestadas emprestando-lhes uma significação.

Fazendo pela primeira vez ressoar muito alto um acordo que dominará no Conto de Inverno e na Tempestade, Shakespeare proclama que o Destino tudo regulou de antemão, que os homens não são senão seus instrumentos cegos ou clarividentes [3]. Deixa ao tempo o cuidado de tudo desembaraçar e de trazer de volta a justiça, diz Pisânio ao rei: «A Fortuna traz ao porto mais de um barco sem governail» (IV, Cena 3, 46). E no sonho de Póstumo, Júpiter pousa sobre o peito do dorminhoco uma tabuleta onde lhe «agradou inscrever seu destino». Os «pequenos espíritos das regiões inferiores» queixam-se, como os humanos, da justiça do céu, da sorte dos humanos? É que ignoram como estes as vias da Providência que Júpiter enfim revela:

Aquele que mais amo, castigo-o para tornar mais doce meu benefício mais diferido.
Sua felicidade é eclodida, suas provações são consumadas.
(Será) tornado mais feliz por suas aflições. (V, Cena, 4, 101-108).

Tal é, diz ele, o sentido de suas tribulações, de todos esses eventos «enigmáticos... como o é a vida» ela mesma.

Assim Shakespeare nos diz pela primeira vez claramente, sem ambiguidade, por intermédio de seu deus ex machina, o que nos deixou adivinhar no Mercador de Veneza: todas as nossas desgraças não são senão provas impostas à nossa constância pelo céu, a fim de nos esclarecer sobre o enigma da vida humana. Outros termos, representa-se aqui uma divina comédia.

Eis para o plano celeste. Mas sobre o plano humano, sobre o plano da eficiência manifestada, é uma bruxa, uma rainha «frenética» que conduz o jogo, que é a adversária do céu. O que impressiona de fato, se se confrontam as fontes literárias com a peça, é que todas as peripécias diversas e compostas, Shakespeare as subordinou à ação nefasta, egoísta da rainha. Ela ia tudo dominar, tudo escravizar, tudo macular, tudo destruir: Imogène e Póstumo, após Cimbelino e os cortesãos, se — e é o outro polo da peça também pessoal a Shakespeare que o primeiro — a ação de Belário e do mundo da caverna não fosse intervir e decapitar o mal (Cloten e, por via de consequência, a rainha), salvar Imogène, fazer virar as chances da guerra e tornar possível o retorno do rei à sabedoria e à paz.

Vejamos sucessivamente os dois grupos em presença.


Cloten «é uma criatura demasiado má mesmo para dela dizer mal», «um asno» que não sabe contar até vinte, um fátuo ambicioso, pretensioso, vulgar. Quando suas paixões são atravessadas, está «em frenesi» (frenzy); descreve-se-nos «brandindo a espada, a espuma na boca». Assemelha-se a Calibã até em sua linguagem: «Que as brumas do sul o apodreçam!» (II, Cena 3, 136) deseja ele a seu rival Póstumo. Mesmo o amor é nele, como em Calibã, uma forma do egoísmo. Desde que Imogène lhe resiste, ele a «odeia» e, como Calibã, busca «violá-la» com refinamentos de sádico: «Primeiro, eu o mato, ele (Póstumo), sob seus olhos dela; assim ela verá minha valentia que será desde então um suplício para seu desprezo. Uma vez ele no chão, quando eu houver terminado meu discurso de insulto sobre seu cadáver, e quando minha luxúria houver jantado — o que, como dito, farei para vexá-la, nas vestes que ela ama tanto — eu a levarei de volta à corte a golpes de punho, a sua casa a pontapés» (III, Cena 5, 141-149). Eis o personagem. E quando um pouco mais tarde ele se lança contra Guiderio que vai decapitá-lo crê fazê-lo tremer pelo simples enunciado de seu nome: «Se teu nome fosse Sapo ou Víbora ou Aranha, lhe responde o outro, eu disso seria antes comovido» (IV, Cena 2, 90-91). Veremos o que para Shakespeare significam tais injúrias; pois o autor de Macbeth conhecia como todos os escritores da época, as relações não simplesmente metafóricas mas substanciais entre essas bestas ignóbeis e as potências do mal.

Quanto à rainha, essa «viúva que o rei acabara de desposar»
e de quem ignoramos as origens sem dúvida fort baixas,
eis o retrato tão colorido. Falando de Cloten,
um comparsa diz quase no início: «Que um diabo também
astucioso (craftly) como o é sua mãe — haja podido pôr no
mundo esse asno! Uma mulher que — esmaga tudo por seu
espírito» (II, Cena 1, 57-58).
 
Que deseja ela? O poder, por todos os meios,
mesmo o veneno. Ama somente a si mesma e a seu filho. Ela
finge ter pelo rei uma verdadeira paixão, mas no momento
de morrer, relata seu médico, «ela confessou que nunca
vos amou — apaixonada não por vós mas somente
pela grandeza que vós lhe dais — casada com vossa
realeza, ela era a esposa de vossa posição; — ela abominava
vossa pessoa» (V, Cena 5, 37-40).

Como age ela? Por todas as astúcias, todas as hipocrisias, todas as mentiras, pior ainda: pelo crime. «Ela confessou que tinha — para vós um veneno mineral mortal, o qual, se vós o houvésseis absorvido — devia de minuto em minuto, roer a vida e, tornando-vos languido, — fazer-vos perecer pouco a pouco. Durante esse tempo ela contava — em vos velando, em chorando, em vos cuidando e abraçando, — enganar-vos por suas aparências; sim, durante o tempo — que ela vos haveria circunvencido por suas malícias (craft [4]) — ela haveria trabalhado para assegurar a coroa a seu filho» (V, Cena 5, 49-56).

Como morre ela? Como Cloten, em frenética. «Faltando seu objetivo pela estranha desaparição (de seu filho) — foi tomada de um desespero sem pudor; revelando seus projetos, — em despeito do céu e dos homens; lamentando que os males que ela fazia eclodir não hajam amadurecido: — assim ela morreu no desespero.» E melhor ainda: ela finou «no horror, morrendo freneticamente (madly) como viveu; — cruel para o mundo, ela fina — por ser muito cruel consigo mesma» (Ibid., 57-61).

Ela é, com Cloten, o único personagem da peça que morre longe de toda graça, desesperada pelo não cumprimento de sua malícia. Aqui Shakespeare não salvou os piores, como fiz outrora no Mercador de Veneza, como fará amanhã na Tempestade. Por quê? Compreendê-lo-emos mais tarde.


Diante dos maus, os justos: Imogène, Póstumo, Belário e seus filhos adotivos. Sobre eles o veneno não agirá, como age sobre todos os outros, sobre o mundo inteiro, causando mesmo a guerra.

Imogène é «a divina», um «anjo do céu», a «incomparável deste tempo», a casta que «muitas vezes continha o prazer legítimo» de Póstumo e «implorava» dele «a abstinência» «com uma pudicícia tão rósea que a sua só vista o velho Saturno se haveria reaquecido». Ela é aquela que o oráculo de Júpiter chamará, em uma linguagem propriamente alquímica ver-se-á, «um pouco de ar terno» (a piece of tendre air). Seu marido, «o incomparável» Póstumo, é «uma criatura tal que mesmo se se buscasse no mundo inteiro, faltaria sempre alguma coisa a seu semelhante que se lhe queria comparar» (I, Cena 1, 19-22). «Ninguém tem tão bela aparência com tanto tecido.» Eis o casal ideal que a bruxa quer destruir a fim de procurar a Cloten a mulher que ele cobiça bestialmente, como o mal cobiça sempre a castidade para corrompê-la.

Imogène resiste às empresas de Cloten; ela resiste ao rei e aos maus tratamentos que se lhe infligem para forçar sua vontade; ela resiste a Iachimo, outro demônio que traz em si «o inferno» e «aloga no terror» [5] quando se encontra em presença de «esse anjo do céu». Ela ia sucumbir à violência, a Cloten que a perseguia mesmo diante da caverna de Belário, quando tudo muda em um instante. O mal é decapitado; o falso veneno é um cordial que adormece e torna assim possível, o sepultamento, o confronto de Imogène e de Póstumo, o desenlace e o perdão universal.

Em outros termos, é o mundo de Belário, os episódios inesperados da caverna que quebram o enfeitiçamento, matam Cloten e por via de consequência a rainha sua mãe. Assim, as duas tramas pessoais a Shakespeare, por ele verossimilmente superpostas aos contos, são só decisivas.

Belário era «uma árvore cujos ramos haviam curvado sob o peso dos frutos — mas, em uma noite, uma tempestade ou um banditismo, chamai-o como quiserdes, — lançou ao chão todos seus frutos maduros e até suas folhas — e o entregou nu às intempéries (III, Cena 3, 60-64). General de Cimbelino, fora banido simplesmente porque dois «miseráveis» haviam jurado ao rei que se ligara com os Romanos. Sorte bastante análoga à de Próspero despido ele também em uma noite por um intrigante e banido em um lugar inóspito. Pois tal como o Mago é exilado em uma ilha árida, tal como Belário vive desde vinte anos em montanhas inabitadas, fazendo de «essas rochas e dessa solidão seu mundo». Vive lá «em uma liberdade nobre, pagando ao céu mais dívidas piedosas que durante toda sua vida passada» (Ibid., 71-73). Como Próspero, refugia-se nessa solidão com os únicos seres puros do reino, os dois filhos do rei raptados por sua ama Eurífila a instigação de Belário. Por preço desse rapto-vingança, desposará Eurífila, ao nome tão transparente [6]. Mas ela morrerá bem antes do início da peça, e é Belário só que cria os dois garotos: «as artes que possuem, sou eu que as lhes ensinei. O que era minha educação, vós o sabeis», assegura ele a Cimbelino (V, Cena 5, 338-340).

Dessa educação que fez de Guiderio e de Arvírago «dois astros» benditos dos deuses, Belário nos dá desde sua entrada em cena um eloquente exemplo: «Eis um dia demasiado belo para guardar a casa (caverna) — quando o teto é tão baixo como este. Abaixai-vos, garotos! — Esta porta vos ensina como se deve adorar os céus, e ela vos curva — ao oficio sagrado da manhã; as portas dos monarcas — têm uma abóbada tão alta que gigantes podem transpô-las o nariz no ar — e guardando sobre a cabeça seus turbantes ímpios, sem dar — o bom-dia ao sol. Salve, tu, belo céu! — Nós alojamos na rocha, mas não usamos tão duramente contigo que tais fortunas orgulhosas» (III, Cena 3, 1-9).

E os dois jovens saúdam por sua vez o céu, como faziam cada manhã a seu levantar os discípulos de Pitágoras. Após o que Belário os incita a se entregar a seus «jogos de montanha», a caça. «Subi a essa altura lá longe, — vossas pernas são jovens; eu, pisarei esse vale. — Quando de lá de cima me virdes não maior que um corvo, observai — que é o lugar que nos diminui ou que nos engrandece, — e podereis então refletir sobre o que vos dizia — a respeito das cortes, dos príncipes e das astúcias da guerra» (III, Cena 3, 10-15). Nesse mundo, não é o mérito que leva a vantagem, como aqui em plena natureza, é a renome. Aqui a «vida é mais nobre que aquela que solicita uma humilhação, — mais rica que aquela que se pavoneia em uma seda que não se pagou» (Ibid., 22-24). A arte da corte é «um cume cuja escalada — é uma queda certa, ou que é tão escorregadio — que o temor não é menos perigoso que a queda» (Ibid., 46-48).

O resultado dessa educação?

— o horror das riquezas: quando Imogène ofirere pagar os alimentos que acaba de consumir: «Dinheiro?» exclama Guiderio, e Arvírago acrescenta: «Que antes todo o ouro e toda a prata sejam mudados em lama! — Pois isso não vale melhor que aqueles que adoram os deuses de lodo» (III, Cena 6, 53-56).

— o sentido da verdadeira fraternidade humana: «Irmão, ficai aqui, dizem os dois garotos a Imogène em traje de pajem. Não somos irmãos? (IV, Cena 2, 2-3).

— o respeito da sabedoria e o desprezo da presunção: «Não temo senão aqueles que reverencio: os sábios», responderá Guiderio às provocações de Cloten (IV, Cena 2, 95).

— o sentido da harmonia universal: «Todas as coisas solenes não respondem senão a eventos solenes» (Ibid., 191-192).

Eis a filosofia dispensada pelo mundo da caverna sob a direção de um velho sábio. E é nesse mundo estranho, à margem da humanidade corrompida, que penetra bruscamente Imogène no instante mesmo em que sucumbia ao desespero e à violência. E de entrada, desde sua entrada em cena, suas próprias reflexões estão à uníssono com as desses trogloditas, à uníssono com as de Bassanio escolhendo a caixinha de chumbo:

Os pobres mentiriam
que são acossados de aflições, sabendo
que é um castigo ou uma prova? Sim, nada de espantoso
que os ricos digam raramente a verdade. Decair na abundância
é mais grave que mentir por necessidade, e a falsidade
é pior nos reis que nos mendigos. (III, Cena 6, 9-14.)

É nessa disposição de espírito que ela descobre a caverna, ali se restaura, depois se faz acolher «como um irmão» por Belário e seus «filhos» que não suspeitam que ela é uma mulher e sua própria irmã. «Irmão, ficai aqui, diz Arvírago. Não somos irmãos?» E ela responde: «O homem deveria ser assim com o homem, mas as argilas diferem em dignidade — embora sejam ambas da mesma poeira» (IV, Cena 2, 4-6). E antes de deixá-la para retornar à caça, Guiderio insiste: «Amo-te... tanto e tão bem como amo meu pai» (Ibid., 16-18).

Então Imogène, reencontrando sua solidão e sua insuperável tristeza, retoma suas reflexões sobre o valor dos grandes (monstros do mar) e dos humildes (peixes requintados). O mal rói-lhe o coração. Ela provará o «cordial» da rainha que lhe entregou Pisânio e ela cai em um sono de morte, enquanto Guiderio decapitará Cloten e jogará sua cabeça no riacho. Tal é o início da cena mais que estranha imaginada, acreditava-se, por Shakespeare. Arvírago penetra primeiro na caverna onde descobrirá o corpo de Imogène, morta em aparência. E, em vez de vir anunciar esse infortúnio aos outros, faz ressoar na caverna uma música solene de uma infinita tristeza. «Que quer ele dizer, pergunta Guiderio a Belário? desde a morte de minha muito cara mãe — o instrumento não mais ressoara. Todas as coisas solenes — não respondem senão a eventos solenes. A causa?» (Ibid., 189-192). A causa, é a morte aparente de Imogène-Fiel que Arvírago traz em seus braços e que encontrara lá, estendida, parecendo dormir. «Sim, ele não faz senão dormir: — se partiu, fará de sua tumba um leito; sua tumba será assombrada por fadas; e os vermes não te visitarão» (Ibid., 215-218). «As mais belas flores enquanto durar o verão e que eu viva lá, Fiel, embalsamarão tua triste tumba; tu não faltarás — de flores que assemelhem teu rosto, pálida prímula — nem da campainha azulada como tuas veias, não — nem da folha da roseira brava (Ibid., 218-223). E enquanto Belário busca o corpo de Cloten para sepultá-lo na mesma tumba que a jovem — pois «grandes e pequenos apodrecendo lado a lado fazem uma só poeira» (Ibid., 246-247), — os dois jovens começam a cerimônia fúnebre. Primeiro «é preciso que coloquem a cabeça (de Imogène) para o leste. Meu pai, insiste Guiderio, tem uma razão para isso» (Ibid., 255-256). Depois dizem esta cantilena:

Não temas mais o ardor do sol
nem as fúrias do vento furioso,
tu cumpriste tuas tarefas terrenas,
retornaste a teu lar e tocaste teus salários;
garotos e garotas dourados devem todos,
como os limpadores de chaminés, tornar-se pó.
 
Não temas mais a cólera dos grandes,
tu ultrapassaste os ataques do tirano:
não te preocupes mais com vestimentas e alimento;
para ti o caniço é como o carvalho:
cetro, ciência, medicina,
tudo segue esse caminho, torna-se pó.
 
Não temas mais a chama do relâmpago
nem o raio temido do trovão;
não temas mais a calúnia, a censura brutal;
tu acabaste com alegrias e lágrimas:
todos os jovens amantes, todos os amantes
devem reunir-se a ti e tornar-se pó.
 
Que nenhum exorcista te atormente!
que nenhuma bruxaria te enfeitiçe!
Que os espectros sem sepulturas te respeitem!
que nada de mau te aproxime!
Tenhas consumação na quietude,
e que tua tumba seja venerada! (Ibid., 258-281.)

Depositam perto da tumba de Eurífila, lado a lado Imogène e o corpo de Cloten; aspergem-nos de flores e retiram-se sem cobri-los de terra, sob pretexto de jogar sobre os corpos, à meia-noite, outras flores, «pois as ervas que têm sobre elas o orvalho frio da noite convêm melhor para florear as tumbas» (Ibid., 283-285), como se fosse a tumba e não os corpos que se tratasse de florear. Apenas partiram, que Imogène desperta, esfrega os olhos e diante da estranheza dessa cena pergunta-se longamente se sonha:

Oh, deuses e deusas!
Essas flores são parecidas aos prazeres deste mundo;
esse cadáver sangrento é o cuidado que se mistura.
Espero que eu sonhe… Nossos olhos mesmos
são às vezes cegos como nossos julgamentos. Em verdade
eu ainda tremo de medo; mas se resta
no céu uma gota de piedade fosse ela tão pequena
quanto o olho de um rei-pequeno, deuses temidos, dai-me!
O sonho está sempre lá; mesmo quando estou despertada
está fora de mim, como em mim, não imaginado, mas sentido.
Um homem decapitado! (Ibid., 295-308.)

Para perpetrar seu estupro, Cloten pusera as vestimentas de Póstumo; Imogène crê reconhecer seu marido nesse corpo sem cabeça; eis bem suas mãos, seus músculos, seu porte, mas «seu rosto de Júpiter»? «Um assassinato no céu!» Ela ensopa as faces com o sangue de Cloten, «para que pareçamos mais horríveis àqueles — que por acaso nos encontrassem». E exclamando: «Oh, meu senhor, meu senhor!» ela desaba sobre o corpo decapitado (Ibid., 308-332). É assim que os Romanos a descobrirão e interrogando-a sobre o sentido de «esse desastre», obterão dela essa resposta: «Não sou nada; ou senão — não ser nada valeria melhor» (Ibid., 367-368) pois seu marido está morto. E Lúcio lhe responde: «Enxuga tuas lágrimas: certas quedas são jeito de elevar-se a mais felicidade» (Ibid., 402-403). É quase palavra por palavra o oráculo de Júpiter.


Que significa esse longo e bem singular interlúdio? Pode-se crer razoavelmente que Shakespeare imaginou esse episódio melodramático de um gosto à primeira vista duvidoso, a só fim de atar o tema Imogène ao tema Belário? Ou mesmo para lhe facilitar a entrega de Imogène às mãos de Lúcio? Isso não é pensável. As relações de Imogène com os habitantes da caverna reduzem-se a uma fraternização seguida de uma falsa morte. Tudo o que precede a «morte» não é senão reflexões sobre a vaidade das coisas, sobre a harmonia entre o homem e o universo, sobre a necessária fraternidade humana. O que segue é, no meio do pior terror, da pior fantasmagoria, a certeza da morte de seu amor, da morte de Póstumo, o aniquilamento do ser, o «não sou nada» que se reencontra em todos os místicos. É o contraponto exato da cena de Bassanio assistindo ao dobre do amor, dando e arriscando tudo o que tem e escolhendo a renúncia total para encontrar a verdadeira felicidade. Ora, uma das obras mais curiosas de Michael Maier ilustrada de imagens fort eloquentes, contém uma figura bastante análoga a nossa cena da tumba. O desenho representa uma jovem garota ou jovem mulher fort bela e de aspecto casto, em aparência morta e estendida em uma cova fresca cavada e pouco profunda. Ao redor de seu corpo todo vestido enrola-se a cauda de um dragão cuja cabeça ergue-se em face da da jovem mulher, cuspindo para ela seu hálito. A legenda latina diz: «O dragão e a mulher matam-se um ao outro e ao mesmo tempo são aspergidos (perfunduntur) de sangue.» E o contexto precisa: «Que uma tumba profunda seja cavada para o dragão venenoso e que a mulher seja atada a ele solidamente por seu próprio enlaçamento (isto é, que ela se agarre a ele). Enquanto esse dragão toma as alegrias do leito marital, morre aquela com a qual foi sepultado. Em seguida o corpo do dragão é dado à morte e tingido de sangue: eis o verdadeiro caminho de tuas obras.» Segue a explicação alquímica desse símbolo esotérico: «A morada dos dragões está nas cavernas da terra; a dos homens está acima da terra, na atmosfera mais próxima. Esses dragões, quaisquer que sejam, seja que uma mulher encontre-se com eles, seja um dragão fêmea, penetram-se mutuamente (ou lançam-se um sobre o outro?) até que morram um e outro e façam jorrar do sangue das aves e sejam aspergidos por ele. Mas por dragão entende-se aqui o elemento terra e o elemento fogo e pela mulher, o do ar e da água… Quanto à mulher ou a águia, é a água aérea que alguns chamam águia branca ou celeste…»

Essa cena e esse texto não nos dão somente o evidente protótipo ritual ou emblemático da cena shakespeariana e seu sentido esotérico; resolvem ao mesmo tempo um dos enigmas mais curiosos do oráculo de Júpiter anunciando a Póstumo e aos seus o fim de todos esses infortúnios e — entre outros símbolos alquímicos — a reunião do leãozinho e «de um pouco de ar terno» = mollis aer = mulier = Imogène, explica o adivinho. Mas a isso retornarei ao fim do capítulo, pois essa passagem contém o sentido último da falsa «tragédia».

O acoplamento mítico da mulher e do dragão repousa sobre a equação adotada por Maier entre o dragão e os elementos terra e fogo de um lado, a mulher e os elementos ar e água do outro. São os quatro elementos tradicionais que, recordei bem muitas vezes, compõem analogicamente o universo criado. Na ordem hierárquica o fogo vem em primeiro, a terra no fim, ar e água sendo os elementos médios. Em Lyly, Dama Natureza criando Pandora, isto é, a alma humana, os cita na ordem usual. Na linguagem alquímica de um Maier o dragão representa os dois extremos: o fogo prometeico ou celeste e o limo corruptível entre os quais a alma (ar) ao encarnar-se — acoplamento do espiritual com o formal — torna-se prisioneira até a morte. A aliança monstruosa do dragão e da mulher fecha portanto o círculo da criação, outros termos figura «o verdadeiro caminho das obras».

Pois, não é, desconfia-se, sem segunda intenção, que Shakespeare estabeleceu uma correlação, dramaticamente inútil, entre a decapitação de Cloten e a cena lúgubre de que conhecemos agora a fonte. O protótipo sobre o qual deve ter trabalhado Shakespeare não nos chegou.

Mas pode-se concluir sem risco de erro, que tal como no Mercador de Veneza, o poeta enxertou sobre um tema vivo encontrado em um conto ou uma peça mais ou menos informes, uma alegoria esotérica, levando desse modo toda a peça ao nível do mito de iniciação [7].


Consideremos enfim alguns aspectos secundários da cena: o quadro — caverna em uma montanha deserta, — a posição dada ao corpo de Imogène por Guiderio e Arvírago, o tema de sua melodia fúnebre. Nota-se a insistência com a qual Shakespeare situa em uma caverna a habitação de todos aqueles que em sua obra — Belário, Próspero duque de Milão, e esse outro duque exilado da mesma cidade em Rosalinda — comportam-se como educadores e iniciadores. É bem conhecido que, seguindo a tradição ortodoxa, Pitágoras dispensava a iniciação em uma caverna ou antro escondidos e que ali se retirava para meditar. É em uma caverna que a seu exemplo reuniam-se «os irmãos». É em um «subterrâneo» ou «uma caverna» enfim que as provas preliminares à iniciação eram sofridas em Eleusis. Essa tradição era bem viva no tempo de Shakespeare e são precisamente os Rosa-Cruz que a recolheram então. Em sua bela parábola, Raptus philosophicus, Agnostus nos descreve assim a habitação do Grande Sábio que o iniciará miticamente: no alto de uma falésia de acesso difícil e penoso, «sua habitação estava em uma rocha grossa e dura, pois nem calor nem frio podiam lhe incomodar».

Enfim, por que o corpo da jovem «morta» devia estar orientado para o leste? Por que Guiderio insiste nisso, dizendo que seu pai «tem uma razão para isso»? Não é somente, como se disse, uma tradição funerária dos antigos celtas. Para os cabalistas, toda iluminação, toda luz, toda sabedoria vem do oriente: «Do oriente, diz a Fama, vêm todos os começos (initio) da magia».

Eis portanto o conjunto dos símbolos que justificam a existência do mundo da caverna, verdadeiro centro de iluminação onde Imogène veio renunciar a todas as coisas e receber o ensino da verdadeira fraternidade e da verdadeira sabedoria. A influência desse pequeno universo estender-se-á de próximo em próximo. A malícia da rainha tinha tido toda a corte, todo o reino sob seu encanto. A justiça de Belário e de seus «filhos» mata os ímpios, liberta o rei e traz a reconciliação e a apoteose dos jovens esposos paradigmas de virtude.

Provas e falsas desgraças, tal foi, graças à intervenção do mundo de Belário, a sorte de Imogène. Tal é também a sorte de Póstumo a fim de que seja preenchida a profecia de Júpiter. Póstumo quase matou Imogène; ele a crê morta e sofre um remorso tão pungente como se houvesse verdadeiramente sido seu assassino. Para ele também, explorando um tema do narrador, Shakespeare dispõe uma armadilha que o leva à fronteira do desespero: «Cuspis sobre mim. Jogai-me a pedra, cobri-me de lodo, incitai contra mim os cães da rua» (V, Cena 5, 222-223). E tal é o embotamento do homem — e a suprema habilidade de Shakespeare — que ele falta verdadeiramente de matar de sua mão Imogène disfarçada e desencadeia ao mesmo tempo a cena que deve desvelar a identidade da jovem mulher e manifestar a felicidade predita pelos deuses. É efetivamente «aquele que mais ama que Júpiter castigou mais», a fim de fazer melhor eclodir sua virtude.


O mundo da caverna restabeleceu a justiça e a harmonia: matou Cloten e a rainha, aniquilou o mal. Dispensou o ensino da sabedoria, da renúncia e da fraternidade. Em contendo a ambição, o egoísmo, a injustiça, a violência, faz triunfar a paz das consciências e a dos estados. Ensina a todos a suprema virtude proclamada outrora por Pórcia, outrora pela Fênix: o perdão. Póstumo regenerado diz primeiro a Iachimo: «O mal que vos farei será de vos perdoar». Não há de mais terrível e ao mesmo tempo de mais salutar para o Maligno. E o rei retoma: «A senha hoje é para todos: perdão» (Ibid., 422).

Fraternidade universal, penhor de paz e lealdade: embora vitorioso, Cimbelino pagará o tributo lealmente consentido. «Que um estandarte romano e um estandarte bretão flutuem amigavelmente juntos!»

Tal é «a harmonia dessa paz» e da fraternidade universal saída de tanta sabedoria. Tal é a apoteose da «amizade sem mácula» que cantava Fênix outrora.

É pelo menos aí, o aspecto imediato, terrestre, da peça. Iremos ver que há outro, de ordem cósmica, já roçado pelo poeta no símbolo do sepultamento de Imogène, o qual devia ter simplesmente por objetivo esclarecer o indivíduo sobre as vias da criação. Quanto ao sentido escatológico, é como deve ser a Júpiter que Shakespeare empresta o enunciado. O oráculo sobre o qual se disse bem muitas coisas interessantes ou curiosas [8] não é, não mais que o resto das fórmulas, à primeira vista singulares, da obra shakespeariana, um produto da imaginação ou da potência verbal do poeta. É um pequeno curso de iluminismo e de alquimia fazendo apelo a todo um arsenal de termos técnicos. Eis — palavra por palavra — o texto do oráculo inscrito por Júpiter sobre uma tabuleta a propósito para permitir ao adivinho Filarmonus propor uma interpretação bem estranha. «Quando o rebento de um leão sem buscar, ignorado por ele mesmo, encontrar e for enlaçado por um pouco de ar terno, e quando ramos houverem sido destacados de um cedro majestoso depois, sendo mortos bem muitos anos, reviverem em seguida e forem juntados ao velho tronco e brotarem frescamente, então Póstumo verá o fim de suas misérias, a Bretanha será feliz e florescerá na paz e na abundância» (V, Cena 5, 435-442).

Filarmonus explica que «o rebento do leão» não é outro que Póstumo-Leo-natus, que «ar terno» diz-se em latim mollis aer, isto é, mulier, mulher, e designa portanto Imogène; que enfim o velho tronco, o cedro majestoso, é o rei Cimbelino, seus dois filhos perdidos e reencontrados sendo aqui simbolizados pelos ramos destacados, mortos e reunidos à árvore. Desconfia-se que tudo isso não é sério e que Shakespeare tinha outra coisa em mente quando propôs a etimologia-troça de «tender air».

A passagem de Maier relativa ao dragão e à mulher resolve esse último enigma. Nas equivalências alquímicas que recorda, mulier equivale a aqua aeria ou a aer et aqua. Leo-natus, cuja união com mulier-aer anuncia o advento da felicidade universal, faz verossimilmente alusão aos «filhos do Leão» ou discípulos do Cristo gnóstico. O Leão saído da tribo de Judá designa de fato, em Fludd e Maier, o Cristo triunfante, aparecendo ao fim do apocalipse e de quem os verdadeiros filhos espirituais (propriamente Leo-natus), devem preparar a vinda.

Quanto à imagética da árvore cujos ramos são momentaneamente destacados e só revivem uma vez reunidos ao tronco, é manifestamente uma alusão à imagem tradicional da árvore da vida ou árvore sefirótica que já encontramos no Fausto de Marlowe («cortado é o ramo»…) Os cabalistas retomando uma tradição judaica simbolizavam o universo por uma árvore cuja raiz é a vida corruptível e cujos ramos, à medida que se sobe para a coroa, representam uma perfeição crescente da criação e da alma [9]. O renascimento dos dois ramos reatados ao tronco do cedro — árvore oriental e bíblica por excelência — simboliza portanto, em Cimbelino, o fim da vida mortal e a reunião a Deus da alma destacada da harmonia universal durante seu encarceramento no corpo-tumba.

Não há até a felicidade da Bretanha que não soasse esotericamente aos ouvidos dos Ingleses da época. Falando do poema de Chester sobre a Fênix e a Rolinha, fiz alusão a uma versão bem curiosa da história da Bretanha contada por Natureza a Fênix. É precisamente esse capítulo de Holinshed que aplica aqui Shakespeare. Artur, relata Chester, insurge-se contra a dominação de Roma e decide, como Cimbelino, não mais pagar tributo. Lúcio Tibério (Lúcio de Shakespeare?) embaixador de Roma, desenvolve seus argumentos diplomáticos e militares em um discurso quase decalcado por Shakespeare. Forçando como ele a crônica, Chester empresta a Artur a vitória sobre a Roma pagã, etapa para o advento do Espírito.

Shakespeare não pôde não se recordar, nove anos mais tarde, desse episódio de uma obra à qual colaborou tão intimamente. É por isso que acumula na profecia de Júpiter as alegorias, usuais em seu tempo, do triunfo da iluminação universal assim como individual [10].

É a etapa última sobre o caminho da perfeição que Shakespeare nos descreve no Conto de Inverno.


Ver online : Paul Arnold


ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955.


[1G. Wilson Knight, The Crown of Life. Por sua vez, A. Lefranc (A la Découverte de Shakespeare, II) afirma encontrar em Cymbeline o eco de um drama da família Derby; essa demonstração frágil não contribui em nada para esclarecer a obra.

[2Os dois diálogos entre Othon e Béranger, por um lado, e Posthumus e Iachimo, por outro, parecem ter sido copiados um do outro. E até mesmo os detalhes de uma conversa entre o rei de Granada e seu irmão Alfonso sobre a jovem disfarçada de pajem lembram a conversa entre Guidérius e Arviragus sobre o “pajem” Imogène.

[3Não devemos esquecer, evidentemente, que o decreto real de 27 de maio de 1606 proibiu “o uso do santo nome de Deus em peças de teatro”. Isso explica o lugar dado, a partir de então, às divindades pagãs e às entidades metafísicas da Antiguidade. No entanto, isso não é suficiente para explicar as particularidades atribuídas pelo poeta a essas entidades e, em particular, essa visão bastante anticristã da Providência-Destino.

[4A insistência na palavra “craft” (arte) em relação a ele talvez não seja sem intenção. O termo é utilizado em seu sentido mais pejorativo, próximo ao composto “witchcraft” (bruxaria): feitiçaria, malícia de feiticeiro.

[5I lodge in fear (II, Cena 2, 49).

[6Literalmente: «que ama o bem».

[7Sobre as relações possíveis desse episódio dramático com o ritual maçônico dito de Hiram, infra, p. 200 nota 1.

[8Assim, G. Wilson Knight percebe apenas o aspecto social e nacional do destino de Posthumus.

[9O tronco da árvore sefirótica é constituído pelos primeiro, sexto, nono e décimo ou último sefirós ou emanações imediatas de Deus. O último, Malchut ou Reino, identificado com a raiz, representa o mundo criado e corruptível; acima dele vem o justo da terra, primeiro grau de perfeição que conduz até a coroa ou kether. Os ramos são sempre aos pares. Os dois inferiores, Triunfo e Glória, concernem o homem em sua perfectibilidade. Conhecia-se também na época, sob o nome de árvore do Mercúrio uma representação propriamente alquímica da árvore da vida. O manuscrito atribuído a John Dee oferece um bom exemplo: empresta aos diversos estágios dessa escada de perfeição o jargão de laboratório (mercúrio, enxofre, elixir branco, etc.). A raiz e a base da árvore mencionam os oito graus da perfeição do homem indo da purgação até a conjunção (com o anjo); os primeiros ramos são a dissolução do corpo e do espírito corruptível, estágio preparatório à fermentação do elixir, etc.

[10Isto autoriza a pensar que como Leo-natus, como Filarmonus, os nomes de Póstumo e de Imogène têm uma significação oculta. Esse post-mortem que recorda o nome do filho do Leão poderia bem designar o estado de perfeição da alma ao término da vida-morte que foi para o iluminismo a passagem sobre a terra e a vida do não iniciado. Quanto a Imogène, é uma descoberta de Shakespeare verossimilmente a partir de gen-o, engendrar, e de imo-, immo-, negação, fim.

Devo assinalar as correlações numerosas e perturbadoras entre a cena de Andree e a de Cimbelino, de uma parte, o mito maçônico dito de Hiram, de outra parte. Eis aqui o resumo na versão que dela dá Eliphas Levi. Quando Salomão quis construir o Templo, organizou os operários em artífices, companheiros e mestres. À cabeça dos últimos estava o arquiteto tírio Hiram. Cada categoria recebeu sinais de reunião tidos secretos de um grau a outro. Mas três artífices ciumentos da autoridade dos mestres, tenderam uma armadilha a Hiram à porta do templo e, sobre sua recusa de lhes entregar o segredo, mataram-no e sepultaram-no sobre uma alta montanha. O corpo foi descoberto após bem muitas buscas pelos mestres que o tiraram da tumba com um processo que reproduz o ritual maçônico da iniciação ao grau de mestre. Depois perseguiram os assassinos. Uma noite, uma das bandas de justiceiros para, quebrada de fadiga, no meio das rochas de um vale deserto, ao pé das montanhas do Líbano. Ao anoitecer, um dos mestres avista uma luz em uma caverna. Ali penetra e lá encontra um homem deitado, adormecido. «Armando-se de um punhal que encontra ao pé do traidor, (ele) lho mergulha através do corpo, em seguida lhe corta a cabeça. Essa ação finita, sentiu-se pressionado de uma sede que o atormentava, quando avistando aos pés do traidor uma fonte que corria, saciou sua sede e saiu da caverna, o punhal de uma mão e da outra, a cabeça do traidor, que ele tinha pelos cabelos… Seus camaradas disseram-lhe que seu grande zelo o havia posto no caso de faltar às ordens de Salomão» que desejara fazer justiça ele mesmo. De fato, quando eles se apresentam diante do rei, no templo, Salomão faz eclodir sua cólera e só as súplicas de todos os mestres lhe arrancam o perdão.
Não é somente o episódio da decapitação do traidor por meio de seu próprio punhal, e o jeito como o vingador se apresenta diante de seus companheiros tendo a arma de uma mão e a cabeça cortada da outra, que recordam, no detalhe, a cena shakespeariana. É também o temor dos companheiros de Guiderio, a cólera de Cimbelino, o perdão dificilmente obtido.
Mas, a despeito das afirmações sempre suspeitas de Eliphas Levi, nada nos garante a antiguidade do mito de Hiram, se não na versão bem aberrante de Andree. Não posso portanto senão assinalar esse encontro perturbador, algum tentado que se possa ser de ali encontrar uma fonte de Shakespeare.