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Pessoa (LD:118/326) – sonho a vida real

De resto eu não sonho  , eu não vivo. Sonho a vida   real. Todas as naus são naus de sonho, logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade   a beleza   do sonho e a realidade   da vida. Por mais que possuamos um   sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne  . Por mais que se viva a vida em plena e desvairada e turbulenta ação  , nunca desaparecem o • do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo   decorrer.

Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma  . O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.

O Universo  , a Vida — seja isso real ou ilusão   — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é •.

Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser   eu possuir. E se do mundo   exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem do que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.

(Excerto de PESSOA, Fernando. Livro(s) do Desassossego. São Paulo, 2017 (edição digital, formato epub]]