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Esoterismo de Shakespeare

Paul Arnold – Shakespeare, Inferno

Capítulo VIII

Shakespeare raramente nos fala do destino da alma após a morte. Apenas Hamlet nos dá várias indicações preciosas. E antes de tudo o célebre monólogo do príncipe sobre o qual se divagou sem fim e sem grande seriedade.

« Morrer, dormir; — nada mais; e depois dizer que por um sono, terminamos » a peregrinação da vida… « dormir: talvez sonhar, sim, eis o ponto; — mas nesse sono de morte que sonhos podem nos vir — quando rejeitamos as penas desta existência mortal — eis o que deve nos deter ». Por isso « quem quereria carregar o fardo — gemer e suar sob a dor da existência, — se o temor de algo após a morte, — esse país inexplorado de cujas fronteiras nenhum viajante retorna, não aguçasse a vontade? » (III, 1,61 e seguintes.)

Desses sonhos após a morte, o espectro do velho rei nos dá uma descrição tanto mais útil:

« Condenado por certo tempo a errar pela noite, — e durante o dia compelido a definhar (fast) nos fogos — até que os crimes hediondos de minha existência carnal — sejam queimados e purgados… Mas esse símbolo eterno (eternal blazon) não deve ser — para ouvidos de carne e sangue » (I, Cena IV, 10-22).

Não é verossímil que essa « revelação » que precede o monólogo de Hamlet esteja filosoficamente em contradição com ele e que o príncipe ferido no coração pela aparição e pelas palavras do Espectro tenha esquecido suas lições no momento de se interrogar sobre os fins últimos. Ora, toda a hipótese dos « sonhos » após a morte não é o produto de uma imaginação de poeta; é um resumo das ideias ocultistas sobre o estado de morte; e as revelações do espectro são uma aplicação disso. Seguindo nisso uma longa tradição [1], os cabalistas ensinavam que quando o homem passa do estado de vida ao estado de morte, seu espírito cai primeiro numa espécie de sonho antes de despertar para a vida dos limbos. Nesse sonho, cada um vê o paraíso ou o inferno nos quais acreditou durante sua existência terrestre, conforme suas ações passadas suscitam nele a satisfação ou o remorso. É sob essa forma esotérica que os iluministas interpretam as descrições cristãs do céu, do purgatório e do inferno. As revelações do espectro de Hamlet são verossimilmente dessa ordem. Isso só explica as precauções de Shakespeare falando de « símbolos eternos » e recusando ao entendimento mortal a inteligência desses mistérios.

A distinção pouco ortodoxa estabelecida pelo espectro entre a noite em que erra e o dia em que queima, também não é arbitrária. Com efeito, segundo a tradição, durante os tempos próximos da morte, a alma sobrecarregada por suas más ações não pode subir às regiões celestes; tendo obedecido às inclinações do corpo, formou para si uma « casca fluídica » que se torna desde então sua prisão — noite em que erra — e que a queima nessas horríveis torturas de que fala o espectro.

Admitia-se que nesse estado a alma guarda um elo estreito com a terra sobre a qual continua a se sentir viver; e pode em certas condições corresponder com os humanos. Ela vive, com efeito, desde então, pensava-se, num « meio » especial do qual o homem participa em sua vida subconsciente e em seus sonhos — a visão de Postúmio — e ao qual se torna sensível em seus estados de exaltação seja involuntária (assim a melancolia de Hamlet, o remorso de Bruto, o de Macbeth) seja provocada pelo estudo da magia negra (as bruxas de Macbeth) ou branca (Próspero). É nesse mesmo « meio », nessa espécie de luz astral desprendida das dimensões, mesmo a do tempo, que o mago pode indiferentemente « ver » o passado, o presente e o futuro, como acontece na caverna das três bruxas.

Dos perigos desse estado intermediário apenas a iniciação ou iluminação individual pode, acreditava-se, salvar a alma do falecido, ajudando-a a reconhecer as visões que lhe vêm no « sono da morte » e a afastar o terror que a impele a se reencarnar. Daí, a importância da iluminação ou segunda nascença: libertando o homem já nesta vida da escravidão dos sentidos, tornando-o indiferente às paixões, ela acorda de novo sua alma à música ou harmonia universal, ela a restaura em seu estado de perfeição primitiva e a torna assim apta a reconhecer logo após a grande passagem, por um lado as ilusões perigosas que lhe sugerem suas más ações passadas, por outro lado a luz celeste na qual deve se dissolver para ser para sempre liberta da reencarnação e da dor, como acontece à alma-Fênix.

O espírito corrupto, o espírito « do lado esquerdo », ao contrário, é aquele que não conhece a verdade, a iluminação, ou que só conhece uma parte dela. É aquele que não tem, como o iluminado, renunciado ao mundo, domado as paixões, mas ao contrário se serve de seu « conhecimento » imperfeito para satisfazer suas paixões. Tal é o caso da rainha em Cimbeline, de Sicorax a invejosa, das bruxas de Macbeth. Não é apenas uma tradição, é um fato que em mulheres idosas, as paixões tomam mais voluntariamente formas mórbidas. Eis por que as bruxas se prestam a obras injustas, viciosas, torpes. Enquanto o paroxismo da vontade mágica de Próspero tende ao domínio de si e à harmonia, a justiça e a bondade fraterna, o acordo com as forças de « vida » divinas, a rainha da Bretanha, Sicorax, as bruxas tendem à frenesi, à fúria, ao desequilíbrio das paixões egoístas, especialmente ao orgulho, ao acordo com todas as forças perniciosas, desgraçadas, mortais.

As bruxas de Macbeth exclamam: « Vem de baixo e vem de cima » e isso é uma corrupção do axioma: « O que está em baixo é igual ao que está em cima », lei das correspondências cósmicas que conferem ao mago seu poder. Aquele das bruxas não repousa sobre a harmonia mas sobre uma desarmonia; é por isso que podem dizer: « O belo é feio, e o feio é belo ». Elas mantêm relações particulares com o sapo, porque, como recorda Paracelso, « o sapo é o signum magicum — assim como o sapo se incha de veneno, o orgulho do mesmo modo enfim aqueles que estão imbuídos dele. » Todos os ingredientes que elas reúnem no caldeirão, notadamente a gordura de enforcado, o caldeirão mesmo, a triplicidade dos operadores (para toda conjuração é preciso ser ou um ou três), a aparição de Hécate, rainha dos sabás e potência da morte, o triplo chamado do espírito que se evoca, todos esses detalhes de procedimento evocatório testemunham um conhecimento ao menos parcial da magia negra; eles relevam do mesmo princípio de semi-iniciação e de relação com « a árvore do bem e do mal ».

Assim como Próspero junta à sua potência a dos espíritos que domina, da mesma forma as bruxas criam espíritos artificiais a partir de certas coagulações da malignidade. E aqui Shakespeare nos fornece um dos mais belos exemplos de seus conhecimentos técnicos. Pois as ordens de Hécate impelindo as bruxas aos « assuntos de morte » (affairs of death) não são um simples pedaço de literatura mas um pequeno tratado de necromancia. « Antes do meio-dia, explica Hécate, é preciso fazer grande tarefa: — no chifre da lua — pende uma espessa gota de vapor; — eu a tomarei antes que caia à terra; — destilada por artes mágicas — isso fará levantar espíritos artificiais — que pela força da ilusão — atrairão (Macbeth) para seu infortúnio. [2]» Os cabalistas acreditavam com efeito que as paixões desregradas, os pensamentos maliciosos produziam coagulações aéreas ou larvas, se tal fosse a vontade do necromante. Essas criações malignas esposavam a razão e a vida daqueles que as faziam nascer e podiam se apresentar como seres viventes, agindo e se caracterizando sobretudo pela estupidez e pela maleficência [3].

Qual é a evolução respectiva dessas almas? Durante sua existência terrestre os homens, na concepção de Shakespeare, cumprem o destino inscrito nas relações que mantêm com o bem e o mal. Todos aqueles que são possuídos pelo espírito do mal conhecem um frenesi crescente que os leva à destruição de si mesmos, consequência inerente à sua crescente propensão ao mal. O exemplo típico disso é Macbeth que, recusando o suicídio (« por que fazer aqui estupidamente o romano ») decide matar com raiva até provocar sua própria morte. Cloten é vítima de seu orgulho estúpido; a rainha, sua mãe, morre no cume de sua fúria frenética e morre dessa fúria por não ter podido cumprir seus negros desígnios.

Ao contrário, os justos, tendo aceitado as provas, conhecem uma paz crescente e enriquecem sua alma por um acordo harmonioso e uma benevolência benéfica. Mesmo quando são em fim de contas as vítimas, como o príncipe de Elseneur, sua cruzada pela justiça produz frutos e eles sobrevivem na memória dos povos.

Não poderíamos atribuir o menor crédito à hipótese proposta por Graciano perguntando-se se Pitágoras não tem razão e se as almas dos animais não podem se reencarnar num corpo humano. Disse que essa interpretação popular da metempsicose era combatida pelos cabalistas e que é de bom grado que Shakespeare emprestou esse pensamento ao pateta da peça. Temos ao contrário encontrado mais de um testemunho da crença de Shakespeare — como geralmente de seus contemporâneos — numa metempsicose menos suspeita. Os cabalistas ensinavam com efeito que as almas dos « maus » são decompostas para entrar logo em combinações terrestres novas, enquanto que aqueles que receberam a iluminação, que atingiram a sabedoria divina beneficiam de uma dissolução definitiva no seio da Unidade originária.

Tal parece bem ser a evolução que Shakespeare supunha de um lado às almas « danadas » dos homens se precipitando para sua própria destruição, de outro às almas iluminadas reunindo-se com Próspero e Pórcia, a harmonia universal e a música das esferas.


Ver online : Paul Arnold


ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955.


[1Ela é encontrada não apenas entre todos os iniciados da Índia e do Tibete, mas também, em uma descrição muito detalhada, no Livro dos Mortos (Bardo Todol) tibetano.

[2III, 5, 22-29. Não ignoro que a crítica inglesa rejeita como apócrifa a maior parte das cenas das bruxas que, segundo alguns, seriam da autoria de Heywood (mas será isso certo?). Não há dúvida, em todo o caso, de que as bruxas intervêm na obra autêntica. E, como vimos, em nenhum momento Shakespeare se mostrou inferior aos seus contemporâneos em matéria de ocultismo. Portanto, a priori, podemos pensar que o texto original, se diferisse daquele que nos foi transmitido, não continha menos elementos técnicos de magia negra. As comparações permitem convencer os céticos. Em A Tempestade, cuja autenticidade não é contestada, Caliban se gaba, como já mencionei, de que Sycorax “coletou com uma pena de corvo o orvalho envenenado de um pântano insalubre”; e Prospero ordenou, certa vez à meia-noite, que Ariel recolhesse em uma baía de sua ilha “o orvalho das Bermudas”: em ambos os casos, com o objetivo de realizar operações mágicas. Aliás, meu argumento não se restringe à obra de Shakespeare; ele se refere aos elisabetanos em geral.

[3Ainda hoje, os tibetanos afirmam ser capazes de criar à vontade esses seres ilusórios que, segundo eles, são tanto mais difíceis de destruir quanto mais tempo se permite que subsistam, muitas vezes com risco da própria vida.