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Esoterismo de Shakespeare

Paul Arnold – “A Tempestade” ou o Grande Arcano

Capítulo VII

Afirma-se que eventos contemporâneos inspiraram a Shakespeare o argumento de A Tempestade. Em maio de 1609 — a peça é de 1610 ou 1611 — Southampton armou uma frota de oito navios e uma chalupa com destino às costas americanas, com o objetivo de colonizar a Virgínia; pois sir Walter Raleigh acabara de sofrer um fracasso retumbante. Uma tempestade separou do resto da frota o navio-almirante Sea Venture, no qual se haviam embarcado os três chefes da expedição, lorde Delaware, Thomas Gates e sir George Sommers. Enquanto a frota chegou a bom porto, o Sea Venture naufragou nas Bermudas. Acreditou-se que estava perdido com todos os seus ocupantes e bens. Na realidade, conseguira refugiar-se numa pequena baía arenosa de alguma ilha deserta. A baía estava repleta de crustáceos e moluscos; a ilha abundava em caça e plantas comestíveis de que se alimentaram os sobreviventes. Sob a direção de Sommers, que viria a dar seu nome à ilha, conseguiram construir uma pequena embarcação com os destroços do navio naufragado e chegaram por sua vez à costa da Virgínia. Conta-se que sua ilha de Crusoé era povoada por seres invisíveis e assombrada por uma música misteriosa que acompanhava a voz dos gênios mestres do lugar.

Os colonizadores tiveram de opor um desmentido formal a esses rumores que arriscavam, pensava-se, desencorajar os colonos. Assim, recordam alguns comentadores, um opúsculo de William Warrett publicou um esclarecimento, acrescentando — alusão talvez ao romance de Shakespeare [1] —: "Não há nada nessa comédia trágica que deva desencorajar os colonos".

Supondo — e, se não é possível afirmá-lo, não é de todo impossível sustentá-lo — que esse fato diverso trágico-cômico tenha fornecido ao poeta um ponto de partida, na verdade bem ténue, ele não lhe pôde sugerir senão um cenário e as circunstâncias exteriores do prólogo.

Recentemente o folclorista Emmanuel Cosquin [2] propôs uma aproximação com uma peça do alemão Jacques Ayer (morto em 1605), a Comédia da bela Sidéa. Ei-la o argumento: um usurpador, Leudegast, despojou de seus Estados seu irmão Ludoff e o baniu, assim como sua filha Sidéa, expulsando-os para uma floresta. Engelbrecht, filho do usurpador, encontra ali, sem os conhecer, seu tio e Sidéa. Por magia, Ludoff lhe paralisa o braço, quando quer sacar a espada, e o torna prisioneiro. Engelbrecht é compelido a todo tipo de tarefas servis, notadamente deve rachar lenha sob a vigilância de Sidéa que se apaixona por ele. Os dois jovens fogem, desbaratam as artimanhas de Ludoff que quer recapturá-los por feitiçaria, e acabam por se casar longe desse pai desnaturado.

Um conto gaélico sem dúvida mais antigo, igualmente citado por Cosquin, reproduz sensivelmente o mesmo argumento. Assim, o folclorista conclui pela existência de um protótipo, conto ou peça, onde Shakespeare teria haurido a primeira parte de sua intriga. A concordância dos dois argumentos é tal, de fato, que se pode admiti-la. Mas essa fonte possível interessa apenas ao ponto de partida de A Tempestade (ainda é preciso abstrair da tempestade em si), e a orientação exatamente oposta impressa por Shakespeare à sequência da intriga é tanto mais característica das intenções do poeta e de sua obra.

Sem nenhuma dúvida, o essencial, de fato, d’A Tempestade, é a ação mágica de Próspero suscitando um furacão, entregando aos remorsos seu irmão, o usurpador, e o cúmplice, o rei de Nápoles, dando em casamento a sua filha Miranda o filho de Nápoles purificado pelas provações (comparáveis àquelas que Ludoff submete Engelbrecht). O essencial são as altas verdades metafísicas que Próspero comunica a esse jovem casal no momento do matrimônio. O essencial, enfim, é a luta das forças malignas — Caliban e Sicorax — contra as forças benéficas — Próspero e Ariel — das potências celestes desencadeando eventos de aparência apocalíptica para agir magicamente sobre a alma dos sobreviventes e transformar em éden essa ilha de desolação e morte.

Pode-se isolar no romance shakespeariano uma série de temas aparentemente independentes uns dos outros. E primeiro o do casamento de Miranda e Ferdinando. Se se considera o volume, ele ocupa apenas um décimo da peça. Mas situa-se, em suas diversas fases, nos momentos mais elevados da obra.

Ferdinando, a quem não há nada a reprovar, que, contrariamente à maioria dos náufragos, não deve na ilha expiar algum crime, Ferdinando que é manifestamente o adolescente mais puro, mais casto, exato equivalente de Miranda que o ama desde que o vê, Ferdinando vê-se impor por Próspero provas longas, penosas e, à primeira vista, tão imerecidas quanto inúteis. O canto de Ariel lhe faz primeiro crer, desde seu despertar, que seu pai se afogou. E imediatamente esse ser imaculado — e ele apenas — pressente que a voz de Ariel não é a voz de um mortal, de um ser terrestre. Ele apenas não tem medo dela e entra desde o início em seu mundo encantado.

Depois, é o primeiro encontro com Miranda na presença de Próspero que, sob o pretexto de que um "sucesso demasiado fácil torna o preço leve" (I, Cena 2, 451-452), lança-o em ferros, obriga-o a viver de água, de mariscos e de raízes, e lhe atribui as tarefas mais duras: carregar lenha. Mas para o enamorado "tudo isso é pena leve, se na minha prisão eu puder nem que seja avistar uma vez cada dia" Miranda (III, Cena 1, 489-491).

É apenas bem mais tarde, no terceiro ato, que Próspero explica o objetivo que persegue ao compelir o jovem príncipe às tarefas mais humilhantes. Tratava-se uma vez mais, como para Bassanio, como para Imogênia, de provocar as reflexões do jovem sobre a vaidade das coisas e a virtude da paciência; estas reflexões, ei-las:

"Há jogos que são penosos, e o trabalho — neles mistura prazer: tais tarefas vis — podem ser cumpridas com nobreza, e os seres mais pobres — alcançam os fins mais ricos. Este trabalho vil — me seria tão pesado quanto odioso, se — a ama que sirvo não desse vida ao que está morto — e não transformasse meu trabalho num prazer" a todo instante (Ibid., 1-7). Assim, a pena prepara para o amor puro, e Próspero poderá dizer em breve ao adolescente: "Se vos castiguei demasiado severamente, o que ides receber em compensação reparará" (IV, Cena 1, 1-2). "Todas as tuas penas não eram senão provas (trials) que impus a teu amor" (Ibid., 5-6). Essas provas, das quais Miranda não sofreu menos que ele em espírito, tornaram sua alma perfeita, perfeitamente humilde e perfeitamente justa. Assim, na cena da declaração que segue imediatamente às reflexões de Ferdinando — tal como na cena das arcas — Miranda chorará sobre "minha própria indignidade (mine unworthiness) que não ousa oferecer o que desejo dar" (III, Cena 1, 77-78).

Depois da humildade, a castidade. Se Ferdinando, diz Próspero, consumasse antes do matrimônio "antes que as cerimônias santas possam — ser cumpridas com o rito pleno e sagrado — o céu não derramaria uma suave bênção — para fazer crescer esta aliança, mas o ódio estéril — o desdém de olhar agudo e a discórdia cobririam — a união de vosso leito com urtigas tão repugnantes — que ambos o odiariais: por isso cuidai — que as tochas de Himen vos iluminem" (IV, Cena I, 15-23). Não é uma vaga recomendação paterna, é o início de um rito que vai ocupar a maior parte do quarto ato e se encerrar com a revelação do segredo da gênese desta vez explicada abertamente. É por isso que Ferdinando responde, prometendo solenemente permanecer casto: "Assim como espero — dias de quietude, uma bela progênie e longa vida — no amor que sinto neste momento, assim a caverna mais obscura — o lugar mais oportuno, a tentação mais viva — que possa sugerir nosso pior pendor, nunca farão fundir — minha honra em luxúria, para embotar — o fio desta celebração na hora — em que me parecer ou que os cavalos de Febo se arrastam de fadiga — ou que a Noite está acorrentada sob a terra" (Ibid., 23-31). E quando o autoriza a sentar-se ao lado da amada, Próspero lhe recorda essa promessa: "Vê de ser fiel à tua fé, não largues demais a rédea — a esta brincadeira: os juramentos mais severos são apenas palha — no fogo que está no sangue: sê mais temperante (abstemious) — senão, adeus aos teus votos!" "Eu vos garanto, senhor, responde Ferdinando — a neve branca, fria, virginal sobre meu coração — abate a ardência do meu sangue" (Ibid., 51-56) [3]. A neve branca, fria, virginal! Em nenhum lugar, nem mesmo no Mercador de Veneza, Shakespeare formulou com tanta insistência a necessidade total de uma abstinência, de uma castidade absoluta para garantir o matrimônio e talvez mais ainda.

Pois toda a célebre fantasmagoria das deusas (Íris, Ceres, Juno) e das ninfas, terminando com a dança dos ceifeiros no estilo eleusiniano, desenvolve mais claramente ainda o mesmo tema. Ceres, ao saber que a convocam para celebrar com Juno a união dos dois jovens, pergunta a Íris se "Vênus ou seu filho" vão acompanhar aqui a rainha do céu. "Não temas aqui sua sociedade, tranquiliza-a Íris, — encontrei sua deidade — fendendo as nuvens para voar para Pafos, e seu filho — com ela arrastado por pombas. Eles pensaram ter lançado aqui — algum encante lascivo sobre este homem e esta jovem — que fizeram voto de não gozar os direitos do leito — antes que a tocha de Himen seja acesa. Mas é em vão" (Ibid., 86-97); Vênus e seu filho perdem seu esforço. Assim, é contra a paixão, contra a volúpia que se dirige todo esse rito, toda essa fantasmagoria que serve de celebração matrimonial — pagã. Não é Vênus que a preside, é Ceres e Juno.

Desde o início, Íris recorda a qualidade de Deméter, de deusa mãe da terra e da fecundidade, da vida. Desde o início, Ceres evoca o mito de Prosérpina: por que esse ódio de Vênus e de seu filho? Porque "desde que imaginaram — as artimanhas pelas quais o sombro Dis (Plutão) ganhou minha filha, — jurei evitá-los". Remeto ao capítulo anterior comentando o Conto de Inverno para medir o lugar primordial que o mito de Prosérpina ocupava no pensamento de Shakespeare envelhecendo, como nos mistérios de Eleusis. Mas aqui é Ceres que ocupa o primeiro lugar e precisamente essa Ceres do trigo e das colheitas que simbolizava em Eleusis — por vezes sob a forma de uma espiga [4] — o supremo mistério dos ciclos nascimento-morte-ressurreição. Não nos espantaremos portanto mais que toda essa fantasmagoria, semelhante àquelas que os hierofantes ofereciam aos olhos deslumbrados dos mistas, seja seguida da revelação por Próspero da essência do mundo.

De fato, por que Shakespeare associa, contrariamente aos textos gregos clássicos, Juno, Himen e Ceres? O Hino à Noite publicado por Chapman dezesseis anos antes e do qual assinalarei logo bem outros encontros com A Tempestade, dá-nos sem dúvida a razão. Ele descreve assim o cortejo da Noite triunfante, deusa suprema, símbolo tradicional da Essência primordial:

A eis que vem a gloriosa noiva das noivas;
matrimônio e triunfo, cintilantes a seus lados,
Juno e Himen adornam seu cortejo,
dez mil tochas são carregadas ao redor delas.

Assim, seguindo uma tradição que corria nos tempos de Shakespeare, Juno e Himen acompanhavam — com as tochas da iniciação mística — a Noite quintessencial que fazia "desabrochar a virtude na luz das luzes". Do mesmo modo que, para os gregos, o matrimônio era uma iniciação, do mesmo modo a evocação e a dança dos espíritos às ordens de Próspero é para o jovem casal a iniciação à Unidade primitiva. E do mesmo modo que o hierofante que primeiro impressiona a imaginação do mysta por uma imagética da qual explica depois o sentido, do mesmo modo Próspero, ao final desse espetáculo ilusório, explica aos jovens deslumbrados o segredo dessas aparições, a essência da matéria e da vida "feitos da mesma substância de que são feitos os nossos sonhos", destinados a mergulhar numa noite orlada de sono, noite metafísica, engolfamento no Uno primordial (IV, Cena 1, 148-157).

Assim, diante dessa caverna de mago, tornando, como observa Ferdinando, "deste lugar um paraíso" (Ibid., 124), Próspero elevou a alma dos dois jovens ao nível da contemplação do mundo espiritual e ao nível do conhecimento da essência das coisas.

E isto nos conduz ao segundo tema: a magia de Próspero.


Traçando seu círculo mágico, Próspero invoca as potências por estas palavras:

Vós, elfes das colinas, bosques, lagos estagnados e riachos
e vós que de vossos passos não deixando pegadas
perseguis Netuno no refluxo, fugindo
quando ele volta; vós as marionetes que
ao luar fazeis círculos verdes e azedos
onde as ovelhas não pastam; e vós cujo passatempo
é de fazer crescer à meia-noite cogumelos e que
vos agrada ouvir o som solene do toque de recolher;
vós com cujo auxílio — embora sejais apenas fracos magos —
eu encobri o sol do meio-dia, invoquei os ventos insurgidos,
suscitei uma guerra uivante entre o mar verde
e a abóbada azulada: eu aticei o fogo ao trovão
ruidoso e temível, e eu fendi o carvalho vigoroso
de Júpiter com seu próprio raio; eu fiz tremer
os promontórios solidamente estabelecidos, e arranquei pelas raízes
o pinheiro e o cedro; sepulcros a minhas ordens
despertaram seus dorminhocos, abriram-se e os fizeram sair
por minha arte toda-poderosa. Mas esta magia grosseira
eu a abjuro aqui; e quando tiver pedido
uma música celeste — o que faço agora —
para aperfeiçoar minha obra sobre suas almas
que é o objetivo deste encanto aéreo, quebrarei minha vara
e a enterrarei a muitas braças sob a terra,
e mais profundamente que descerá jamais a sonda
afundarei meu livro (no mar). (V, Cena I, 33-57.)

Estes versos fizeram correr muita tinta. Vê-se neles habitualmente o anúncio da retirada de Shakespeare, seu canto do cisne na mais pura tradição romântica. Tais comentários nada explicam e nada ajudam a situar a invocação na peça.

Ora, no Hino a Cíntia, George Chapman imagina assim a coroação da obra de Cíntia:

Então em teu Pentáculo claro e gelado
operas agora um milagre mágico:
põe todos os tipos de ervas e plantas venenosas
e traz a estes lugares teus cães loucos-furiosos.
Toma teu ar feroz, sê terror poderoso,
reveste tua forma maravilhosa longa de meio furlong,
põe teus pés de serpente, teus cabelos de víboras
e representa o papel mais aterrador de tuas diversas máscaras: inverte o curso violento de teus fluxos,
devasta os campos inteiros de trigo, e os grandes bosques,
lança colinas no mar e arranca as estrelas
do firmamento, e causa a perda dos marinheiros.
Assim se verão as maravilhas de teu poder,
e então sê para sempre a rainha dos planetas!

Então ela avançará triunfante com o cortejo de Juno e de Himen que recordei há pouco. Um silêncio de morte sobe para aquela que está cercada de música, pois "música e doçura ela as ama, mas ela odeia o amor" (paixão).

"A obra" que perseguem os dois protagonistas, Cíntia e Próspero, é a mesma: a reforma do mundo; seu procedimento é o mesmo: magia violenta, tempestade, revoluções geológicas, terror (note-se que Próspero não se limitou a suscitar uma tempestade no mar, como não se cessa de dizer; ele devastou a terra e tirou os mortos dos túmulos). A coroação de sua obra é a mesma: apoteose e música cósmica reacordando as almas. No detalhe mesmo, identidade de método: apelo aos gênios inferiores primeiro, às ervas venenosas, aos animais perigosos, depois às forças elementares cada vez mais violentas. Se Shakespeare não se lembrou do Hino de Chapman que não pôde deixar de conhecer, ele hauriu na mesma tradição oculta que seu contemporâneo. De uma só vez, este paralelo orienta nossas pesquisas para algo totalmente diverso de uma fantasia sobre a arte mágica, para uma escatologia apocalíptica e ocultista da qual Próspero é o agente mítico.


Conformando-se ao ato de 1606, Shakespeare, ainda que situando a ação d’A Tempestade na Itália da Renascença, povoa o céu de divindades antigas, como fazem todos os seus contemporâneos. Como eles, ele põe em cena uma "Providência" e um "Destino" (destiny, Fortuna), uma fatalidade, singularmente afastada das concepções cristãs. Mas ele empresta a esses conceitos uma ação especial. De um lado, de fato, essa fatalidade inscreve-se na astrologia, a conjunção dos astros que influencia o sorte do indivíduo, de outro um determinismo metafísico guia nossa escolha, seguindo as secretas intenções do céu: "Sois vós, ó deuses, exclama Gonzalo, que marcastes com um traço de giz o caminho que nos conduziu aqui" (V, Cena 1, 203).

Ora, para os cabalistas do tempo de Shakespeare, uma "razão suprema" dirige toda coisa, por outras palavras nosso destino está inscrito de toda a eternidade no fato da criação; o que é e o que advém devia ser e advir desde a origem.

O mago Próspero é guiado por essa razão suprema. Sua ação mágica estava de toda a eternidade inscrita nas conjunções favoráveis, diz ele; seu sorte não cessaria de piorar. E não é concebível que dele não tivesse usado, pois o destino marcou com um traço de giz todos os eventos que vão se desenrolar.

Quem é ao justo o mago-astrólogo-reformador Próspero?

Alguns críticos creram encontrar em John Dee, o astrólogo de Elizabeth morto em 1608, o modelo do personagem shakespeariano. Lembra-se que Dee se tornara conhecido por numerosas obras sobre as doutrinas ocultas e a matemática e por suas evocações de anjos e espíritos [5].


De fato, o paralelo entre Dee e Próspero não vai muito longe. Certamente, Shakespeare nos apresenta Próspero como um mago revestindo sua roupa tradicional (magic robes) no momento em que invoca os espíritos, servindo-se de livros e da célebre vara mágica (staff) que, seguindo uma regra bem conhecida em alta magia, ele esconderá sob a terra ou sob o mar, quando quiser separar-se de sua arte. É bem com a mesma vestimenta que um excelente retrato nos mostra John Dee. Mas era o uso secular de todos os magos, qualquer um o sabia.

Certamente, Próspero, como Dee, recorre à astrologia para conhecer a hora favorável, "o astro muito favorável" cuja "influência" se a negligenciasse faria declinar cada vez mais sua fortuna. Mas essa crença na influência dos astros esmaltava toda a obra shakespeariana; ela era, demais, um lugar comum em seu tempo e um dos temas favoritos de todos os escritos ocultistas, de Tritêmio e Paracelso a Andreae e Fludd.

Ademais, Dee recorre a todo um material para fascinar os espíritos: ceras onde estão impressos caracteres e figuras, bola de vidro, todos conservados no British Museum. Ele opera exatamente como esses falsos-irmãos que denuncia Agnostus: "maus, viciosos, magos negros ou nigromantes (que) querem fascinar o diabo com characteri, letras, figuras, prender os espíritos em anéis ou cristais". Veremos logo como opera Próspero.

Pois Dee não tem nada de um santo. Como os mal-iniciados, ele quer aproveitar seus conhecimentos alquímicos para fabricar ouro. Ele se deixa persuadir por seu médium supostamente inspirado, que se deve pôr as mulheres em comum; ele aceita o ménage a quatro, o que suscita escândalo e provoca um motim. Eis-nos longe de Próspero; este renuncia a todas as vaidades terrestres, a todos os fins terrestres (neglecting worldly ends) (I, Cena 2, 89) e "se retira" na "solidão" para estudar e descobrir a sabedoria com a única finalidade de melhorar sua alma. É por isso que em Milão já, negligenciando o governo de seu ducado, ele se dedicara às "artes liberais" (liberal arts) ou "estudos secretos" (secret studies), isto é, à magia branca. Longe de servir a suas paixões carnais, ele vive como eremita e recomenda a castidade em termos impregnados da mais alta sabedoria.

Como ele procede? Ele evoca os espíritos inferiores pela palavra específica ou fórmula; ele evoca Ariel pelo simples pensamento. Se traça o círculo tradicional no qual entrarão os humanos sobre quem quer agir é, como para os espíritos, à ação da música que recorrerá. Em lugar de espiritismo, de médium, de bolas de cristal e de "caracteres", é portanto à euritmia universal e à potência teúrgica do santo que ele faz apelo; esta potência, tais seres pretendem hauri-la no conhecimento dos altos símbolos e das leis do universo reencontrados por uma vida ascética e contemplativa em comunhão ou em comunicação constante com o céu. Próspero realiza perfeitamente esta definição do teurgo por Jâmblico (O Livro dos Mistérios): "O teurgo, pela potência das coisas inefáveis, não comanda mais aos seres cósmicos como um homem usando de uma alma humana; mas, enquanto preeminente na hierarquia dos deuses, ele usa de ameaças superiores à sua essência própria. Não que deva executar aquilo de que se faz forte: mas usando de tais palavras, ele faz conhecer em sua extensão, em sua qualidade e em sua maneira de ser, a potência que lhe dá a união com os deuses e que lhe foi proporcionada pelo conhecimento dos símbolos inefáveis."

Próspero consagrou sua vida e suas leituras ao conhecimento dos "símbolos" — em alta magia chamam-nos frequentemente "chaves" ou "clavículas"; ele adquiriu assim poder sobre o mundo dos humanos e o dos espíritos; a ciência das leis universais lhe permite desencadear os elementos com a potência de um deus. Ora, este último poder — atribuído a Moisés — passa em magia branca pelo teste por excelência da iniciação perfeita. Tal é em larga medida o verdadeiro simbolismo do romance shakespeariano: ao suscitar — para fins precisos e benéficos — a tempestade que deu seu nome à obra, Próspero provou que seu saber filosófico não era simples concepção mas iniciação total aos "poderes" divinos. É por isso que A Tempestade culmina ao mesmo tempo numa reforma dos humanos, na revelação e na transmissão do maior dos segredos: a essência primordial da criação. Por falta de conhecimento deste lugar comum da magia, os comentadores aventuraram as hipóteses mais engenhosas ou mais esdrúxulas sobre a significação da peça e de seu título.

Antes de prosseguir a análise, convém, a modo de parêntese, examinar se, como afirmam numerosos críticos, Shakespeare efetivamente deu prova de rara audácia ou de real potência política para autorizar-se a levar à cena a arte mágica aplicada sob nossos olhos.

Recordei, no início deste livro, algumas das polêmicas que dividiam os intelectuais e mesmo o grande público a respeito da feitiçaria e da magia. Em geral, os poetas tomavam o partido de um Jean Bodin para quem a magia negra dos feiticeiros não era fruto da imaginação. Como ele, a maioria acreditava no poder oculto e benéfico da magia branca. Mas em suas obras literárias, eles mostravam apenas o aspecto maléfico da necromancia. Greene com sua história do irmão Bacon, Webster com Flamineo, agindo um e outro por meio da bola de cristal que utilizava John Dee, Marlowe com Fausto, Heywood mesmo (As Últimas Feiticeiras de Lancashire) não ofereciam em espetáculo senão a magia negra.

Mas eram obras de grande consumo. Tanto quanto os mestres cujos escritos cabalísticos alimentavam sua curiosidade, esses homens não teriam jogado suas pérolas em pasto ao público. A proteção que a rainha Elizabeth concedeu durante anos a John Dee, evocador oficial de anjos celestes, prova suficientemente que os poderes públicos não se atacavam sistematicamente aos magos, fosse mesmo para acalmar a opinião. E, embora se mostre hostil à feitiçaria, embora tenha condenado dez anos antes todas as formas de magia, Jaime I deixará mão livre a Dee quando souber que é pela via dos anjos e não pela dos demônios que o mago de Mortlake pretende operar suas evocações ocultas.

Como crer, desde então, que a corte tenha podido olhar com maus olhos o espetáculo do poder mágico de um Próspero? Não temos o menor documento que possa fazer-nos pensar numa resistência dos poderes públicos; e o sucesso da obra foi desde o início espetacular. A análise nos ensinará ademais que o tema profundo da peça é a luta entre a magia branca de Próspero e a magia negra de Sicorax finalmente vencida. Jaime I não podia deixar de aprovar tal alegoria.


Vejamos como Próspero age sobre as almas para nelas fazer levantar o arrependimento.

Alonso, rei de Nápoles, crê ter perdido no naufrágio seu filho bem-amado. Este falso infortúnio amolece sua alma endurecida pela ambição e o poder, e a tornará sensível aos remorsos. Em frente dele, Sebastião, seu irmão, só pensa em se enfronhar mais no crime — e é na realidade uma espécie de psicanálise antes da letra: à instigação de Antonio, irmão de Próspero, usurpador do ducado de Milão, reiterando assim moralmente seu crime, Sebastião busca matar o rei seu irmão para se apoderar do trono.

Encontra-se na situação de outrora, nos tempos em que esses homens haviam desafiado o destino. Conduz-se-os à encruzilhada dos caminhos, lá onde se haviam desviado. Ainda obnubilados por sua falta, eles se põem pela primeira vez a questão: "Mas a consciência?" (II, Cena 1, 275). Bah! "onde ela mora?"

Assim preparados, os criminosos sofrem os assaltos do remorso pelo órgão de Ariel. Ariel, invisível, faz fracassar seu desígnio despertando o rei pela música; ele lhes recorda as más ações passadas, impele-os ao "arrependimento do coração", incita-os a levar doravante uma "vida pura". E eis que o arrependimento jorra, brutal, devorador, no coração desses homens endurecidos no pecado. "Oh, (meu crime) é monstruoso, exclama Alonso (III, 2, 95-102). Pareceu-me que as ondas uivaram e me falaram de meu crime; os ventos mo cantaram; e o trovão, esse órgão grave e terrível, pronunciou o nome de Próspero; foi o eco de meu delito. É por isso que meu filho repousa no fundo dos mares; irei procurá-lo mais baixo que a sonda jamais desceu e quero dormir com ele na lama." Mais sensível que os outros dois, Alonso é o primeiro atingido. Mas se a dente do remorso trabalha os outros mais lentamente, será tanto mais cruelmente. Gonzalo, o honesto Mentor, constatará um instante mais tarde: "Todos três estão desesperados; seu grande crime, semelhante ao veneno dado para agir muito tempo depois, começa a morder suas almas." (Ibid., 104-106). E Ariel descrevendo a Próspero o efeito de sua obra: "Todos três estão como loucos, seus companheiros choram por eles, cheios de dor e de espanto." (IV, 1, 12-14.)

Desde então, sua alma — como a do Cavaleiro da Rainha das Fadas — está pronta para ouvir acordes mais suaves: Próspero vai reacordá-las com a harmonia universal pela música que, à semelhança de Cíntia, ele fará ressoar ao final de sua grande invocação, "uma música celeste, para aperfeiçoar sua obra sobre suas almas, que é o objetivo deste encanto aéreo". Eis que "Alonso com gestos de demente" e os outros dois "entram no círculo mágico e ali ficam enfeitiçados" pela música deste novo Orfeu. "Que um ar solene, o melhor remédio — de um espírito doente, cure, diz Próspero, teu cérebro — agora impotente, fervendo em teu crânio." (V, 1, 58-60.)

É o milagre de Cíntia que eclode depois de todas as manifestações aterradoras, depois da tempestade.

Não é, aliás, a única alusão à música órfica. Um instante antes, já, o trio das brutas Caliban-Trincalo-Estêvão dispondo-se a cometer seus malfeitos são enfeitiçados do mesmo modo pelo rufar do tambor de Ariel — a cada categoria de espíritos corresponde uma categoria de música! — e "a este ruído, como potros selvagens, eles ergueram as orelhas, levantaram as sobrancelhas, alçaram suas narinas como para farejar a música: assim encantei seus ouvidos e, como bezerros, eles me seguiram mugindo através dos espinheiros" (IV, Cena 1,75-80). Shakespeare parodiou a si mesmo; ele reproduz mutatis mutandis o discurso órfico de Lorenzo explicando a Jessica o poder da música: "Olhai um rebanho selvagem e vagabundo — ou uma manada de jovens potros indomados, — que pulam loucamente, gritam e relincham ruidosamente — ... se ouvem por acaso ressoar uma trombeta, — ou que algum ar de música fere seus ouvidos, — vê-los-eis que se mantêm lado a lado, imóveis — seus olhos selvagens se mudam num olhar tímido — pelo poder suave da música".

O resultado deste poder misterioso, é Gonzalo que o descreve: "Nós todos, nós nos reencontramos a nós mesmos, enquanto antes nenhum de nós pertencia a si mesmo" (Ibid., 211-212) (when no man was his own): palavras que se encontram textualmente em todos os escritos gregos de inspiração órfica, alusão evidentemente à restauração da alma em seu estado de perfeição, longe das souilluras que a desnaturam e a tiram de si mesma.

Eis portanto em que reside o poder mágico de Próspero e a que ele tende. Iniciado perfeito, ele não precisa do instrumental complicado e ridículo de um John Dee. Ele possui a verdadeira "ciência" e a verdadeira "presciência" do inspirado. Ele conhece a essência das coisas, as leis-alavancas do universo microcosmado-macrocosmo; e seu papel nesta terra consiste em iniciar em seu saber revelado seus continuadores espirituais, Miranda e Ferdinando, e em devolver a si mesmas as almas desgarradas, depois do que ele não tem mais, ele, senão viver na meditação onde "doravante cada terceiro pensamento será para sua tumba" (Ibid., 311).


Este supremo saber que Próspero ensina ao término da fantasmagoria eleusiniana dos espíritos e dos falsos ceifeiros, esta última clavícula, este grande arcano, é a explicação de todas as coisas: elas não são senão átomos (the elements) vulneráveis ou "invulneráveis" às formas palpáveis. Pois toda manifestação deste mundo, análoga em sua essência a esses espíritos evocados

como a construção frágil desses miragens, as torres coroadas de nuvens, os palácios fastuosos, os templos solenes, o grande globo ele mesmo, sim, e tudo que vive sobre ele, se dissolverá e semelhante a este espetáculo sem substância que se esvaneceu não deixará nada atrás de si. Nós somos dessa estofa de que são feitos os sonhos; e nossa curta vida é orlada de sono. (IV, Cena 1, 151-158.)

Estas considerações não são desenvolvimentos poéticos mas um resumo técnico de noções tradicionais entre os cabalistas.

Ao falar de Hamlet, insistirei mais sobre as palavras "nossa curta vida é orlada de sono". Este sono não é um verdadeiro sono do indivíduo mas reabsorção na Unidade primitiva, no Uno que descreve Plotino seguindo toda a tradição órfico-pitagórica que adotará a idade média. Esta dissolução em nada que é, segundo Próspero, à semelhança do sonho o desfecho de todas as coisas manifestadas, isto é, limitadas no mundo formal, palpável, ou impalpável, sensível ou inteligível, esta dissolução constitui o ensino supremo de Hermes Trismegisto, o Asclepius helenístico: "Na dissolução do corpo material, lemos no Poimandres [6], entregas este corpo ele mesmo à alteração, e a forma que tinhas cessa de ser percebida e abandonas ao daimon teu eu habitual doravante inativo, e os sentidos corpóreos remontam a suas fontes respectivas das quais se tornam as partes, e são de novo confundidos com as Energias, entretanto que o irascível e o concupiscível vão para a natureza sem razão." É por isso que, numa fórmula toda próxima da de Shakespeare, outro tratado de Hermes diz: "Todas as coisas que caem sob o sentido da vista não são senão imagens ilusórias e, de algum modo, silhuetas" (VI, 4, Fest.). É aí uma aplicação das ideias tradicionais sobre a substância, tais como as explica o Sepher Yetzira, o livro mais hermético da Cabala judaica: toda manifestação não é senão a combinação de pesos, de números e de medidas momentâneos não tendo uma existência em si, mas sendo apenas os epifenômenos das especulações angélicas destinada, desde a origem, à dissolução, quando essas especulações tiverem cessado [7]. Esta teoria fundamental foi inteiramente adotada pelos iluministas do tempo de Shakespeare. Assim para Fludd, nós o vimos: "Todas as coisas são medidas e pesadas pelo Espírito de fogo que as anima".

Shakespeare não fez senão retomar e resumir tanto poeticamente quanto tecnicamente este ensino essencialmente anticristão. Mas se é certo que ele não fez senão adotar ideias em circulação, pode-se perguntar em que medida a fórmula mesma na qual no-las entrega não foi um simples empréstimo. Wigstone — são as únicas linhas utilizáveis de seu livro — assinalou esta passagem do Ájax de Sófocles: "Eu o vejo, nós não somos nada além de sonhos: nossa vida não é senão uma sombra fugaz." E leio na Demonologia de Jaime VI (I, VI) que o Diabo engana seus adeptos por formas "aparentes de armaduras, de cavaleiros e de infantes, de castelos e de fortalezas que todos não são senão impressões (miragens) no ar facilmente reunidas por um espírito assemelhando-se de perto a essa substância ela mesma".


Próspero possuindo a chave do grande arcano, o último segredo do universo criado, reina por isso mesmo sobre todos os seres, como o teurgo de Jâmblico. Não menos que os seres humanos, os espíritos superiores e os espíritos inferiores obedecem a seu pensamento ou a seu sinal mágico. À frente deste pequeno exército coloca-se Ariel.

Discutiu-se à exaustão sobre Ariel [8]. Apenas uma investigação metódica dos escritos iluministas teria permitido elucidar suas origens e sua verdadeira função no romance. Mas convém previamente recordar todos os traços deste personagem alegórico tal como nos representa A Tempestade.

Ariel figura na lista dos personagens — que talvez não seja da mão de Shakespeare — com a qualidade de "espírito aéreo" (airy spirit). O texto mesmo da peça parece bem confirmar esta aposição pois insiste sobre o fato de que este "espírito" (spirit) não é nada senão ar (but air), que ele não é provido de um corpo sensível, que ele não reveste nenhuma forma ou no máximo uma forma imaterial e não circunscrita: ele não é feito de átomos (elements) como o são as armas de Sebastião que pretende atravessá-lo. Em troca ele é apto a adotar instantaneamente qualquer forma (shape), a destruir e reconstruir à vontade todo corpo material (barco), a atravessar como se não existissem os elementos do mundo sensível: "nadar, mergulhar no fogo, voar, cavalgar — sobre as nuvens encaracoladas" (V, Cena 2, 190-192), e provocar perturbações nos quatro elementos, por conta de Próspero. Ele se desloca no universo pelo simples efeito do pensamento: "Vem num pensamento" (with a thought), lhe comanda Próspero; ele está "preso" (I cleave to) (IV, Cena 1, 164-165) ao pensamento de seu mestre, tal como havia sido fascinado e encerrado numa árvore pela feiticeira Sicorax. Ele pode agir sobre todos os espíritos — mortos e deuses — até os "confins" do mundo. Mas este puro espírito é ao mesmo tempo sensível à dor dos outros, diz-nos Próspero, e ele mesmo sujeito à dor mais intolerável.

Tudo isso não é senão a aplicação de ideias que se encontram reunidas em Reginald Scot, em seu "Discurso sobre a Natureza dos Diabos e dos Espíritos" anexado à terceira edição de sua Discovery of Witchcraft. Falando dos espíritos malinos, entre os quais os "Astral" e os "airy spirits", ele explica: "Como está na natureza dos espíritos se dilatarem ou se contraírem num volume tão estreito quanto queiram, eles podem assim num instante ser tão grossos de circunferência quanto cem mundos e bruscamente se reduzir ao volume de um átomo... Eles não são nem limitados como quereria a Tradição (esta ’tradição’ não é seguramente a Cabala autêntica onde se releva justamente a tese contrária) nem confinados em algum lugar separado, mas eles podem se deslocar num piscar de olhos sobre milhares de léguas... Eles não podem sair de seu próprio elemento ou qualidade", mas não podem ser atingidos por nenhum dos quatro elementos. "Sua substância é espiritual... Seu corpo é capaz de transpor a madeira e o ferro, a pedra e todas as coisas terrestres" inclusive o fogo. Eles são sujeitos às paixões e "têm por vezes o poder de provocar grandes perturbações no ar e nas nuvens e também de revestir corpos visíveis".

Assim a descrição de Shakespeare não tem nada de arbitrário. Mas seu Ariel não é um espírito malino, não é mesmo, como alguém sustentou, um espírito "neutro"; é um espírito do lado bom, "demasiado delicado para executar (as) ordens terrosas (earthy) e aborrecidas" da feiticeira Sicorax.

É aí um capítulo bastante sombrio de sua história. Sicorax operava numa Argel mítica de onde é exilada na ilha (veremos logo como). Ariel estava então a seu serviço (her servant) por outras palavras fascinado por sua magia negra; mas, repelindo seus atos terrosos, ele se revolta e, com a ajuda de seus fiéis (ministers), a feiticeira o faz prisioneiro e "o encerra", "o encarcera" num pinheiro fendido. O procedimento é usual em magia onde se encarcera comumente espíritos num corpo, uma bola de cristal — assim faz Dee —, um anel, etc. O suplício era a tal ponto atroz que seus "gemidos faziam uivar os lobos e partiam o coração dos ursos". Próspero apenas pôs-lhe termo (I, Cena 2, 263-280).

Toda esta aventura também não é devaneio de poeta. É ainda Scot que nos fornece a explicação técnica. Falando dos espíritos infelizes ou perigosos, ele assegura que "a fonte infinita de sua miséria se encontra neles mesmos e está continuamente diante deles, de modo que eles não podem jamais gozar de nenhum repouso estando afastados da presença de Deus" e isso se produz "em primeiro lugar quando eles são encantados por feitiçaria e constrangidos (bound, ligados) a errar assim muitos anos, três ou por vezes sete anos, antes de poder ser dissolvidos em nada", por outras palavras serem restituídos ao "elemento aéreo" que é o seu. Uma teoria usual da cabala à qual Scot não faz alusão expressamente, mas que ele parece bem ter em vista quando fala da dissolução, quer de fato que, em sua queda, o espírito separado de Deus revista uma envoltura ou casca tanto mais opaca e dura quanto mais baixo ele cai; esta envoltura que lhe faz sofrer o martírio não pode ser dissolvida, fundida, senão com o socorro de um "justo". Tal é talvez bem o sentido do episódio do pinheiro fendido no qual está encerrado Ariel.

Um dos únicos pontos que tenham incitado os pesquisadores a folhear as obras de ocultismo, é o nome mesmo de Ariel. Mas suas pesquisas não foram muito felizes. Um acaso pôs sob os olhos de Abel Lefranc a Esteganografia do abade Tritêmio. Revela-se nela, eu o disse, uma demonstração da influência de arcanjos, chamados "retores do mundo", sobre a raça humana. Cada um deles está ligado a um planeta; e na ordem imutável Sadael, Oriffiel, Zachariel, Samael, Michael, Anael, Raphael e Gabriel, eles regem a terra sucessivamente durante um período de trezentos e cinquenta e quatro anos. Ora, Zachariel tem por primeiro auxiliar Ariel [9]. Este, seu nome à parte, não tem a menor relação de função com o espírito d’A Tempestade.

Menos incerta é a fonte muitas vezes assinalada [10] da Hierarquia dos Anjos benditos, de Thomas Heywood. Depois de ter passado em revista os espíritos que se partilham as regiões zodiacais, Heywood acrescenta de fato: "Outros não põem em dúvida — que os quatro Elementos são constrangidos a obedecer — a quatro diferentes Anjos: Seraf reina sobre o Fogo, — Querub sobre o Ar, — e Társis comanda sobre as águas; quanto ao Mestre da Terra, — é Ariel (the Earths great Lord, Ariel)." Objectou-se não sem razão a data da obra: 1635.

Mas ninguém prestou atenção que esta passagem, Thomas Heywood limitou-se a copiá-la na Philosophia occulta de Cornélio Agripa, obra então extremamente difundida e verossimilmente empregada por Marlowe. Shakespeare não pôde deixar de conhecê-la, e de modo algum era preciso o intermédio de Heywood — o qual, todavia, A Idade de Ouro o prova, nada ignorava, em 1610, da cabala e da alquimia. Pelos quatro elementos, os alquimistas não entendiam os elementos físicos aos quais estamos acostumados, mas esferas espirituais cada vez mais afastadas da obscuridade humana, cada vez mais próximas da Luz divina. É portanto muito corretamente que Shakespeare, seguindo sem dúvida nisso Agripa, confere o nome de Ariel àquele que coopera com os homens. Mas aí param nossas fontes, e deve-se pensar que se o poeta não escolheu o nome ao acaso, ele não pensou um só instante em adotar e pôr sob os olhos dos espectadores o espírito mesmo que Agripa coloca em bom posto nas hierarquias do Schemhamphoras.

Na medida em que a Ariel shakespeariana empresta seus traços ao "mestre da Terra", pode-se não obstante reter que sua libertação coincide com o fim dos infortúnios de Próspero, do reino dos usurpadores, da dominação de Sicorax e de sua raça.

Quais são de fato os adversários de Ariel e de Próspero na ordem dos "espíritos"?

Caliban primeiro. É um ser material, sem forma corporal bem definida. Monstruoso, disforme (deformed), diz a lista dos personagens; e resulta das alusões do texto que ele não tem todos os aspectos do ser humano. Contentam-se em geral em ver nele um selvagem e interpreta-se com verossimilhança seu nome como um anagrama de Canibal. Mas é bem antes por seu espírito que Caliban é um ser disforme. Próspero interpela-o: "Tu, terra," lodo (thou earth), "a besta Caliban" (beast), a "coisa bruta", "coisa estúpida, obscura" (dull), "um diabo" (a devil), um "diabo nascido". Ele é a obscuridade da matéria que "nunca tomará a menor impressão de bem" e cujo "espírito não cessa de se corromper" (cankers), tal como seu corpo se torna mais feio à medida que avança em idade. Incapaz da menor vontade de bem, opaco a toda luz espiritual, ele se revolta contra a autoridade do justo e não busca senão macular o que é puro, a "violar a honra" de Miranda para abaixá-la ao nível de sua vida obscura e vegetativa e "povoar a ilha de Calibans". E no entanto esta traça tem um embrião de alma. Não apenas a das bestas que lhe fazem descobrir "as fontes de água fresca, os poços salgados, os lugares férteis e os inférteis". À força de paciência, Próspero lhe inculca um vocabulário para que ele possa "conceber seus próprios pensamentos" que tinha portanto mas "não podia conhecer"; todavia, se ele é "tão disforme (disproportioned) em seus costumes quanto em seu corpo (shape) as correções acabarão por amestrá-lo; um dia, ele "quererá ser avisado e merecer a graça" de seu mestre (V, Cena 1, 294-295). Ele, não é o mal, ele é apenas o produto repugnante do mal. O mal, é talvez sua mãe Sicorax?

"Sicorax" é certamente um composto de "sy" porco e "corax" corvo. É uma "horrível feiticeira", uma "feiticeira danada", que "a idade e a inveja curvaram como um aro". Esta maga reinava em Argel por seus malefícios "demasiado horríveis para que o ouvido humano possa escutá-los". Ela era "tão potente — que podia agir sobre a lua — fazer subir os fluxos e as marés — e agir em seu império além de seu poder". Preocupada com coisas terrosas (earthy), ela é sujeita à mesma "frenesi irreprimível" (unmitigable rage) (I, Cena 2, 273 passim) que a rainha de Cimbelino. Como toda feiticeira — veremos no capítulo seguinte que sobre este ponto também Shakespeare tinha uma certa bagagem técnica — ela está em relação com tudo o que é maléfico: ela recolheu, com penas de corvo, "o orvalho envenenado" sobre "um pântano insalubre"; ela se serve de todos os animais repugnantes: "sapos, caracóis, morcegos". Sob seu reinado, a ilha tornara-se "pestilenta", uma "morada de desesperados" e de danados, um "país de espanto onde residem... todos os tormentos e pesares". Mas unicamente em espírito, pois terá bastado um "poder celeste" para "guiar" Gonzalo "fora deste país de espanto" e, nos olhos de Ferdinando iniciado, fazer desta ilha um "paraíso".

Tal é o efeito da arte maldita à qual ela se consagra. E no entanto ela não é ela mesma o demônio; ela não é mesmo totalmente infiel ao mal; pois quando os argelinos, revoltados por seus "numerosos malfeitos e seus terríveis encantamentos", a capturam, ela escapa ao castigo supremo por causa "de uma boa ação que ela havia cumprido outrora". Ela também é um produto e um instrumento do mal, instrumento não mais involuntário como Caliban, mas voluntário e consciente. Do mesmo modo que Próspero adquiriu seu poder teúrgico pelo assujeitamento de seus instintos e pelo estudo dos "volumes de sua própria biblioteca" que pôde levar no exílio graças à lealdade de Gonzalo, do mesmo modo Sicorax se iniciou pelo estudo à magia negra da qual dependem todos os procedimentos que lhe conhecemos. Como toda feiticeira, ela se pôs a serviço — marido ou deus-demônio? — de um gênio do mal, Setebos, que invoca Caliban. É o nome de uma divindade da Patagônia que Shakespeare deve ter encontrado em alguma relação de viagem. Esta localização deliberada de todo o pessoal maléfico em países infiéis ou selvagens (Argel, Patagônia) prova que para Shakespeare a arte maldita estava em ligação com o desencadeamento das paixões. Sicorax, assujeitada às "obras terrosas" é a exata antítese de Próspero "negligenciando os fins terrestres". Sicorax-Caliban é o instrumento corruptor do mundo, Próspero é o instrumento purificador, um e outro no plano metafísico: magia negra contra magia branca.


É a esta luta metafísica que se resume em fim de contas A Tempestade. "É preciso enfrentar Caliban", isso volta como um leitmotiv na boca de Próspero. Toda a história dos exilados anterior à chegada de Alonso reduz-se à conquista da ilha por Próspero sobre Caliban (Sicorax já estava morta), à libertação de Ariel encarcerado em seu pinheiro, ao assujeitamento de Caliban para impedi-lo de perpetrar e perpetuar o mal. Posteriormente à tempestade, a atividade de Próspero reparte-se entre a iniciação-prova de Ferdinando e a regeneração das almas de Alonso e de seus companheiros, de um lado, a continuação da luta contra Caliban, de outro lado. Este combate atinge seu paroxismo no momento mais elevado da peça, imediatamente após o fim da fantasmagoria, na hora em que Próspero revela o grande arcano aos dois jovens: Caliban alistou os dois bêbados Estêvão e Trincalo para assassinar Próspero não sem ter "de antemão apoderado-se de todos os seus livros" — ele sabe que o Mago tira toda sua potência de suas fórmulas; — informado por Ariel, Próspero põe-se numa cólera como sua própria filha nunca lhe "viu até este dia" (IV, Cena 1, 144). É por sua arte, com a ajuda dos espíritos elementares que ele desbaratará esta última revolta de Caliban, e o submeterá a um último suplício que terá finalmente razão dele.

Pois terá sido necessária a intervenção de todas as forças cósmicas ao serviço do teurgo para aniquilar a obra negra de Sicorax. Se Caliban houvesse logrado seus fins com Miranda, estava feita a raça dos justos; era a raça saída das obras do demônio que houvera prevalecido, que houvera povoado a ilha; o milagre da tempestade-redenção do homem não houvera sido possível; não houvera havido casamento dos castos, descendência de Próspero. Houvera havido uma involução da raça humana, tornada raça-Caliban, um triunfo das obras demoníacas. É uma tal alternativa que propõe o romance shakespeariano aplicando, poder-se-ia crer, esta visão do Zohar I, 14: "A árvore do bem e do mal incitou à revolta vários espíritos antes mesmo que estivessem providos de corpos. Estes espíritos conceberam o plano de descer à terra, uma vez providos de corpos, e apoderar-se do mundo. Deus classificou então os espíritos em duas categorias: os bons foram colocados ao lado da árvore da vida e os maus ao lado da árvore do bem e do mal. Ele começou em seguida por prover de corpos os espíritos da primeira categoria; e quando chegou o momento de prover os da segunda categoria, o Sábado veio interromper a obra da criação. Se estes espíritos houvessem sido providos de corpos, o mundo não poderia existir mesmo a duração de um piscar de olhos. Contrariamente ao plano que haviam concebido de povoar o mundo com sua descendência, os maus espíritos experimentavam a mortificação de ver os bons espíritos revestidos de corpos, cumprindo desde a noite do primeiro sábado o dever de procriação."

Tal é bem a ação central d’A Tempestade: hierarquia de anjos contra descendência dos demônios, cada uma das legiões sendo conduzida por um mago, mago branco do lado direito, mago negro do lado esquerdo. Árvore da vida (iniciação) contra árvore do bem e do mal (paixões terrosas). Ao desfecho de eventos apocalípticos, o anjo da vida vencerá a raça do porco e do corvo, Sicorax, anjo da morte.

E compreendemos de uma só vez por que o poeta atribui tanta importância à castidade e aos ritos do matrimônio segundo a lei (holy rite, sanctimonious ceremonies) levantando, uma vez as paixões dominadas pela abstinência voluntária, a hipoteca com a qual a volúpia (lust) fulminaria a alma humana e a procriação. O hímen leal e espiritual é a manifestação terrestre dos espíritos da árvore da vida; a volúpia é a brecha pela qual os espíritos da árvore do bem e do mal tentam invadir o mundo manifestado e arrastá-lo em sua perda eterna.

Assim, A Tempestade não é apenas a coroação de uma carreira dramática, ela é a explicação a livro aberto de todos os temas que obsedaram Shakespeare, por toda a sua vida.


Ver online : Paul Arnold


ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955. Original


[1Opinião emitida pela Sra. Longworth-Chambrun.

[2Les Contes Indiens et l’Occident, monogr. B.

[3Assinalo aqui um dos mais regozijantes contrassensos a que a ignorância em que geralmente se está do espiritualismo shakespeariano levou mais de um tradutor desta passagem. Não sabendo muito o que fazer com essa frieza toda espiritual, mística, selo da continência e da suprema virtude do amor casto, alguns tradutores imaginam que se trata da frieza virginal do seio de Miranda contra o peito de Ferdinando!

[4Iniciação à epóptia (alguns escritos chamam a espiga "o iluminador perfeito").

[5Abel Lefranc, pensando encontrar aí uma prova de sua tese Shakespeare-Derby recordou os alguns encontros entre o VI Conde de Derby e John Dee por quem o primeiro demonstrou efetivamente interesse. Poder-se-ia responder que toda Londres conhecia os trabalhos e livros de Dee e que os matemáticos Harriot e Warner que frequentavam a Taberna dos rapazes, a Sereia, estavam necessariamente familiarizados com suas doutrinas e experiências. De fato, Dee era um "escândalo" da Inglaterra, nós o vimos, e todos podiam informar-se sobre ele, Shakespeare melhor que ninguém pois um dos principais atores de sua trupe, Philip, tinha sua casa de campo em Mortlake (aliás muito perto de Stratford) onde Dee operou até sua morte.

[6I, 24 Festugière.

[7Elohim "gravou e criou seu universo com três livros: Sepher (a escrita), Sopher (o número) e Sipur (a Palavra)" que na tradição da Cabala medieval são transcritos: o Universo, o Tempo e o Corpo. Das dez Sephirot que cria Elohim, a segunda ou "Espírito do Espírito" "gravou e esculpiu 22 letras". Essas "22 letras são a base das três mães, das sete duplas e das doze simples"; como "base (elas) gravaram, esculpiram, combinaram, pesaram, mudaram e fizeram formar por elas tudo o que foi formado e tudo o que será formado". (Tradução Calomira de Cimara, 1913.)

[8Depois da concepção brutal de um Colin Still que vê em Ariel o Anjo do Senhor, em Caliban, o Diabo e em Próspero, Deus ele mesmo; M. G. W. Knight compara o trio ao carro platônico descrito em Fedro: Próspero seria o condutor, Ariel e Caliban os dois corcéis ou tendências da alma. Tudo isso não repousa senão sobre raciocínios a priori.

[9E ele tem sua sede em Júpiter cujas ligações secretas com a Águia de Ganimedes inscrita nas armarias dos condes de Derby são bem conhecidas. Vê-se o partido que A. Lefranc tira deste argumento.

[10Em último lugar por Longworth-Chambrun, que comete todavia um erro ao dizer que no poema de Heywood "o gênio que comanda aos elementos e domina as tempestades porta o nome de Ariel".