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Esoterismo de Shakespeare

Paul Arnold – “A Comédia dos Erros”, “Hamlet”, “Othello”

Apêndice II

Tomando por base artigos que publiquei para preparar a aparição do presente livro, o Senhor Jean Paris propôs recentemente, em algumas linhas, uma interpretação esotérica de A Comédia dos Erros. Sua explicação, fortemente engenhosa, tendia a mostrar que essa peça cômica era inteiramente um símbolo da fragmentação da Unidade primordial em um Múltiplo que se resorveria ao final, quando, os quatro gêmeos e seus pais se reunindo após uma separação involuntária e dolorosa, a família é reconstituída.

Falta de um apoio sólido no texto [1], não é no estado atual possível verificar a hipótese de trabalho assim emitida. A Comédia dos Erros é uma das numerosas transposições dos Menecmos de Plauto; as variantes não se impõem de modo algum por um aspecto ocultista ou mesmo apenas filosófico. Mas se a interpretação proposta pelo Senhor Paris não força em nada a adesão, não seria menos imprudente rejeitá-la a priori. A data da comédia não está estabelecida; situa-se geralmente em 1591, um ano depois de Trabalhos de Amor Perdidos onde o interesse de Shakespeare pelo iluminismo nos apareceu claramente. Não seria portanto excluído que na época o poeta haja querido carregar uma anedota prazerosa de uma mensagem esotérica. Mas é tudo o que se pode dizer hoje [2]. E se poderia encontrar em Péricles, matéria para uma demonstração bem mais convincente, mas igualmente incontrolável, de uma fragmentação do Uno.


Encontra-se frequentemente semi-sábios que garantem o « rosacrucismo » de Shakespeare citando Hamlet e o papel de Rosencrantz. É conhecer tão mal a língua alemã quanto a peça inglesa e a história dos Rosa-Cruzes. « Rosenkranz », literalmente: Coroa de Rosa, nada tem a ver com « Rosenkreuz » ou Cruz de Rosa. A palavra, que é um nome de pessoa relativamente difundido nos países germânicos, era empregado na literatura religiosa medieval concorrentemente com « Rosengart » (feixe ou buquê de rosas) em um sentido vizinho de: florilégio. Eis aqui para a palavra.

Quanto ao papel do comparsa Rosencrantz (e de seu cúmplice Guildenstern, nome mais nitidamente escandinavo apesar da ortografia viciosa e antes alemã), não se poderia imaginar um mais desagradável entre os traidores ou velhacos shakespearianos. Aquele a quem Hamlet diz em face que é « uma esponja » « que bebe o favor do rei » (IV, Cena 2, 12 e 16), aquele que se comporta como a baixa polícia e consente em conduzir seu amigo de infância aos estranguladores encarregados de o assassinar, tudo friamente, com paradoxos retumbantes (III, Cena 3, 12-23), não poderia portar, no espírito de Shakespeare, o nome de um modelo de virtude e de misticidade o qual, ademais, não germinará senão dez ou doze anos mais tarde na imaginação de alguns Luteranos wurtemberguenses. Tudo isso não é sério.

Hamlet não é uma peça esotérica propriamente dita, mas uma peça psicológica onde intervém e comanda um espectro, único elemento que Shakespeare não encontrou nas fontes prováveis (Saxo Grammaticus e Belleforest). A alma do velho rei assassinado por seu irmão reclama vingança e, condenado a errar em um hades vizinho da terra, determina a ação do hesitante Príncipe de Elseneur. Tudo o que se dirá de mais sobre a filosofia dessa peça não pode ser senão especulações intelectuais gratuitas, mais ou menos felizes. O oculto não intervém aqui senão na procedência de evocação e para a coagulação das almas dos mortos, sua vida astral e suas comunicações com os vivos, como expliquei mais acima.


Otelo não é mais que Hamlet uma peça esotérica. Essa tragédia comporta todavia alguns dos elementos mais curiosos do pensamento filosófico de Shakespeare.

Admite-se geralmente que o poeta encontrou a anedota em uma novela de Giraldi Cinthio. Mas o contista italiano emprestou uma lógica perfeita ao comportamento e à resolução criminosa do Alferes (Iago em Shakespeare). Este, « de uma muito bela figura mas da natureza mais scelerata que haja jamais existido no mundo », « tornou-se violentamente enamorado de Disdemona » (alcunha Desdêmona) « e tentou todas as sortes de meios para lhe fazer conhecer e compartilhar seu amor ». Disdemona não tendo olhos senão para o Mouro, o Alferes atribui seu fracasso lamentável ao amor que ele supõe à jovem mulher por um oficial muito ligado com o Africano (Cássio em Shakespeare). « E pôs-se a buscar como poderia, após se haver desembaraçado do oficial, possuir a dama, ou impedir pelo menos que o Mouro a possuísse ». Acusará portanto Disdemona de infidelidade junto a seu amo. Em suma, um banal drama de ciúme.

No poeta inglês as coisas tornam-se bem mais complicadas. Não é de modo algum o amor que determina a sceleratice de Iago: é a ambição. Cássio vem de ser nomeado tenente do Mouro, posto que brigava desde longo tempo o Alferes Iago. Decide vingar-se de Otelo: Desdêmona nada tem a ver com o nascimento de seu ressentimento e, partindo, da ação. É somente ao final do primeiro ato, quando reflete sobre a maneira de se haver para mortificar Otelo, que se recorda, « simples suspeita » diz ele, que aquele talvez um dia o haja tornado cornudo. Longe de ser determinante então, essa lembrança deve servir conscientemente para lhe esquentar a bílis: « Não sei se é verdade — mas no caso sobre uma simples suspeita — quero fazer como se fosse certeza » (I. Cena 3, 390-407). Esse excitante artificial lhe sugere o método de vingança: ferir Otelo no lugar mais sensível, acusar Cássio, outro objeto de seu ódio de ambicioso escorraçado, de enganar o Mestre com a jovem esposa. O destino de Desdêmona não está sempre diretamente em causa.

Mas algumas cenas mais adiante, quando já a armadilha está tendida e Roderigo preparado para suscitar a rixa que perderá Cássio, Iago, em um segundo monólogo, revisa e subitamente completa seus móveis: Cássio ama Desdêmona, persuade-se ele; « eu, amo-a também — não por luxúria, ainda que por ocasião — me possa pagar um tão grande pecado — mas impelido parcialmente a nutrir minha vingança — pois suspeito que aquele Mouro voluptuoso — haja montado minha montaria: esse pensamento — rói minhas entranhas como um veneno mineral — e nada pode ou deve satisfazer minha alma — até que estejamos quite, mulher por mulher; — ou, falta disso, que eu haja posto o Mouro — ao menos em um ciúme tão veemente — que a razão não lhe possa curar (II, Cena 1, 297-308). Estamos longe da « simples suspeita » sem importância do ato precedente. A vingança do ambicioso é esquecida, que somente havia determinado a ação inicial; desde então somente conta um ciúme de marido — que nada deixa entrever por outra parte no comportamento de Iago antes inclinado, crer-se-ia, a ver sua mulher entregue à prostituição —; Cássio não é mais que um instrumento secundário da vingança do ciumento. Somente o destino de Desdêmona interessa doravante a Iago.

Que aconteceu portanto? Shakespeare terá fraqueado? Terá esquecido seu ponto de partida que havia todavia inventado ele mesmo? Por que recair nas banalidades de Cinthio e acrescentar-lhe outro ciúme que nada prepara nem justifica? Por que Shakespeare não escolheu desde o começo um móvel tornado necessário a partir do momento em que o estratagema logrou sucesso diante de Cássio, onde este é demitido e onde o Mouro pronunciou palavras definitivas: « Cássio, amo-te; mas nunca mais serás meu tenente » (II, Cena 3, 244-245)? Inconsequências de poeta? A despeito de relaxamentos manifestos e de esquecimentos evidentes devidos à pressa na escrita, isso não é de modo algum crível. Essa gratuidade dos pretextos de que se farta o mais lúcido dos raciocinadores não pode ser obra do acaso.

Ora não há peça de Shakespeare onde seja mais frequentemente questão do Diabo, mesmo em Macbeth. É o socorro do inferno que espera sem cessar Iago para executar sua obra criminosa: « Inferno e noite devem levar essa ninhada monstruosa à luz do dia » (I, Cena 3, 407), exclama ele ao final de seu primeiro grande monólogo ao conceber o plano de sua ação. Ele mesmo não cessa de ser qualificado « diabo » ou « meio-diabo » ou ser infernal ou danado (« scelerato danado » — damned villain —, « scelerato infernal » — hellish villain). E quando ao final sua infâmia é descoberta, Otelo diz: « Olho seus pés; mas é uma fábula (V, Cena 2, 286) subentendendo: o diabo não tem os pés bifurcados que lhe empresta a fábula.

Não é para dizer que, no espírito do poeta inglês, Iago era o diabo encarnado; Shakespeare nunca oferece encarnações de entidades, mas indivíduos mais ou menos dirigidos por potências cósmicas. A gratuidade dos móveis de que se contenta aquele que maneja a maravilha a « teologia de inferno » (II, Cena 3, 350) junta-se à malícia pura: fazer o mal pelo mal, para além do interesse bem compreendido. Outro dito, tudo se passa como se Iago fosse o executante cego das potências do mal, o agente humano desse inferno de que ele espera a realização de sua obra, o valete das potências infernais, um possesso, um suposto do inferno.

É bem por isso que seu comportamento não é o de um homem normal. Quando Otelo o apunhala, ele se gaba: « Sangro, mas não estou morto » (V, Cena 2, 288), pois o demônio não morre. E não quer ou não pode explicar sua malícia; quando o Mouro quer saber por que « assim enlaçou (ensnared) (sua) alma e (seu) corpo », responde: « Não me pergunteis nada; o que sabeis, o sabeis. — A partir desta hora não direi mais uma palavra ». E manterá sua palavra.

Assim toda a peça — que se desenrola sobretudo à noite — é a ação do demônio sobre os justos pela intermediação de um possesso agindo sob o impulso de paixões censuráveis girando em vazio.


Ver online : Paul Arnold


ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955. Original


[1Frases como « Nós erramos aqui em plena ilusão; que alguma potência benfazeja nos dela livre! » não bastam para conferir a toda a peça um valor de símbolo nem, em sua generalidade, para testemunhar intenções tão particulares do poeta em seus começos.

[2Convém formular a mesma reserva para a tentativa de explicação proposta pela mesma obra de Os Dois Cavalheiros de Verona.