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Jan Patocka. L’écrivain et son "objet"
Patocka – o mito e sua desagregação
quinta-feira 3 de julho de 2025
Dissemos que o primeiro fruto desse retorno [pela objetivação da linguagem] é o mito, a lenda, a fábula. O mito mantém a coesão de um sentido uno: "uno" porque a trama, a ação, a situação, a tarefa a cumprir devem ser conduzidas a uma conclusão que, feliz ou trágica, deve sempre representar uma resposta, resolver a questão do sentido da história narrada. É assim que se objetiva um contexto de vida, com suas referências internas, sua forma e conteúdo. Aqui se expressam as tendências mais primordiais da vida, os sonhos em torno dos quais ela gravita, os problemas que a ameaçam, os obstáculos que evita ou com os quais se choca, tudo isso sob a forma de um relato objetivo. Ora encontramos um filho que desposa sua mãe após matar o pai, ora é a sequência do avô, mutilado por seus filhos conjurados, ou ainda a eterna sedução do poder cujo fascínio leva um vencedor à catástrofe e obriga todos os que conhecem seu favor a transpor o limite. Expressa-se aqui a impotência originária do homem diante das forças que governam o mundo, a afinidade que une ingenuidade e felicidade... É uma possibilidade nova que se abre e que incita então o criador individual a unificar o todo num vasto conjunto que, no quadro mítico, apreende o mundo inteiro numa imagem ideal compreensível à humanidade de uma época determinada.
O mito é uma criação eminentemente coletiva. O que apresenta não é o mundo (isto é, a totalidade do conteúdo significativo) da vida de um indivíduo singular, mas sim o sentido da vida de um nós determinado. Nas fases mais antigas da verdadeira literatura escrita, que permanece naturalmente em contato com o mito, esse motivo se expressa pela orientação da literatura para o universal. Tanto a poesia épica grega quanto a poesia lírica e o drama testemunham uma mesma pulsão de apreender o universal. Daí resulta não apenas uma impressão, mas ainda uma intenção formal de essencialidade. Em Safo, são as vertigens amorosas e as êxtases do sentimento que se expressam dessa maneira. Alhures, a sede de vingança ou o triunfo têm, em sua expressão primeira, a força desse estado nascente que consegue apreender o essencial e lança assim os fundamentos de toda criação ulterior, nas épocas em que o escritor falará doravante por si só.
A desagregação da consciência mítica e de sua unidade, somada à influência exercida sobre a expressão do sentido da vida pelos outros modos de objetivação escrita da palavra, tem importância particular para o nascimento da escrita em sentido próprio — a escrita dos escritores. No quadro da civilização ocidental, essa desagregação se cumpre na Grécia a partir do fim do século VI. É então que aparece uma possibilidade nova de relação com o universo, modificando nossa atitude originariamente não reflexiva, instintiva, por um ato explícito de pensamento — a filosofia. Na atmosfera da filosofia nascente, a ciência sistemática se constitui a partir dos formulários técnicos. O relato, o documento, a ata, a descrição narrativa sustentam os primeiros passos da ciência histórica. Todos esses discursos são individuais, é o indivíduo que neles fala, o autor (de uma prova ou sistematização, de uma ideia ou teoria, de um apanhado ou relato) que fala em seu próprio nome e assume a responsabilidade pelo que diz. No entanto, o sentido visado não é o sentido da vida, mas sim o sentido objetivo. A Antiguidade clássica não conhece a escrita propriamente dita, no sentido moderno. A escrita antiga se move continuamente entre os dois polos constituídos pelo mito e pelo sentido objetivo. Conserva esse caráter ainda mesmo quando o mito se torna pura convenção. A Idade Média substitui o mito pela teologia e por uma mitologia desdivinizada, concebida como simples tema de moralidades ou alegorias. A evolução moderna, em contrapartida, não cessa de elaborar uma apreensão individual do sentido da vida, isto é, uma apreensão da qual o autor se faz ele mesmo garantidor, num contexto social, mas não em relação a um nós anônimo e coercitivo em seu anonimato, de funcionamento automático.


Ver online : PATOCKA, Jan. L’écrivain, son “ objet”. Paris: Presses Pocket, 1992