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Jan Patocka. L’écrivain et son "objet"
Patocka – Mito
quinta-feira 3 de julho de 2025
Todos temos o hábito de abusar das palavras, de reduzi-las ao seu significado mais banal para usá-las como uma espécie de moeda falsa. É, entre outros, o caso da palavra "mito", que designa aos nossos olhos uma mistificação ou uma automistificação, uma representação anônima, surgida não se sabe de onde nem como, uma simples opinião ou rumor desprovido de fundamento que não consideramos como uma criação do pensamento com alcance objetivo, mas sim como um epifenômeno subjetivo. É nesse sentido que se fala dos mitos nacionais, sociais e políticos — o mito da raça, o "mito do século XX", o mito da greve geral, etc. — que alguns contestam de um ponto de vista racionalista, enquanto outros cultivam seu irracionalismo. No mundo moderno, não ocorre a ninguém usar essa palavra em outro sentido que não essa acepção degradada e decaída, que corresponde à forma debilitada que ela assume em nossa vida espiritual. No entanto, o mito em sua origem nada tem a ver com esse subjetivismo do "pensamento autista". O mito originário é verdadeiro no sentido forte do termo, a verdade é o que está em jogo para ele, ele contém a verdade e quer ser concebido com a seriedade suprema que pertence a tudo o que diz respeito aos primeiros começos e às origens.
Como o mito poderia não nos mostrar uma figura decaída hoje, no mundo da civilização racional, se o contexto de vida onde ele tem sentido e do qual recebe seu significado está ele mesmo fora de circuito, em vias de extinção? De fato, o mito em sua origem não é algo autônomo, e sua figura primeira não é a dos contos infantis. O mito pertence ao contexto de um modo determinado de atividade e comportamento humano que cada "primitivo" possui e a partir do qual nós também continuamos a viver a crédito, sob uma forma enfraquecida, embora o modo primordial e principal de nosso comportamento, nossa práxis inteira, tenda a nos desviar e a nos desapegar dele. Ainda conhecemos, mesmo que apenas por uma tradição obscura, a distinção entre o dia útil e a festa; o nome dos pais e o vínculo familiar, em todas as suas articulações e em todos os seus graus, ainda abrem algo como um mysterium tremendum; a felicidade ou a infelicidade, um destino dotado de sentido, embora imprevisível, ainda nos espera nas encruzilhadas da vida. Como os esqueletos calcários deixados pelos construtores dos recifes de coral ao morrer, permanecem em nós, vestígios do mito vivo, suas racionalizações. O comportamento em questão aqui pode ser qualificado como comportamento ritual. Sua correlação com, mas também sua diferença em relação a todo o resto do comportamento humano, especialmente em relação ao comportamento pragmático, são evidentes à primeira vista. O comportamento ritual não está centrado no instrumento e no fazer instrumental; seu eixo não é o trabalho, a preocupação e a ocupação que provê às necessidades, a busca, a aquisição e a acumulação de meios, mediados ou imediatos, em vista da vida material. Nos ritos, danças, cerimônias, iniciações, sacrifícios, o homem não se relaciona com as singularidades que se integram nas possibilidades através das quais ele assegura a continuidade de sua existência no ritmo palpitante das necessidades vitais e de sua satisfação. Ele se relaciona com a totalidade de todas as possibilidades nas quais o mundo o interpela. E assim como não há abordagem mais originária das coisas que nos cercam do que aquela constituída por nosso comércio prático com elas, pelo contato que realizamos ao manuseá-las e trabalhar com elas como com ferramentas e meios em vista da vida para a qual o metal é o que se forja e a pedra o que se usa para consolidar as estradas, para a qual a matéria, a ὕλη, a silva é um material do qual se confeccionam coisas e produtos, da mesma forma o comportamento ritual também abre uma abordagem originária de certos aspectos e dimensões do mundo. Sabemos que nada pode substituir o contato primordial com as coisas do mundo circundante; nenhuma reconstrução conceitual pode justificar, explicar e expor à nossa vista o contato vivo com um ambiente cheio de cores, pleno de ressonâncias, que nos obedece e nos resiste, se mostra propício ou contrário aos nossos projetos, que tende a nos capturar e sobre o qual nos esforçamos para ter domínio. Da mesma forma, nada além do comportamento ritual originário dá acesso à dimensão do mundo que chamamos de sagrada, numênica, "sobrenatural", divina. E assim como ninguém pode explicar, a partir dos átomos e de seu movimento incessante, o mundo natural, primordial, de nosso ambiente, com a ordem de utensilidade que o caracteriza, mundo que é, no entanto, autônomo e em si mesmo em relação a nós, da mesma forma é impossível, partindo do mundo objetivo da física e das fórmulas matemáticas realizadas, alcançar o mundo do contato sagrado no qual a espontaneidade do rito se coloca de uma só vez, naturalmente e com toda a força da originariedade.
O mito, como palavra que brota do rito, pertence a esse contexto. E a palavra sendo o elemento no qual o mundo se desdobra e, portanto, se reflete, o mito também nos oferece o pontapé inicial da reflexão, a figura originária da reflexão do homem sobre sua relação global com o mundo. Isso não significa que o mito esgote as possibilidades humanas de uma relação originária com o mundo em sua totalidade. A relação com a totalidade contida no mito é singularmente unilateral. O mito se funda naquilo que sempre já constitui a protossituação do homem, nosso ser-lançado, o ser-em-situação que nos coloca, criaturas efêmeras e contingentes, no meio da força preponderante — ao mesmo tempo implacável e, de alguma forma, clemente — do incomensurável. Ora, o tempo é, como Kant foi o primeiro a perceber claramente, o quadro de toda compreensão humana de qualquer coisa, tanto do próprio ser quanto das coisas externas. O tempo é uma estrutura complexa, em relação com a "arte escondida nas profundezas da alma, da qual sempre nos será difícil desvendar os cumprimentos efetivos [1]". Mas se o tempo no sentido originário é de fato a porta de toda compreensão, seja ela qual for, segue-se que a chave do comportamento ritual será igualmente algum traço essencial da temporalidade humana originária. Remete à temporalidade mítica o caráter essencial de todo mito que consiste no fato de que o mito narra um evento passado — não um passado irrevogável, que teria mergulhado no irreversível, mas um evento que, como passado, "explica" e ilumina também o que é, na medida em que o presente é presença do passado. Dito isso, o quadro essencial de todo passado é aquilo com o qual sempre já nos confrontamos como homens, a saber, precisamente o ser-em-situação primordial que faz com que nos encontremos no seio de uma totalidade ao mesmo tempo clemente e implacável. O que foi e permanece presente, aquilo em que se abre uma temporalidade mais profunda do que a sucessão de instantes fragmentados, mergulhando um após o outro no irreversível, o "já" essencial da vida humana, é o que constitui o fundamento da compreensão mítica tanto das coisas quanto do próprio eu. Esse "já" como tal é brotamento, alvorada da vida, primeira luz da clareza nas trevas do incomensurável. Essa aurora é o que, passado, permanece presente, aquilo em que se abre, de certa forma, o núcleo fechado do universo. É como um corte, como uma torção cujo sentido é uma saída para fora do fechamento e da ocultação da noite dos tempos, tema ao qual o mito sempre retorna nas perspectivas correlativas da teogonia, da cosmogonia e da antropogonia. Essa ruptura, essa infração à ordem da superpotência universal, esse privilégio singular que representa ao mesmo tempo a fraqueza do homem, é a fonte inesgotável e o "objeto" da palavra mítica. À sua luz, a vida do homem aparece não apenas como manchada de culpa, mas como sendo ela mesma desvio, corte, ferida e "falha". Essa falha, o mito vê que nada do que faz parte da posição singular do homem a meio caminho entre a argila e o espírito escapa a ela, que ela se liga à modéstia e a toda a esfera da corporalidade instintiva, passional (que, apesar da disciplina da ordem à qual é submetida, esconde um caos cuja ameaça, sempre presente, põe em perigo a própria humanidade do homem), que ela não poupa tampouco a esfera da engenhosidade e da curiosidade humanas, o comportamento em relação ao bem e ao mal... Esses são olhares lançados no fundo mesmo da vida que se encontram em todo mito autêntico e que constituem a verdade profunda que lhe é específica.


Ver online : PATOCKA, Jan. L’écrivain, son “ objet”. Paris: Presses Pocket, 1992
[1] Kant diz mais precisamente: ’Esse esquematismo de nosso entendimento, em relação aos fenômenos e à sua simples forma, é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, da qual sempre será difícil arrancar o verdadeiro mecanismo à natureza, para expô-lo a descoberto diante dos olhos.’ (Crítica da razão pura, Paris, P.U.F., 1971, p. 153.) (N.d.T.)