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La Grande beuverie

René Daumal – Paraísos artificiais (2.22)

Parte II Les paradis artificiels

terça-feira 1º de julho de 2025

Deixamos de lado uma infinidade de variedades secundárias de Fabricantes. Meu guia bem que gostaria de me arrastar para uma vasta fábrica onde se faziam filmes cinematográficos, mas o espetáculo que vislumbrei assim que ele me abriu a porta me repeliu tão fortemente que não quis ver mais nada. Sob uma luz ofuscante, entre uma floresta virgem de papel, um canto de porto de mar de papelão e metade de um quarto de dormir de novo-rico, entre barbantes, tábuas que balançavam no ar, vigas e cabos elétricos, um homem e uma mulher em trajes de noite, com rostos oleosos de emplastros multicolores e sulcados por riachos de suor, faziam e refaziam sem parar o gesto de se encontrar por acaso e de apertar as mãos. O homem dizia a cada vez: “Bom dia, Senhorita” e a mulher sorria com ar constrangido. Enquanto isso, as cerca de vinte pessoas que assistiam à cena prendiam a respiração e tentavam fazer o que chamam de silêncio. Cada vez que a cena terminava, alguém dizia com mau humor: “Não está bom ainda, vamos recomeçar”; cada um então assumia um ar muito importante e um entrava numa cabine acolchoada, outro subia numa escada e apontava um projetor, outro engolia uma limonada, outros três iam colar os olhos nas aberturas de um ciclope de metal atarracado, uns de macacão, outros de camisa de seda ou de pulôver, mas todos sérios e agitados como se houvesse um incêndio. O chefe gritava: silêncio! e recomeçavam.

— Já dura há oito dias, disse-me o enfermeiro. Esse senhor nunca consegue dizer “bom dia, Senhorita” com o tom adequado. No final, contentam-se com um “mais ou menos” e passam para a cena seguinte. Fotografam e fonografam todos esses pedacinhos, colam-nos um após o outro e projetam numa sala escura, diante de um público ávido e desarmado.

“Esses dois indivíduos que viram, continuou ele, puxando-me para o lado, assim como seus inumeráveis colegas, dão-se o nome de atores. Em boa linguagem médica, nós os chamamos, ao contrário, de agidos.

— Como assim? Que chamam então de ator?

— É verdade, esqueci. Sois muito jovem para ter conhecido isso. Antigamente se chamava ator um homem que emprestava seu corpo a uma força, a um desejo ou a uma ideia, isto é, como se dizia para abreviar, a um deus que vivia nele. Ele sabia chamar os deuses, sabia deixá-los fluir em seu corpo. Por ele os deuses conversavam com os homens. Dançavam juntos, cantavam juntos, lutavam juntos, às vezes se devoravam, às vezes banqueteavam, enfim viviam juntos, os homens e os deuses. O ator fazia, portanto, um ofício puro e útil. Nossos “agidos” de hoje traduzem: um ofício puramente utilitário. Eles, são desinteressados. Estão a serviço da Arte; sabem o que isso quer dizer. Enquanto os atores emprestavam seus corpos aos deuses, hoje se fabricam deuses sob medida para revestir os agidos. Supondo que um agido seja manco de coração, estrábico de cérebro, corcunda de entendimento, coxear de consciência e calvo de senso irônico, pede-se a um Fabricante de discursos inúteis para inventar um deus dotado das mesmas particularidades. Então se presenteia o agido com esse pobre deus fantasma, que, no entanto, em muitos casos, é ainda mais forte que ele. Dando-se um trabalho de cão sábio, o agido consegue mais ou menos fazer vegetar em sua aparência de corpo essa aparência de ser. O público grita milagre, admira e paga.

— Mas por que o público vem ver essas imagens mortas de manifestações mortas de deuses natimortos?

— Primeiro porque, na escuridão da sala de projeções, pode ver sem ser visto, ouvir sem responder e contemplar (sem risco, creem) seres fantásticos (que acabam, no entanto, por possuí-lo). Em seguida, porque ao vê-los se dá a ilusão de ter vivido a baixo custo toda sorte de alegrias, crimes, tolices, vícios, virtudes, boas ações, gestos heroicos, nobres sentimentos e pequenas covardias que jamais teria a coragem de viver de verdade.

— Estranho prazer. Ter as imaginações assim manuseadas por imitadores de fantasmas, numa sala escura…

— Ora, ora, não se faça de ingênuo. Todo mundo gosta disso. Até o polvo gosta que o façam cócegas.


Ver online : DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994