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Un baule pieno di gente. Scritti su Fernando Pessoa

Antonio Tabucchi – Na ausência de provas

domingo 29 de junho de 2025

Há, de imediato, algo de excessivo na biografia deste português que, com o passar dos anos, corre o risco de se tornar um dos maiores poetas do século XX: algo demasiado excessivo para não despertar desconfiança, ou mesmo alarme, em quem se ponha em seu encalço. É um excesso por defeito; é a total ausência de indícios ou, se se preferir, a evidência transformada em paradigma, o álibi perfeito: algo que faz pensar no esconderijo na ostentação da carta roubada de Poe Poe Poe, Edgar Allan (1809-1849) e que, no caso concreto, significa um excesso de anonimato, uma quintessência de banalidade.

É verdade, há uma epidemia de banalidade na grande literatura do século XX: de Musil Musil Musil, Robert (1880-1942)
MUSIL, Robert. L’Homme sans qualités. Paris: Seuil, 1956
a Beckett Beckett BECKETT, Samuel (1906-1989) , de Valéry Valéry Valéry, Paul (1871-1945) a Svevo e a Montale com sua vida "a cinco por cento" (a expressão é do próprio Montale), muitos dos maiores escritores de nosso século vivem uma vida marcada pelo metrônomo do hábito e da rotina cinzenta. Em Pessoa, porém, as voltas do motor biográfico descem ao mínimo, o rendimento dos cinco por cento montalianos reduz-se ainda mais, a certo ponto parece que nem sequer se ouve mais o zumbido e surge a suspeita de que Pessoa tenha morrido antes de seu atestado de óbito, deixando instruções para que "tudo" continuasse como antes. Ou então surge a suspeita de que Pessoa nunca tenha existido, que tenha sido a invenção de um certo Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , um seu homônimo alter ego naquele turbilhão vertiginoso de personagens que com Fernando dividiram as modestas pensões lisboetas onde ele, por trinta anos, levou o vai-e-vem da mais banal, da mais anônima, da mais exemplar vida de funcionário administrativo.

A hipótese de que Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) fosse o alter ego de um Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) completamente idêntico ao primeiro é realmente sedutora e talvez, absurdamente, a mais óbvia, ainda que possa parecer viciada por um paradoxo de sabor borgiano (o Ménard que reescreve o Quixote), se o próprio Pessoa, já em 1931, não nos tivesse fornecido o paradoxo em que se baseia nossa suspeita:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E se Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , precisamente, tivesse fingido ser Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) ? É apenas uma suspeita. As provas, naturalmente, nunca as teremos. E, na ausência de provas, não resta senão acreditar (ou fingir acreditar) nos dados biográficos daquele que foi a ficção de um impostor idêntico a si mesmo: ou seja, Fernando António Nogueira Pessoa, filho de Joaquim de Seabra Pessoa e Madalena Pinheiro Nogueira, empregado em meio período como tradutor de cartas comerciais em firmas lisboetas de importação e exportação. Nas horas vagas, poeta.


TABUCCHI, Antonio. Un baule pieno di gente. Scritti su Fernando Pessoa. Milano: Feltrinelli, 2019