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La Grande beuverie

René Daumal – Os paraísos artificiais (2.20)

Parte II Les paradis artificiels

Ele me fez entrar numa casa de aspecto   bem   comum. Subimos dois   ou três   andares, ele tocou a campainha de uma porta, me apresentou a um   certo “Senhor Aham Egomet” e me disse com uma piscadela maliciosa:

— Deixo-os a sós por alguns minutos. Enquanto isso, vou verificar se os Kirittiks estão suficientemente abastecidos de leitura  , pois é disso apenas que se saciam. Até já.

Pela primeira vez desde minha excursão entre os Evadidos, senti-me em casa. O quarto onde estava era tão familiar que seria incapaz de o descrever. Também não conseguiria dar um retrato de Aham Egomet, pois essa personagem, parecia-me, assemelhava-se a qualquer um. Ele correspondia ao “sinalização” clássica das delegacias de polícia. Sinal particular: nenhum. Eu teria ficado perfeitamente à vontade desde o primeiro instante com esse indivíduo, se não tivesse a sensação   obsessiva de ser   espiado por milhares de olhos e ouvidos invisíveis, de ter-me tornado transparente a tudo  . Egomet me deu um sorriso de abominável cumplicidade e me disse o que fazia.

— Eu, meu caro, é uma história   bem diferente. Estou aqui em reportagem. Apenas finjo estar afetado pelo mal   deles, para melhor estudá-los. Depois, descerei e publicarei de minha viagem um relato que fará sensação. Chamar-se-á (aqui ele se aproximou do meu ouvido) a Grande Bebedeira. Numa primeira parte, mostrarei o pesadelo de desamparados que buscam sentir-se viver um pouco mais, mas que, por falta de direção, são jogados na bebedeira, embrutecidos por bebidas que não refrescam. Numa segunda parte, descreverei tudo o que acontece aqui e a existência fantasmagórica dos Evadidos; como é fácil não beber   nada  , como as bebidas ilusórias dos paraísos artificiais fazem esquecer até o nome da sede. Numa terceira e última parte, farei pressentir bebidas ao mesmo tempo   mais sutis e mais reais do que as de baixo, mas que é preciso ganhar à luz   do próprio suor, à dor   do próprio coração, ao esforço dos próprios membros. Enfim, como dizia o sábio Oinófilo, “enquanto a filosofia   ensina como o homem   pretende pensar  , a bebedeira mostra como ele pensa”.

Foi interrompido pelo enfermeiro, que havia retornado e me apressava a continuar a viagem. Ao sair da casa, eu lhe disse:

— Mas ele não está doente de jeito nenhum!

— Dizem todos isso, respondeu ele; e acrescentou após um momento de reflexão: aliás, se ele está doente ou não, só eu posso saber. E se ele está doente, só eu posso curar.

Era uma tarefa pesada. Assumi-a, no entanto. Desde então, Aham Egomet e eu nos escrevemos tão regularmente quanto os serviços postais permitem. Às vezes, até nos vemos. Ele me informa do que acontece lá e, de minha parte, esforço-me com meus conselhos para mantê-lo a salvo da contaminação.


Ver online : DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994