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La Grande beuverie
René Daumal – Os paraísos artificiais (2.18)
Parte II Les paradis artificiels
terça-feira 1º de julho de 2025
Subimos até o escritório de outro Pwatt notável, da espécie dita, não sei por quê, ativa. Era um homem alto e magro, moreno e distinto, meticuloso em seu traje e na organização dos instrumentos de escrita dispostos sobre sua mesa de ébano. Bebeu um gole de água fresca de uma taça de cristal e disse:
— A inspiração, Senhores, é apenas uma curta loucura. Nós, Pwatts ativos, dos quais sou o mais célebre representante, temos apenas um guia, que é a razão.
Razão? Folheei furtivamente o dicionário e encontrei:
Razão, subs. fem., mecanismo imaginário sobre o qual se descarrega a responsabilidade de pensar.
O outro prosseguia:
— Como nossos supostos colegas os inspirados, partimos de uma palavra ou de um grupo de palavras iniciais. Mas é a razão que nos obriga a isso, pois, sendo nossa matéria as palavras, é das palavras que devemos partir. Aperfeiçoei consideravelmente a arte da criação poética ao inventar o pequeno aparelho que verão.
Levando a mão à cabeça, com uma simplicidade tocante, ele levantou a tampa do crânio e vi, bem aparafusada à glândula pineal, a máquina poética. Era uma esfera de metal suspensa à Cardan, oca e cheia, ao que entendi, de milhares de minúsculas lâminas de alumínio sobre cada uma das quais estava gravado um palavra diferente. A esfera girava sobre seus dois eixos, depois se imobilizava, deixando cair uma palavra por uma abertura inferior. A fazemos girar assim – pela potência do que chamam de pensamento – até que se tenha todos os elementos necessários à constituição de uma frase. O Pwatt continuou, com seu crânio sempre aberto:
— O cálculo das probabilidades, que é a mais alta expressão do racionalismo moderno, nos diz que é praticamente certo, à escala cósmica, que a frase assim estabelecida será um fenômeno sem precedentes, e que não terá nenhuma significação útil. Será a pura materia prima da poesia. Agora, é preciso informar essa matéria.
“O metro a empregar, eu o determino de uma forma não menos científica. Sendo o poema a reação recíproca do microcosmo e do macrocosmo em um dado momento, eu disponho sobre meu corpo diversos aparelhos que registram meu pulso, meu ritmo respiratório, e todos os meus outros movimentos orgânicos. Ao mesmo tempo tenho em meu balcão barômetros, termômetros, higrômetros, anemômetros, heliômetros registradores, e em minha adega um sigmógrafo, um orógrafo, um quasmógrafo e muitos outros que lhes escondo. Quando todos os gráficos estão ao completo, eu os introduzo na máquina que lhes mostro.
(Ele me designava, um pouco acima do cerebelo, algo que se assemelhava a uma máquina de moedas dos bistrôs de antes de 1937.)
— Este aparelho traça a resultante de todas essas curvas. Traduzo as sinuosidades, inflexões, maximinima, voltas e reviravoltas da linha resultante em molossos, tríbracos, anfímacros, peãs, proceleusmáticos, em pausas, cesuras, arsis, tesis, acentos tônicos, e não me resta mais que fazer este esquema métrico coincidir com minha frase inicial, à qual faço subir todas as variações compatíveis com o metro, por substituições sucessivas de homônimos e de sinônimos, de cacônimos e de calinônimos; cem vezes sobre a obra eu retomo meu trabalho, até que seja para os humanos mais belo que uma bicicleta de ouro.
Não quis ouvir mais, pois a cabeça me doía. Não via que houvesse uma diferença essencial entre esses dois gêneros de Pwatts. Ambos confiavam a mecânicas estranhas o cuidado de pensar por eles. O primeiro alojava sua mecânica em suas entranhas, o segundo em seu crânio; era toda a diferença. E tudo isso, bem posso dizê-lo agora, me dava sede, sede. Tinha sede, tinha sede de poesia.


Ver online : DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994
DAUMAL, René. La grande beuverie. Éd. nouvelle ed. Paris: Gallimard, 1994