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Tu t’es toujours trompé
René Daumal – A Índia e o Tibete
terça-feira 1º de julho de 2025
A Índia e o Tibete, ao longo de sua história, viram mais do que qualquer outro país um prodigioso florescimento de tentativas de pensar. E mais do que em qualquer outro país, os diversos cleros sempre souberam apoderar-se de todas as manifestações do pensamento, para transformá-las em instrumentos do poder teocrático. Essa contrapartida não nos espanta mais. Mas nós, cujo objetivo é despertar, devemos buscar por que esses sobre-humanos esforços de consciência falharam; daí poderemos talvez tirar algum ensinamento.
Toda pensamento é revolucionário; pois toda pensamento sendo filha da dúvida, ameaça arruinar as ideologias opressoras. Por outro lado, toda expressão do pensamento pode tornar-se, por sua vez, uma dessas ideologias, ou incorporar-se às que existem; o fará necessariamente cada vez que um poder opressor existir, que se encontre ameaçado pelo despertar da consciência. A pensamento revolucionária não poderá, portanto, cumprir plenamente seu objetivo senão se corresponder a uma força material capaz de destruir o poder de opressão. Ora, os sobressaltos de consciência, na história brâmanista e budista, foram sempre ligados a duas formas principais de revolta: a revolta individual do asceta que nega a sociedade ao “retirar-se para a floresta”; ou a revolta da casta militar e principesca contra a casta sacerdotal.
No primeiro caso, o indivíduo, do ponto de vista do idealismo subjetivo, suprime bem todos os antagonismos sociais, visto que, solitário, ele deixa de perceber a sociedade; tomo, é claro, o exemplo mais acabado do “yogui” que se nutre, se veste, se aloja, na medida em que o faz, sem o auxílio de nenhum outro humano, que aprende até a meditar sem o auxílio da linguagem, esse instrumento eminentemente social de expressão. Mas não sou, e tu não estás no seu ponto de vista. Nenhum homem vivendo em sociedade está no seu ponto de vista, nenhum homem pode mais fazer qualquer julgamento humano sobre ele, que renegou a sociedade, que não é mais de todo o simples “animal social”, que não é mais um homem. Ele se suicidou socialmente. Neste caso, para nós, todo o problema subsiste, e essa revolta individual, por mais absoluta que seja, nada mudou.
Mas o Yoga hindu ensina esta verdade de que a coisa aparentemente melhor torna-se a pior quando é buscada pelo indivíduo como uma satisfação pessoal, e não por si mesma e para todo homem, universalmente. Os ascetas verdadeiramente grandes aos nossos olhos de homens sociais, aqueles que desempenharam um papel revolucionário na história, saem de seu eremitério e voltam para o meio dos homens. Alguns se contentam em ensinar suas “revelações” a alguns discípulos; essas “revelações”, aliás, se são pensamentos reais, não podem ser outra coisa senão os frutos de um ato de negação sobre os dogmas opressores da casta, da classe, ou da religião dominante. Mas, tão logo no domínio público, as expressões de tal pensamento serão roubadas pelo poder reinante, que as assimilará à sua ideologia escravizante. Ou então, o ensinamento do asceta permanecerá estritamente esotérico, e então nada conhecemos dele, não podemos fazer a sociedade beneficiar-se, e recaímos no caso do solitário absoluto e definitivo: pouco importa se quatro ou cinco discípulos, ou mais, realizaram essa revolta subjetiva, ou se ela foi obra de um único asceta. No entanto, uma tradição assim perpetuada pôde ter um papel revolucionário real no decorrer dos séculos; falarei disso mais tarde.
Agora, tomo a revolta do anacoreta apenas em sua eficácia social momentânea. Essa eficácia é nula no caso do solitário definitivo. Mas pode ser que o asceta queira transmitir seu pensamento vivo a seus contemporâneos. Assim fizeram o Mahavira do Jainismo e o Sakyamuni do Budismo. Eles pretenderam dirigir-se a todos os homens, ser os porta-vozes de todos os seres sofredores. Mas, privados do apoio de uma massa única e consciente de oprimidos, que o momento histórico não podia lhes fornecer, seu pensamento de revolta só pôde nutrir uma fração descontente da sociedade; a casta dos guerreiros e dos príncipes utilizou essa força revolucionária contra a autoridade teocrática; depois, tendo tomado o poder, a traiu, transformando-a em um novo dogma próprio para servir a sua dominação.
A ação social do Buda e do Mahavira, fundadores de religiões apesar deles, resume-se, portanto, à segunda forma de revolta: a do levante dos kshattriyas contra os brâmanes.
Tal revolta apoiava-se bem em uma força social concreta. Mas suponhamos provisoriamente, para esquematizar os fatos históricos, que a casta militar, em nome de um despertar religioso, tenha quebrado os dogmas bramânicos e as restrições sacerdotais, e tenha se apoderado do poder. Brâmanes e kshattriyas, na sociedade hindu, constituem apenas as duas castas mais nobres: restam os vaisyas, os sudras, todas as castas secundárias, os impuros chandalas e todos os fora de casta. Embora o sistema de castas, na Índia antiga, fosse menos rígido do que comumente se crê, essas formações sociais eram, no entanto, muito diferenciadas para que a revolta dos kshattriyas pudesse reunir, contra os brâmanes, todo o resto da sociedade em uma mesma consciência revolucionária de classe oprimida. A separação raramente foi absoluta entre as duas castas superiores. Por outro lado, um abismo separava os kshattriyas (e mesmo as três primeiras castas) das camadas sociais inferiores. Estas, já divididas entre si, puderam servir às vezes de instrumentos dóceis e passivos nas mãos dos príncipes e guerreiros revoltados. A casta militar uma vez no poder, sua primeira preocupação foi assegurar sua dominação sobre o resto da sociedade. Precisava de instituições, de ideologias: as do vencedor suplantaram as do vencido. O poder das pequenas comunidades teocráticas cede lugar a uma feudalidade militar, ou mesmo a uma monarquia. O bramanismo é substituído, e, na larga medida em que permanece um dogma forte, assimilado pela ideologia que serviu para quebrá-lo; que se torna por sua vez dogma e religião oficiais. A pensamento revolucionária morreu por não ter animado a totalidade dos oprimidos.
A história social da Índia antiga, é claro, é muito complexa para que tal fenômeno tenha ocorrido de forma tão esquemática e tão geral. No entanto, a dialética que acabei de esboçar poderá servir de fio condutor. Não se deve esquecer que uma luta entre as duas primeiras castas, que eram separadas por barreiras mínimas relativamente às que as colocavam ambas muito acima de todo o resto da sociedade, não poderia ter como resultado uma revolução muito sangrenta. Deve-se também levar em conta as diversas invasões, que desempenharam um grande papel nas mudanças políticas da Índia, particularmente no estabelecimento das grandes monarquias.
Feitas essas ressalvas, compreende-se como os piedosos monarcas protetores das duas “grandes heresias” puderam, graças ao seu zelo religioso, afastar o velho poder sacerdotal e transformar pouco a pouco seus pequenos estados feudais em poderosos reinos. Esse movimento certamente começou muito antes do budismo, com o nascimento das primeiras feudalidades hindus, paralelo, sem dúvida, à atividade antibramânica de alguns dos primeiros mestres das Upanishads. A evolução continua com os monarcas contemporâneos de Buda e Mahavira: como, em Magadha, Bimbisara, amigo e protetor dos dois pregadores. O advento de Chandragupta, fundador do império Maurya (consequência das invasões estrangeiras), complica um pouco aqui, acelerando-a, a evolução social e religiosa. Mas o sucesso de seu mais célebre sucessor, Açoka, deve-se sem dúvida, em grande parte, à propaganda ativa exercida por esse soberano em favor do budismo. Preciosa proteção a dos príncipes, que de um pensamento vivo fazem uma religião de morte e de escravidão! (Tu, nunca te esqueças: foge da proteção de teu opressor, o burguês; esse Cadáver já podre ainda pratica o vampirismo: de tua vida ele quer nutrir sua morte contagiosa.)
Esta análise rápida basta para explicar o destino dos despertares de pensamento, revolucionários na origem, dos quais surgiram as Upanishads, o Jainismo, o Budismo; mas poderia levar a crer que, nesses remoinhos espirituais e sociais, houve intenções individuais como causas iniciais. Não é nada disso. Para saber, basta aprofundar as causas dos levantes principescos contra a autoridade sacerdotal. Partimos de um antagonismo entre duas castas, tomadas como dados prontos. Ora, a realidade da casta, dissimulada sob tal ou qual aspecto social ou religioso, é radicalmente econômica. O poder dos brâmanes exercia-se plenamente na sociedade védica primitiva, de estrutura patriarcal. O desenvolvimento dos meios de produção agrícola, acarretando a necessidade de novos meios de troca e de um começo de centralização comercial, exigiu pouco a pouco o advento de um novo tipo de poder político. O brâmane, ligado por sua função ao fogo da comunidade aldeã, não podia se destacar para reinar sobre um grupo social mais amplo. Contentou-se em tornar-se o conselheiro do príncipe que assumiu esse papel político. A ascensão do kshattriya ao poder foi apenas a consagração de um novo regime econômico instaurado pelo progresso necessário das forças produtivas. Como a autoridade do sacerdote se apoiava em dogmas, era preciso que o príncipe quebrasse esses dogmas. Ora, toda negação de um dogma é um despertar do pensamento. A revolução econômica fornecia, portanto, necessariamente, a ocasião de um despertar de consciência. Vimos que esse despertar gerava, por sua vez, um obscurecimento proporcional, porque a revolução econômica não era radical, interessava apenas a uma parte da população bramânica.
Não sou historiador nem economista. Creio não ter traído minha vontade de me ater unicamente ao fio condutor da Evidência. Que cada um, se o desejar, reúna documentos sobre a história de tal reino hindu em tal época: sei a priori que o princípio diretor que acabo de expor pela análise de um exemplo esquemático poderá sempre explicar a história das revoluções sociais sob seus aspectos econômico, político e religioso, no tempo e no lugar considerados. Mas o importante é que constates isto: a lei dialética segundo a qual a consciência, ao se manifestar, constrói o aparelho de sua própria morte, é a lei de toda evolução. Heráclito, Hegel, a proclamaram ao mundo. Ela foi, há quase um século, aplicada com uma maravilhosa rigor à história social dos povos ocidentais por Karl Marx. Somente se obstinarão sempre a não constatar sua evidência aqueles que correm o risco de sofrer as consequências: quero dizer todos aqueles que, de uma forma ou de outra, lucram sem remorso com sua posição social nas fileiras de uma classe de opressores.
Tu, agora que me lês, escuta bem: lembra-te de onde te fiz partir, e constata que nada fiz para te desviar. Pedi-te que abrisse os olhos à evidência: a realidade imediata do ato de consciência, cuja expressão anuncia a própria morte. Conduzi-te a um país, parece, privilegiado, onde numerosas vozes, através dos séculos, repetiram essa mesma evidência. Viste o destino que os reis, os sacerdotes, e mais tarde a burguesia, sempre necessariamente deram a tais palavras. Viste por qual mecanismo os produtos do pensamento foram empregados para matar o pensamento, e para escravizar os corpos. Tomei o exemplo da Índia, porque esse país pulula de pensadores há quase três milênios, que suas vozes tentaram e ainda tentam, por sua pureza, muitos ocidentais como tu, desejosos de pensar livremente; porque, também, nesse país os produtos das consciências revoltadas geraram os piores instrumentos de escravidão espiritual e material. Então, tu vês: enquanto houver na sociedade onde vives homens explorando outros homens, eis o que farão de tua pensamento.


Ver online : DAUMAL, René. Tu t’es toujours trompé. Paris: Mercure de France, 1970