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Approches de l’Inde

René Daumal – Aproximação da arte poética hindu

Dir. Jacques Masui

segunda-feira 30 de junho de 2025

Um dia aprendi diretamente que todos esses livros só me haviam oferecido planos fragmentários do palácio. O primeiro conhecimento a adquirir, doloroso e real, era o da minha prisão. A primeira realidade a experimentar era a da minha ignorância, da minha vaidade, da minha preguiça, de tudo o que me prende à prisão. E quando novamente olhei as imagens desses tesouros que, pela via dos livros e do intelecto, a Índia me enviara, vi por que essas mensagens nos permanecem incompreendidas.

Vamos em direção a essas verdades antigas e vivas com nossas atitudes psíquicas de europeus modernos, daí os perpétuos mal-entendidos.

O Moderno se crê adulto, acabado, não tendo mais até sua morte senão ganhar e gastar alternadamente matérias (dinheiro, forças vitais, saberes), sem que essas trocas afetem a coisa que se denomina «eu». O Hindu [1] se vê como uma coisa a aperfeiçoar, uma falsa visão a endireitar, um composto de substâncias a transformar, uma multidão a unificar.

Entre nós, chama-se conhecimento a atividade específica do intelecto. Para o Hindu, todas as funções do homem devem participar do conhecimento.

Chamamos progresso do conhecimento a aquisição, por nossos aparelhos perceptivos e lógicos atuais, de novas informações sobre as coisas que podemos perceber ou de que podemos ouvir falar. No pensamento hindu, o progresso do conhecimento é o aperfeiçoamento desses aparelhos e a aquisição orgânica de novas faculdades de conhecer.

Dizemos que conhecer é poder e prever. Para o Hindu, é tornar-se e transformar-se.

Nosso método experimental tem a ambição de aplicar-se a todos os objetos — exceto ao «si», que é rejeitado nos domínios da especulação filosófica ou da fé religiosa. Para o Hindu, o «si» é o objeto primeiro, último e fundamental do conhecimento; conhecimento não apenas experimental, mas transformador [2].

Entre nós considera-se os homens como iguais em ser, e só diferindo pelo ter: qualidades inatas e saberes adquiridos. O Hindu reconhece uma hierarquia no ser dos homens; o mestre não é apenas mais sábio ou mais hábil que o discípulo, é, substancialmente, mais que ele. E é isso que torna possível a transmissão ininterrupta da verdade.

Para o Moderno, enfim, o conhecimento é uma atividade separada, independente (ou desejada independente) das outras. Para o Hindu, a aquisição do conhecimento, sendo mudança do próprio homem, acarreta e supõe a mudança de todas as suas manifestações, de todo seu modo de viver.


Essa mudança do modo de viver se manifesta diferentemente segundo os tipos humanos (instituição originária das castas [3]); segundo as idades e os estágios da vida (regra dos âshrama [4]); e segundo os ofícios e as funções sociais (doutrina do dharma [5]). Não posso acceder direta e praticamente aos hinos védicos, não sendo brâmane; nem às upanishad, não sendo um sannyâsin. Só posso me deixar iluminar, de vez em quando, por seus clarões. Os tratados de liturgia, de direito, de arquitetura, de estratégia, de arte veterinária, de arrombamento... e cem outros pelos quais a doutrina desce às diversas atividades humanas, não são para mim. Mas sou, por ofício, escritor, e gostaria um dia ser poeta. A porta que se abre para mim sobre a tradição hindu é, portanto, a das ciências da linguagem, da retórica e da poética [6]. É seguindo meu dharma de escritor que poderei dar um conteúdo prático aos ensinamentos dos livros. Tentarei aqui dar alguns apontamentos sobre as ideias mais fecundas que um escritor pode encontrar nos tratados hindus de estética e poesia.


Ver online : Approches de l’Inde - Tradition et incidences, dir. Jacques Masui, Cahiers du Sud, 1949


Approches de l’Inde - Tradition et incidences, dir. Jacques Masui, Cahiers du Sud, 1949


[1«Hindu», aqui como no conjunto deste volume, significa: alguém que reconhece a autoridade da tradição védica. Mas as atitudes mentais aqui descritas seriam também as de quem reconhece a autoridade de qualquer outro aspecto da tradição universal.

[2Daí a multiplicidade aparente dos sentidos da palavra âtman no sânscrito clássico (no védico, ainda está ligada à imagem do «sopro vital»); âtman, «si», é aquilo com que o ser se identifica quando diz «eu»: pode ser sua personalidade social e exterior, ou seu corpo, seus sentimentos, seus pensamentos — tudo isso ilusões; é, para aquele que se fez, o «mestre do carro» de que fala a Katha-upanishad; ou a Pessoa divina, ou o Ser absoluto; ver a esse respeito o ensinamento de Prajâpati na Chândogya-upanishad.

[3Segundo o Rig-Veda (X, 91) quando o Homem primordial foi despedaçado sacrificialmente, «sua boca foi o brâmane (a casta sacerdotal), de seus braços foi feito o real (a casta dos kshatriya), suas coxas foram o vaishya (a casta plebeia) e de seus pés nasceu o shudra (a casta servil).» Uma analogia corporal e social equivalente se encontra na República de Platão. Ver também as Leis de Manu, cap. 1.

[4O ensino do Veda se oferece primeiro: 1° ao brahmacharin («estudante em ciência sagrada», desde a investidura do cordão feita no 6° dia, até o casamento) sob forma de regras de conduta, observâncias religiosas e estudos intelectuais; 2° ao grihastha («mestre de casa», do casamento ao estado de avô) sob forma de arte sacrificial, mitologia e teologia, nos brâhmana; 3° ao vanaprastha («habitante dos bosques, anacoreta estudando junto a um mestre), sob forma do sacrifício interior, nos âranyaka, «livros das florestas»; 4° enfim ao sannyâsin («renunciante», «depondo» as leis das castas e dos estágios de vida), sob a forma mais profunda da «conhecimento do si», nas upanishad. (Ver Max Müller, Origem e desenvolvimento da religião à luz das religiões da Índia, tradução francesa de J. Darmesteter.)

[5Exposta especialmente na Bhagavad-gîtâ. Sobre as castas e os estágios de vida, ver as Leis de Manu. A rejeição das castas e dos âshrama, e a negação da autoridade do Veda, caracterizam as duas grandes heresias, jainismo e budismo.

[6Ampla porta, pois a literatura sânscrita é de todas as literaturas antigas a mais rica nesse domínio. Sobre as seis ciências anexas indispensáveis ao estudo dos Vedas (vedânta), quatro são relativas à linguagem (fonética, gramática, lexicologia, métrica; as outras duas são o ritual e a astronomia). A obra monumental de Pânini (século VI ou V antes de Jesus Cristo) com seus comentários, ainda está cheia de ensinamentos para nossos foneticistas e gramáticos modernos. Paul Regnaud, em sua Retórica sânscrita cita uma quarentena de obras, muitas vezes enriquecidas de comentários, relativas à retórica, à composição dramática e à poesia.