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Chaque fois que l’aube paraît

René Daumal – O valor do discurso em um saber tradicional

Les limites du langage philosophique et les savoirs traditionnels (1935)

segunda-feira 30 de junho de 2025

Quero lembrar aqui, para esclarecer o que disse acima sobre as especulações hindus, como essa viagem humana era não só concebida mas organizada e institucionalizada socialmente na velha civilização da Índia.

O fundamento dessa civilização é o Veda. A base do Veda, é um conjunto de hinos que passam por extremamente obscuros; a verdade é que é nosso espírito que se obscurece diante de sua simplicidade essencial: nos deixamos deslumbrar pela riqueza inaudita das metáforas, e perdemos de vista o fato sempre simples descrito por essas imagens luminosas. Fato tão simples que seria preciso voltar a ser uma criança bem pequena para compreendê-lo. Só posso dar desta aproximação:

O homem não pode viver sem fogo; e não se faz fogo sem queimar alguma coisa.

Tal é — por falta de melhor resumo — o centro do ensinamento do Veda. O brâmane tomava posse desse ensinamento ao longo das quatro fases de sua vida:

1º Em seu sétimo ano, a criança entra na vida social. Ela decora de cor (e de cabeça) os hinos do Veda; aprende a cantar sob todas as suas cores o fogo que faz viver o homem, o calor que o fogo emite, o combustível que alimenta o fogo; ritmos, melodias e gestos rituais se inscrevem em seu corpo, e lhe servirão por toda a vida como medidas para todas as coisas.

2º Entre vinte e trinta anos, em geral, o jovem se casa e se torna mestre de casa. É nesse período que ele participa ativamente da vida social. Terminou de estudar os Hinos; agora, deve ler os comentários desses hinos chamados Brâhmanas. O sentido geral desses comentários é litúrgico e mitológico. O ensinamento originário do Veda ali é, em substância, desenvolvido desta maneira:

"Esse Fogo, se faz viver o homem, é portanto uma poderosa divindade; e, já que só pode se manifestar para nós se lhe dermos uma alimentação, é preciso lhe oferecer sacrifícios. Adoremos portanto o Fogo; adoremos também o Calor que se espalha por toda parte mesmo quando o fogo desapareceu, e que é portanto um deus mais poderoso ainda; adoremos o Sol, que é um Fogo celeste. Adoremos o líquido inflamável que serve para reavivar o Fogo, pai do Fogo que nos faz viver, e que é portanto nosso ancestral. Adoremos portanto também os ancestrais..." e assim, por metáforas sucessivas, da simples constatação primitiva, toda uma mitologia e todo um ritual complicado se desenvolvem. Essas intricações de metáforas e deduções lógicas, o homem deve levá-las até suas últimas consequências; e mesmo se já redescobriu no fundo dessa mitologia o sentido simples e originário, deve continuar a fazer os sacrifícios e a falar dos deuses. Pois sua função atual é antes de tudo fazer viver sua família e criar seus filhos; deve portanto poder responder por metáforas justas, ou seja, ligadas a coisas reais, às perguntas que lhe farão seus filhos — pois as crianças já faziam a seus pais as mesmas perguntas de hoje —: "para onde vai o fogo, quando se apaga? o que ele quer dizer com seus estalidos? quem é seu pai? o fogo do sol também come madeira? quem acendeu o sol? esfregando quais gravetos?...". À criança que vê em cada coisa uma pessoa, seria prematuro dar explicações científicas ou metafísicas; mas seria ainda mais perigoso contar-lhe qualquer coisa sobre essas pessoas. Há mitos verdadeiros e mitos falsos. Os mitos dos Brâhmanas eram verdadeiros no sentido de que seus "deuses" sustentavam relações idênticas, enquanto relações, àquelas que unem os elementos físicos do fogo, do combustível, da fumaça, do calor; do sol, das nuvens, da aurora, da luz; relações idênticas, enfim, àquelas que unem os elementos e as atividades do pequeno mundo que é o homem. Esse sólido sistema de analogias, fundado sobre um fato físico, servirá o pensamento animista da criança; e permanecerá válido quando o homem, desviando seu olhar do mundo de fora, o voltar para dentro.

3º Essa reviravolta do olhar para si se torna explícita na terceira fase de vida segundo a tradição hindu. O mestre de casa, "quando vê diante de si os filhos de seus filhos", terminou sua tarefa. Pode então "se ir para a floresta" ["Quando o mestre de casa vê suas rugas e seus cabelos brancos, e o rebento de seu rebento, então que se vá para o refúgio da floresta... Tendo disseminado a ’Oferenda do Protetor das Progênies’, com doação de tudo segundo o Saber, então recolhendo em si os Fogos, que o brâmane se vá, errante, de sua casa" (Leis de Manu, VI, 2, 38).]. Ele leva consigo os Livros das Florestas, que são comentários dos mesmos hinos do Veda. Esses livros lhe dizem: "Esse fogo que te faz viver, não é o fogo físico que queimava em tua casa; é o fogo interior que anima teu corpo e teus pensamentos; é o princípio ativo de ti mesmo; é a ele que é preciso oferecer sacrifícios; e o combustível que ele pede, é tua própria substância. Todos os deuses que adoraste, são criações da linguagem, que designam tuas faculdades, tuas atividades, tuas maneiras de ser." O homem começa então a tecer em si mesmo a mesma rede de analogias que a teologia tinha estendido entre os "deuses".

4º Enfim, quando edificou e contemplou seu mundo interior, está maduro para um quarto ensinamento (que é ainda um comentário aos mesmos hinos), o das Upanishads, ou seja, segundo a explicação hindu da palavra, o ensinamento que corta a ilusão. Tudo o que acreditou saber, dizem-lhe, tudo isso são só palavras. O próprio Veda, são só palavras. Os "deuses" interiores que alimentou em si, não são senão palavras; não têm outra realidade que aquela que o homem mesmo lhe confere — se o homem é. Mas falar desse último estado seria puro palavreado. Tudo o que o homem pode dizer então, voltando da "floresta" (floresta ela mesma muitas vezes metafórica), são as palavras originárias do Veda, em sua simplicidade: o homem não pode viver sem fogo, e não se faz fogo sem queimar alguma coisa. Ele não precisa mais revestir essas palavras de teologia nem de metafísica. Pode dizer de novo os versos do Veda como os dizia sendo criança — as mesmas palavras, mas cujo sentido foi nutrido, desenvolvido depois absorvido e consumido pela experiência de toda uma vida. É isso que os hindus entendem pela palavra vedânta, que designa o fim, o fundo, a última palavra e ao mesmo tempo a consumação do saber tradicional.

É essa existência de um saber tradicional que permitiu à Índia antiga representar até em suas instituições sociais o curso normal — ou que deveria ser normal — da vida humana: da simplicidade que se ignora à simplicidade consciente e recriada, passando pela complexidade de uma pesquisa abraçando todas as manifestações da vida. É porque as palavras estavam ligadas intimamente a essa arquitetura da vida, que as especulações verbais hindus guardam sempre seu caráter relativo e transitório; intermediárias que são entre a questão de onde nasceram e a solução onde devem desaparecer.

Tomei como exemplo a tradição hindu porque ela fez todos os esforços possíveis para deixar documentos verbais que fosse impossível compreender por meio de especulações puramente verbais [No manuscrito, lê-se: "A tradição védica tem essa vantagem que todas as interpretações expressáveis em palavras escritas foram fixadas em livros; assim tudo o que avancei é controlável e estou seguro de não ter interpretado nada segundo minha fantasia."]. Encontrar-se-ia nas tradições judaico-cristãs — por exemplo nos textos cabalistas, que vão também ao limite do exprimível — caracteres análogos (no sentido preciso da palavra). Mas falar de tradições ainda muito ligadas a nossas formas de cultura, arrisca-se a levantar a paixão dos exegetas e a embaralhar tudo. No entanto, julguei útil mostrar as analogias profundas entre os testemunhos socráticos e os das Upanishads; essas aproximações podem ajudar um ocidental a entrar na familiaridade do pensamento hindu, ordinariamente enterrado sob um amontoado de divagações ora eruditas, ora sentimentais [Divagações eruditas: segundo Benfey e Haug, a palavra brahman designa primitivamente "a pequena vassoura feita da grama kuça (Poa cynosuroïdes?) que se passava de mão em mão no sacrifício". Aliás, segundo Haug, a palavra veda designava também a mesma pequena vassoura (HAUG, O sentido primitivo da palavra Brahma, 1868, p. 4).].

Ao mesmo tempo, esse esboço do que é um saber tradicional mostrará, espero, que a ausência de tal saber caminha junto com a existência de filosofias verbais que se tomam por fins nelas mesmas. Mas não se recria de todas as peças um saber tradicional abraçando todo o pensamento e toda a atividade humana. Não se pode tampouco imitar uma tradição estrangeira nem fazer reviver uma tradição morta; para os povos como para os indivíduos, a lei de um pode ser mortal para o outro. No entanto, a analogia da tradição hindu pode nos sugerir que o saber tradicional deve sempre se edificar sobre a base de um mito coletivo, ligado a instituições e sustentando com a natureza e a sociedade relações concretas; não vejo atualmente senão o saber científico, ligado ao desenvolvimento técnico e à evolução econômica moderna, que tende a responder a essa definição: é isso, uma mitologia, e não o gênero literário que se designa comumente sob esse nome. É difícil conceber nosso saber técnico como um "mito", tanto estamos identificados com ele. Mas os "mitos" dos antigos não eram mais "míticos" para eles. Qualquer que seja o "mito" no qual estamos mergulhados, a Filosofia geral, busca do ser, só chegará a consumá-lo se sair de seus limites verbais; mas então deverá se realizar em uma obra direta de cultura humana, em uma nova adequação de fato entre a natureza, a organização econômica, as instituições, os diversos corpos de saberes, de técnicas e de artes, e as necessidades fundamentais do homem.

Se isso é um sonho, pois bem! acordemos.


Ver online : DAUMAL, René. Essais et notes II. Les pouvoirs de la parole (1935-1943). Paris: Gallimard, 1993


DAUMAL, René. Essais et notes II. Les pouvoirs de la parole (1935-1943). Paris: Gallimard, 1993