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Varela – O mundo rosiano
sexta-feira 27 de junho de 2025
O mundo rosiano é, de fato, um mundo de como se, de faz de conta, o regresso pensado à desordem ordenadora do mito e da natureza, na sua lógica sensível, na sua linguagem carnal, na sua hybris caudalosa e espontânea. Homem do sertão [1], como ele próprio se deixa denominar, Guimarães Rosa Guimarães Rosa Guimarães Rosa (1908-1967) descobre-se, selvagem, eterna criança, enunciando a verdade possível, a não verdade de uma Verdade inominável, no eterno retorno do mythos. Fiel às formas simples de que fala Jolles [2], na escrita deste autor, o mythos e o epos são continentes de barreiras fluidas, salvaguardando-se daquele uma temporalidade cíclica, uma ritualização sagrada que nos remetem, sem cessar, para o universo das origens cosmogônicas. Porque o mito é o germen da estória, é que existe nesta uma coerência mágica, ainda que alógica, ou enigmática, verossímil; a estória é um significante em si, sem necessidade de remeter para outros códigos significativos. Por isso, por mais épica, a estória se faz contra a história, avessa à lógica da identidade, à gramática da repetição, em que os acontecimentos se sucedem, sucessivamente, numa ordem vazia, cujo sentido único, ao serviço da lei e do fato, é o “não ter sentido íntimo nenhum”.
Na antiperipleia que é a sua escrita, espelho mágico da travessia ab infinito do humano, o autor parece apostado num misterioso enleio metafísico e religioso, numa insaciável procura desse Urfundamento latente de todo o sentido manifesto. Queda-se, porém, perplexo e irônico, perante a descoberta de que o fundamento último do ser, o sentido do sentido, é um fundamento sem fundo, ou talvez esse não-senso lógico que é um supra-senso mítico. Perante o pensamento sem fundamento de um ser debilitado no tempo, impensável e indizível na lógica do conceito, Guimarães Rosa Guimarães Rosa Guimarães Rosa (1908-1967) opta conscientemente pelas formas mitopoéticas de pensar, pela verdade ficcional como única verdade possível, a fim de não morrermos de Verdade.
Tal como falamos de uma poesia sófica em Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pessoa, Fernando (1888-1935) , de poesia e metafísica, permitimo-nos falar de ficção sófica em Guimarães Rosa Guimarães Rosa Guimarães Rosa (1908-1967) , de mito e metafísica, já que o seu mythos parece deslizar numa epopéia iniciática, numa travessia ôntico-metafísica, universalista no seu regionalismo aparente. Nas encruzilhadas de Deus e do diabo, entre nonada e o ser, viver é um desafio, travessia infinita dos labirintos do tempo, recriando-se as coordenadas ônticas do heterologos em língua portuguesa no aparato ficcional da obra rosiano. Uma outra metafísica, fáustica e sisífica, heterodoxa e mítica, parece, então, manifestar-se no sentido de uma vida e de uma estória nos limites do humano, demasiado humanas. Entre o possível e o paradoxal, o épico e o pícaro, o estético e o religioso, o homem é aí o herói da terra, “o próprio sertão feito homem (...) mundano demais para ser místico, e místico demais para ser Fausto” [3].
No mythos épico de Guimarães Rosa Guimarães Rosa Guimarães Rosa (1908-1967) , um ser de latência, bruto e selvagem, mostra-se e esconde-se nas veredas do acontecer mitopoético, graças à força da palavra transcendente, simultaneamente metafísica e mágica, “elemento metafísico” [4] e “irmã incompreensível da magia” [5]. No seu heterologos ímpar, a expressão mais autêntica, porque sempre inacabada, do pensamento heterodoxo em língua portuguesa nos últimos cem anos, mais se estreitam os laços entre mito e metafísica, numa metafísica, simultaneamente cosmogônica e existencial, divina e humana, transcendente e imanente. A travessia metafísica é a travessia transcendente e interiorizada de um sertão concreto, micro e macrocosmos, já que na topografia dessa transcendência imanente, o humano se assume ele próprio como travessia: “Existe é homem humano. Travessia” [6].
Na travessia das estórias, a escrita rosiana parece discorrer imperturbável entre o mítico e o místico, o aporético e o irônico, o amor e o humor. Não se limitando à desconstrução, transcende-se na recriação cosmogônica de uma escrita outra, a partir das origens míticas, lúdicas e risíveis do logos simbólico, das raízes pré- e supra-significativas de um sentido, cuja seriedade reflexiva e coerência lógica se questionam demais. Como se o mythos, a estória, a epopéia fossem as formas irônicas de denunciar o não-senso do sentido, o ilógico da lógica e, simultaneamente, as fórmulas mágicas de anunciar o supra-senso de um Urmundo e de uma Urlingua genesíacas.


Maria Helena Varela. O heterologos em língua portuguesa : elementos para uma antropologia filosófica situada. Rio de Janeiro : Espaço e Tempo, 1996
[1] Rosa, Guimarães. Entrevista a Günter Lorenz, p. 65.
[2] Jolles, A. Formas simples. São Paulo, Cultrix, 1974.
[3] Rosa, Guimarães. Op. cit., p. 95.
[4] Op. cit., p. 80.
[5] Op. cit., p. 89.
[6] Grande sertão: veredas, p. 538.