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Tournier (Célébrations) – A alma do vinho
sábado 28 de junho de 2025
Entre Dionísio e Jesus, a videira lança uma ponte frágil e frutífera. O vinho, estranho símbolo da civilização mediterrânea, confunde insolentemente a folia e o sagrado. De um lado Baco e seu cortejo de bêbados alegres como os pintou Rubens, do outro as Bodas de Caná e o cálice da Última Ceia.
Se a França é chamada de "filha primogênita da Igreja", deve-o antes de tudo a seus vinhos. É o único país do mundo onde se tem certeza de encontrar garrafas honradas até nas mais modestas mercearias do interior.
O único também onde o vinho não é luxo, mas acompanhamento obrigatório de toda refeição. Em minha aldeia na Côte-d’Or, morre-se aos cem anos sem ter bebido uma única gota de água pura. Simplesmente a água não é líquido potável, serve para lavar e regar flores. Bebê-la é ato selvagem que não augura nada de bom. Na Borgonha, o bebedor de água é suspeito de predisposição à rancor e à intolerância. Toda minha infância, alertaram-me contra o perigo de "afogar o estômago", entendendo-se claro que só a água afoga.
Tenho diante de mim O Sábio do Lar, belo livro encadernado em vermelho e dourado que se dava aos bons alunos na distribuição de prêmios há cem anos. Um capítulo trata do alcoolismo. Para combater esse flagelo, recomenda-se o consumo de "bebidas higiênicas como vinhos e cervejas", e pede-se ao Estado que reduza os impostos que as atingem.
Sabe-se porém ser moderado e apreciaram-se as lembranças de Jeanne Calment - morta recentemente aos cento e vinte e dois anos - que dissera ter parado de beber vinho aos cento e catorze. Exemplo a seguir...
Há um capítulo sombrio a escrever sobre a infelicidade dos que não gostam de vinho. A Igreja os chama de "abstêmios". Em seu conto O Vinho de Paris, Marcel Aymé começa por nos contar a triste vida de um viticultor de Arbois que não gostava de vinho. Mas o tema não o inspira e logo muda de herói. Étienne Duvilé, pequeno funcionário parisiense, sofre cruelmente com as restrições de vinho durante os anos de guerra. Vive com o sogro que detesta cordialmente. Até o dia em que percebe que o velho se parece com uma garrafa de bordeaux. Daí em diante, a esposa estranha vê-lo rodear o ancião com um saca-rolhas na mão. Naturalmente a história termina mal, pois Duvilé assiste extasiado à metamorfose de todos os transeuntes em garrafas de bom vinho.
Os padres abstêmios causaram graves problemas à Igreja. Foram primeiro declarados incapazes de celebrar missa. Mais tarde, o sínodo de La Rochelle em 1571 e o de Poitiers em 1644 decidiram que os abstêmios seriam admitidos à Ceia desde que tocassem ao menos com os lábios o cálice contendo a espécie do vinho.
É verdade que para os hussitas (Hungria, século XIV), a própria Igreja de Roma se torna culpada de abstêmio. Primeiro, o uso do vinho branco na missa traduz recuo ante a alegre e vigorosa bebida vermelha. Mas é sobretudo quando a Igreja nega aos simples fiéis a comunhão sob a espécie do vinho que se revoltam os "calixtinos". O conflito faz milhares de mártires e mortos até que o concílio de Basileia em 1433 concede enfim aos hussitas a comunhão sub utraque, sob as duas espécies.


TOURNIER, Michel. Célébrations. Paris: Mercure de France, 1999