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Situação arquetípica faustiana (Goethe, Bonardel)

quinta-feira 17 de abril de 2025

Bonardel1993

Mas nada impede também de ver na situação arquetípica faustiana a reformulação da Queda adâmica, agravada pela inflação de uma intelectualidade sem "corpo". No Prólogo no Céu, o Senhor da Criação, constatando que "todo homem que caminha pode se perder", confirma assim a liberdade do Homo viator e a possibilidade de uma alquimia cristã; enquanto Mefisto se alegra por sua vez de que "o pequeno deus do mundo ainda é da mesma estirpe e bizarro como no primeiro dia" [1]: dividido de si mesmo, vulnerável, portanto recuperável. A originalidade dos dois Faustos seria neste caso ter feito convergir essa situação muito arcaica com a corrente histórica que levava o homem do Ocidente, encarnado por Fausto, a reviver de forma exacerbada uma dualidade inerente à sua decadência original. Compreende-se então que Jung Jung Carl Jung (1875-1961) pôde ver em Fausto o "último momento", a "virada histórica" da alquimia ocidental [2]. É aliás significativo que, falando de Fausto como um "cavaleiro da indústria", Jung Jung Carl Jung (1875-1961) retome consciente ou inconscientemente a expressão pela qual F. von Baader designava o homem decaído: "Ao mesmo tempo que corrompe a natureza, ele nunca se realiza no sentido pleno do termo, pelo fato de que nunca consegue tomar substância", dizia Baader dessa figura moderna do pecador: "Uma espécie de sol extinto que cessa de iluminar e aquecer a terra", segundo E. Susini [3]. Tal será igualmente o Lobo da estepe de H. Hesse Hesse Hesse, Hermann (1877-1962) , separado do mundo por uma espécie de vidro, e cuja esquizoidia parece a Hesse Hesse Hesse, Hermann (1877-1962) "a neurose de toda uma geração à qual ele pertence e que ataca não os indivíduos fracos e inferiores, mas precisamente os mais fortes e os mais bem dotados, aqueles que possuem a mais alta intelectualidade" [4]. Aquela atribuída por H. von Hofmannsthal Hofmannsthal Hofmannsthal, Hugo von (1874-1929) ao seu Zenodoxus que, diz A. Dabezies, se atordoa com sua própria atividade e sua própria dialética, que prega a relatividade de todas as coisas e apequena com sua crítica toda grandeza e todo ideal [5]. Insuperável explorador desiludido de todos os possíveis, será neste registro o Fausto de Valéry Valéry Valéry, Paul (1871-1945)  [6], Heidegger confirma que tal autossedução, aliás "arrazoante", constitui de fato o ponto culminante da dinâmica faustiana do homem teórico ocidental, movido tanto quanto minado pela Preocupação:

No entanto, essa tranquilização no ser inautêntico não leva à inércia e à ociosidade, mas impulsiona à frenesi da "ocupação". O ser-caído no "mundo" não pode mais encontrar repouso. A tranquilização tentadora acentua a decadência (...) O Dasein se precipita de si mesmo em si mesmo, na ausência de solo e na nulidade da cotidianidade inautêntica. Mas essa precipitação permanece oculta a seus olhos pelo ser-explicitado público, a ponto de ser explicitada como "progresso" e como "vida concreta" [7].

Fora, portanto, de uma resposta especificamente cristã diante de tal "queda" em forma de autoalienação sedutora, e mesmo que nada se possa esperar de um ataque frontal, inoperante pois já incluído no processo de autotortura, existe outro procedimento de liberação que não o alquímico, pelo esgotamento do esgotamento faustiano? É por isso que, assim como não se pode reduzir Fausto a um "percurso" alquímico mais ou menos bem-sucedido, não se pode contentar em recensear os símbolos da Obra esparsos no tecido dissociado da cultura "faustiana" ocidental, sem ter cedo ou tarde que colocar de forma mais essencial a questão da transmutação do próprio espaço dessa cultura por ora dividida entre seu Oriente e seu Ocidente:

O ceticismo do Oriente e o do Ocidente estão em luta no duplo blasfêmia de Fausto e Mefistófeles. Em um se misturam ainda à impiedade o entusiasmo, o ardor da alma, o hino nascido da aurora, e não sei que relâmpago de desejo que, por intervalo, se acende no caos. No outro, tudo é sutileza bizantina, ironia, noite sem calor e sem tempestade, desgosto incurável, veneno, sofisma, tédio de uma sociedade envelhecida. Dois gênios, duas filosofias, dois mundos, se entrechocam neste diálogo maldito [8].


[1Primeiro Fausto, p. 32.

[2Psicologia e Alquimia, p. 601.

[3E. Susini, F. von Baader e o romantismo místico, Paris, Vrin, 1942, t. 2, p. 285-286.

[4O Lobo da Estepe, p. 26. Note-se igualmente um pequeno texto de Hesse "Faust und sein Freund Eisenbart hören die Zunkunft", no qual Fausto e seu amigo escutam, horrorizados, os ruídos bizarros emitidos pela máquina de escutar o futuro inventada por Mefisto: A. Dabezies, ibid., p. 244.

[5Ibid., p. 242.

[6Meu Fausto, p. 30: "Esta vida só estará completa quando eu tiver finalmente queimado tudo o que adorei, e adorado tudo o que queimei.]. Além disso, reconhecendo o caráter ao mesmo tempo tentador, tranquilizador e alienante do ser-no-mundo, mesmo tendo o cuidado de distinguir a decadência do Dasein de sua queda no sentido cristão [[Ser e Tempo (trad. Martineau), § 180, p. 40.

[7Ibid., § 178, p. 139.

[8E. Quinet, Obras completas, Paris, Pagnerre, 1857-1870, t. 1, O Gênio das religiões, p. 73.