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Le Mont Analogue
René Daumal – História dos homens-ocos
segunda-feira 30 de junho de 2025
Os homens-ocos vivem na pedra, nela circulam como cavernas viajantes. No gelo eles se passeiam como bolhas em forma de homens. Mas no ar eles não se aventuram, pois o vento os levaria.
Eles têm casas na pedra, cujas paredes são feitas de buracos, e tendas no gelo, cuja lona é feita de bolhas. De dia eles ficam na pedra, e à noite erram no gelo, onde dançam à lua cheia. Mas nunca veem o sol, caso contrário eles explodiriam.
Eles só comem o vazio, eles comem a forma dos cadáveres, eles se embriagam de palavras vazias, de todas as palavras vazias que nós outros pronunciamos.
Algumas pessoas dizem que eles sempre foram e sempre serão. Outras dizem que eles são mortos. E outras dizem que cada homem vivo tem na montanha seu homem-oco, como a espada tem sua bainha, como o pé tem sua pegada, e que na morte eles se unem.
Na aldeia das Cem-casas vivia o velho padre-mago Kissé e sua mulher Hulé-hulé. Eles tinham dois filhos, dois gêmeos que nada distinguia, que se chamavam Mo e Ho. A própria mãe os confundia. Para reconhecê-los, no dia da imposição dos nomes, colocaram em Mo um colar com uma pequena cruz, em Ho um colar com uma pequena argola.
O velho Kissé tinha uma grande preocupação silenciosa. Segundo o costume, seu filho mais velho devia sucedê-lo. Mas quem era seu filho mais velho? Ele tinha sequer um filho mais velho?
Na idade da adolescência, Mo e Ho eram montanheses completos. Eram chamados de os dois Passa-por-tudo. Um dia seu pai lhes disse: “Aquele de vocês dois que me trouxer a Rosa-amarga, a esse eu transmitirei o grande saber.”
A Rosa-amarga se encontra no cume dos picos mais altos. Aquele que a comeu, assim que se prepara para dizer uma mentira, em voz alta ou baixa, a língua lhe queima. Ele pode ainda dizer mentiras, mas então ele é avisado. Algumas pessoas avistaram a Rosa-amarga: isso se parece, pelo que contam, a uma espécie de grande líquen multicolorido, ou a um enxame de borboletas. Mas ninguém pôde pegá-la, pois o menor estremecimento de medo perto dela a assusta, e ela entra na rocha. Ora, se mesmo se a deseja, sempre se tem um pouco de medo de a possuir, e logo ela desaparece.
Para falar de uma ação impossível, ou de um empreendimento absurdo, se diz: “é procurar ver a noite em pleno dia”, ou: “é querer iluminar o sol para melhor o ver”, ou ainda: “é tentar pegar a Rosa-amarga”.
Mo pegou suas cordas e seu martelo e seu machado e ganchos de ferro. O sol o surpreendeu nos flancos do pico Fura-as-nuvens. Como um lagarto às vezes, e às vezes como uma aranha, ele se eleva ao longo de altas paredes vermelhas, entre o branco das neves e o azul-preto do céu. As pequenas nuvens rápidas de tempos em tempos o envolvem, depois o devolvem subitamente à luz. E eis que um pouco acima dele ele vê a Rosa-amarga, brilhante de cores que não são das sete cores. Ele repete sem parar o encantamento que seu pai lhe ensinou, e que protege do medo.
Seria preciso um piton aqui, com um estribo de corda, para montar este cavalo de pedra empinado. Ele golpeia com o martelo, e sua mão afunda em um buraco. Há um oco sob a pedra. Ele quebra a crosta de rocha, e vê que este oco tem a forma de um homem: um torso, pernas, braços, e ocos em forma de dedos afastados como de terror, e é a cabeça que ele furou com um golpe de martelo.
Um vento gelado passa sobre a pedra. Mo matou um homem-oco. Ele estremeceu, e a Rosa-amarga voltou para a rocha.
Mo desce para a aldeia, e ele vai dizer a seu pai: “Matei um homem-oco. Mas vi a Rosa-amarga, e amanhã irei buscá-la.”
O velho Kissé se tornou sombrio. Ele via ao longe os infortúnios avançarem em procissão. Ele disse: “Cuidado com os homens-ocos. Eles vão querer vingar sua morte. Em nosso mundo eles não podem entrar. Mas até a superfície das coisas eles podem vir. Desconfie da superfície das coisas.”
Na alvorada do dia seguinte, Hulé-hulé a mãe soltou um grande grito e se levantou e correu para a montanha. Ao pé da grande muralha vermelha, as roupas de Mo repousavam, e suas cordas e seu martelo, e sua medalha com a cruz. E seu corpo não estava mais lá.
”Ho, meu filho!” veio ela gritar, “meu filho, eles mataram seu irmão!”
Ho se levanta, os dentes cerrados, a pele de seu crânio se encolhia. Ele pega seu machado e quer partir. O pai lhe diz: “Escute primeiro. Eis o que é preciso fazer. Os homens-ocos pegaram seu irmão. Eles o transformaram em homem-oco. Ele vai querer escapar deles. Nos seracs da geleira Límpida ele irá procurar a luz. Ponha em seu pescoço a medalha dele com a sua. Vá em direção a ele e bata na cabeça. Entre na forma de seu corpo. E Mo reviverá entre nós. Não tenha medo de matar um morto.”
No gelo azul da geleira Límpida, Ho olha com todos os seus olhos. É a luz que brinca, ou bem seus olhos que se turvam, ou ele vê bem o que ele vê? Ele vê formas prateadas, como mergulhadores oleados na água, com pernas e braços. E eis seu irmão Mo, sua forma oca que foge, e mil homens-ocos o perseguem, mas eles têm medo da luz. A forma de Mo foge em direção à luz, ela sobe em um grande serac azul, e gira sobre si mesma como para procurar uma porta.
Ho se lança apesar de seu sangue que coagula e apesar de seu coração que se parte, - ele diz a seu sangue, ele diz a seu coração: “não tenha medo de matar um morto”, - ele bate na cabeça furando o gelo. A forma de Mo se torna imóvel, Ho fende o gelo do serac, e entra na forma de seu irmão, como uma espada em sua bainha, como um pé em sua pegada. Ele usa os cotovelos e se sacode, e tira suas pernas do molde de gelo. E ele se ouve dizer palavras em uma língua que ele nunca falou. Ele sente que ele é Ho, e que ele é Mo ao mesmo tempo. Todas as lembranças de Mo entraram em sua memória: com o caminho do pico Fura-as-nuvens, e a morada da Rosa-amarga.
Com no pescoço o círculo e a cruz, ele vem perto de Hulé-hulé: “Mãe, a senhora não terá mais dificuldade em nos reconhecer, Mo e Ho estão no mesmo corpo, sou seu único filho Moho.”
O velho Kissé chorou duas lágrimas, seu rosto se desdobrou. Mas uma dúvida ainda ele queria resolver. Ele disse a Moho: “Você é meu único filho, Ho e Mo não têm mais que se distinguir.”
Mas Moho lhe disse com certeza: “Agora posso alcançar a Rosa-amarga. Mo sabe o caminho, Ho sabe o gesto a fazer. Mestre do medo, terei a flor de discernimento.”
Ele colheu a flor, ele teve o saber, e o velho Kissé pôde deixar este mundo.
Nessa mesma noite, o sol se pôs sem nos abrir a porta de um outro mundo.


Ver online : DAUMAL, René. Le Mont Analogue. Paris: Gallimard, 1981
DAUMAL, René. Le Mont Analogue. Paris: Gallimard, 1981