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Tu t’es toujours trompé

René Daumal – A palavra Deus

L’Intuition métaphysique dans l’histoire

segunda-feira 30 de junho de 2025

A fisiologia e a sociologia, por si sós, poderiam, portanto, explicar, na maioria dos casos, como a palavra Deus, ouvida ou pronunciada por um indivíduo humano, coloca seu corpo em um estado de serenidade, alegria, exaltação ou medo; não é necessário passar pelo desvio da ideia. Além disso, para quem não teve a experiência real da noção de um absoluto, vários nomes podem substituí-la e comandar a disposição cenestésica que será falsamente chamada de certeza, fé, adoração ou graça. Assim se constitui uma primeira série de falsas aparências do absoluto; são seus substitutos diretos, todos os nomes que, destinados a significá-la, rapidamente a substituem e a matam. Poderíamos facilmente listar esses nomes, distinguindo os do absoluto considerado como existência por excelência: Ser, Ser supremo, Deus;

como valor por excelência: o Bem; para alguns, o Belo, o Verdadeiro;

como ato moral por excelência: Virtude, Soberano Bem;

como autoridade por excelência: o Senhor, a Lei divina;

como poder por excelência: o Todo-Poderoso;

como causa por excelência: o Criador;

como fim por excelência: Beatitude, Libertação, União;

como inteligência, enfim, como vontade, como adorável, como amor, como venerável, etc.

e não esqueçamos o próprio nome de Absoluto, que é o «por excelência» em geral. Fica sempre subentendido, aliás, mais ou menos conscientemente, que o absoluto designado sob um desses aspectos particulares é absoluto também em todos os outros sentidos. Não acontece o mesmo com a segunda série de substitutos que vamos percorrer rapidamente.

Eu poderia chamar esses novos simulacros de substitutos de segundo grau, substitutos por degradação, ou melhor, por abnegação incompleta. O homem se supera continuamente por uma série de negações sucessivas. Se quiser permanecer consciente, deve renegar a cada instante, e sempre por um novo ato, a forma individual na qual se apreendia; assim, é obrigado a formar a noção-limite de uma consciência absolutamente negadora de toda individualidade.

A natureza da linguagem e, além disso, a forma da linguagem filosófica me forçam a apresentar de maneira geral, em termos abstratos, o que só tem realidade atual, imediatamente apreensível, em uma determinada vida particular. Assim, essa dialética da «abnegação» corre o risco de parecer uma operação puramente intelectual. O ato que eu significo por estas palavras: «eu nego a mim mesmo», porque busco um modo de expressão geral e comunicável, pode ser manifestado por uma grande diversidade de ações além das de falar e escrever. O homem que, sem rodeios, dedica sua vida à salvação de outro homem, aquele que renuncia ao seu prazer, ao seu descanso, à sua saúde em benefício de alguma realidade que o supera, todo homem, enfim, que se sacrifica, opera, quer o diga ou não, assim ou de outra forma, o ato de abnegação de si, motor do progresso da consciência.

Por exemplo, negando, por sua atitude ou suas ações, que o que realmente vale nele seja seu indivíduo, ele se afirmará como representante de uma coletividade; de acordo com o quão longe ele prossegue nessa marcha negadora, ele atribuirá o ser e o valor verdadeiro a coletividades cada vez mais amplas: família, corporação, pátria, raça, gênero humano. Cada uma dessas realidades pode, por sua vez, desempenhar o papel de absoluto. Assim se forma a série dos substitutos degradados do absoluto, inspirando aos homens, dependendo do ponto em que pararam na escala de sacrifícios, sentimentos de orgulho familiar, de honra profissional, de patriotismo, de orgulho de raça. E, de acordo com o grau de abnegação do próprio observador, esses sentimentos parecerão nobres, se sua origem for um sacrifício a uma coletividade mais vasta, ignóbeis no caso contrário. Cada uma dessas abnegações relativas é boa ou má dependendo de ser oposta a um grau inferior ou superior de sacrifício. A fraternidade humana, realizada pela rejeição do ser verdadeiro e do valor mais alto no ser humano em geral, raramente é superada e representa, para a massa dos homens, o sentimento de substituição que menos trai a apreensão do absoluto. É, da mesma forma, apelando para a fraternidade de classe que o proletariado poderá lutar mais eficazmente contra todos os simulacros inferiores da realidade e tomar consciência de sua função revolucionária.

O próprio sentimento nacional, que, aos olhos da consciência de ser humano, se torna chauvinismo, gerador de ódios e guerras, pode ser, como realidade viva, a única força capaz de despertar um povo subjugado, de fazê-lo dar o primeiro passo no caminho revolucionário, em direção a uma consciência sempre mais alta. O exemplo das nações oprimidas da Ásia mostra bem: é em nome de sua pátria que os ananamitas começaram a sacudir as correntes francesas. Mas também vemos o contrapartida: na China, o sentimento nacional, depois de ter sido uma força de despertar e de libertação, tornou-se, como em todos os outros lugares, um poder de sono e opressão. Esta lei histórica, um simples caso particular do princípio de correlação entre os poderes de despertar e de sono, não sofre exceções.

Cada uma dessas degradações do absoluto pode, portanto, corresponder a um despertar da consciência, em um determinado momento; uma vez superado esse momento, ela se torna uma força de inércia. Mas, para isso, é preciso que essas atribuições sucessivas da realidade suprema a coletividades cada vez maiores tenham sido fruto de experiências reais. Na maioria das vezes, os homens reconhecem o ser de tal coletividade como o absoluto ao qual devem tudo sacrificar, porque isso lhes foi ensinado, repetido, imposto; então, esses derivados ilusórios do absoluto só mantêm seu papel conservador, sua função de adormecer. O poder de opressão de uma ideologia coletiva está ligado a formas sociais; é a própria sociedade que constitui sua força de inércia em instituições pelas quais se mantém, e pelas quais, sobretudo, impõe aos homens um fantasma de absoluto. As instituições de ensino, os jornais, as Igrejas, as opiniões reinantes, os dogmas morais oficiais são tantas formas da tendência de uma sociedade a perseverar em seu «não ser». Uma nação, por exemplo, se apresenta como um limite moral que os indivíduos, nos sacrifícios que fazem de si mesmos, não devem ultrapassar; se um número excessivo de pessoas ultrapassa esse limite, a realidade nacional corre grande perigo de perecer. Os homens podem admitir limites inferiores: eles podem morrer pela honra de sua família, de sua profissão, de sua aldeia; a pátria não tem nada a temer. Mas ela está em grande perigo assim que um número importante de indivíduos reconhece como mais real e superior uma outra coletividade, a de todos os homens oprimidos, por exemplo.

Ocorre um entrelaçamento contínuo entre todos os sucedâneos falaciosos do absoluto e as diversas formas de opressão social. Assim, quando a consciência coletiva ainda atribui a realidade por excelência ao absoluto que ela chama de Deus, o poder reinante deve, para conservar a proeminência nos julgamentos do povo, identificar-se com o princípio divino. Nas monarquias primitivas, o rei, como o Faraó egípcio, é primeiro o próprio Deus. Mais tarde, nas monarquias ditas «de direito divino», ele é o representante direto e único legítimo do poder temporal de Deus na terra. Se o povo então desperta, ele lutará ao mesmo tempo contra os dois aspectos do poder, o poder real e a autoridade espiritual da Igreja. Passado esse período revolucionário, as formas que manifestaram o sobressalto de consciência do povo constituirão uma nova ideologia, uma nova força de adormecimento a serviço de novos opressores: como os «princípios imortais de 89», realidade viva no momento da Revolução, que se tornaram o fundamento da ideologia burguesa e patriótica da «democracia» capitalista da França.

O estudo dessas interferências, que aqui só quero indicar, constituirá mais tarde a ciência da evolução social. Será, como se vê, uma dialética baseada na primeira intuição metafísica: o ato de tomar consciência, acompanhado da tendência correlativa ao sono; e o esquema desse passo histórico do pensamento será a escala de valores-limite sucessivamente postos pela progressão da consciência, que por sua vez os toma como absolutos; libertando-se e acorrentando-se sempre de novo, a humanidade só poderia encontrar libertação definitiva em uma sociedade organizada de tal forma que nenhuma ideologia possa se impor sem o controle incessante de todo o povo; onde, consequentemente, nenhum homem ou nenhuma classe de homens poderia, separando-se do resto da sociedade, estabelecer seu domínio por meio de simulacros de espírito. Esse postulado, esse limite hipotético, mas necessariamente pensado, poderá nos fazer passar da ciência dos fatos sociais à sociologia que talvez se queira chamar de «teleológica»; mas, em vez de um conhecimento dos fins sociais, será a descrição de tendências atualmente dadas, visando e implicando necessariamente estados-limite determinados; fins e meios da transformação social entrarão assim na mesma descrição, afastando toda suposição de «finalismo» ou de «ideal» social. Essa ciência se desenhará pouco a pouco por si mesma quando tivermos suprimido pelo pensamento todas as forças de opressão e de sono. Uma vez realizado esse trabalho negador, restará constatar e descrever as tendências positivas que subsistirão; e, como faz o matemático para uma variação de função, nós estabeleceremos os limites. O sistema geral desses limites formará o único esquema legítimo que podemos conceber da sociedade-limite, verdadeiro ideal concreto, pois o estado-limite de uma variação concreta deve ser pensado como concreto. Esse esquema, que se juntará e englobará o da sociedade-postulado que estabelecemos há pouco, estará tão longe da utopia quanto, na análise algébrica, o cálculo de um valor limite difere de uma vaga previsão sentimental.

É o fato religioso, entenda-se o fato místico, que gerou as formas mais puras, as mais precisas da intuição metafísica; é ele também, portanto, que deu origem às mais temíveis forças de obscurecimento do pensamento e de escravização dos povos. O despertar da consciência, na forma religiosa como em qualquer outra, é sempre acompanhado de um esforço de libertação social; mas o absoluto proposto às consciências humanas degenera rapidamente em um vão simulacro, que se torna um instrumento e um símbolo de escravidão e de morte. Temos, portanto, muitas chances de encontrar as expressões mais nítidas de uma experiência metafísica nas religiões em estado nascente, nas heresias, nas explosões do misticismo; e também, por outro lado, em todas as lutas dirigidas contra as raízes das religiões estabelecidas, instituídas como sistemas de opressão social. Em todos os povos, em todos os tempos, constataremos a mesma relação entre as duas funções contraditórias das «revelações» religiosas.

Um ensinamento metafísico corresponde a um saber real se tiver como origem o ato imediato que eu reclamei no início: todo espírito que quer permanecer desperto, ou seja, ser ele mesmo, deve, por uma série indefinida de atos de abnegação, superar-se incessantemente; ele tem dessa progressão uma intuição ativa pelo fato de a fazer; ora, nada é e nada vale a não ser para um ato de consciência; e, além disso, um ser ou um bem que não fossem consciência de ser ou de valer seriam um ser ou um bem imediatos, seriam abstratos ou virtuais. (Se teve o cuidado de afastar de seu espírito toda preocupação com sistema ou doutrina, deve constatar que me esforço para dizer o que é, e que minhas palavras não têm nada a ver com uma afirmação ou uma negação do idealismo; é preciso primeiro afastar atentamente todo preconceito filosófico.) O ser supremo e o bem supremo devem, portanto, ser pensados como idênticos ao limite da marcha progressiva da consciência. O ser por excelência e o valor absoluto, é o que as religiões chamam de Deus. Uma teologia será, portanto, o sinal de um pensamento real quando representar Deus como o limite de uma progressão da consciência da qual temos a experiência imediata, e que se efetua pela rejeição sucessiva de individualidades cada vez mais amplas; Deus será, portanto, posto como a negação absoluta de toda determinação individual.


Ver online : DAUMAL, René. Tu t’es toujours trompé. Paris: Mercure de France, 1970


DAUMAL, René. Tu t’es toujours trompé. Paris: Mercure de France, 1970