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A ciência dos símbolos
René Alleau – O Mito e o Ritual
O Tipo
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O vocábulo mito encerra dois significados principais que geralmente se opõem, oscilando entre a noção de fábula ou ficção e a de modelo exemplar ou revelação primordial de origem supra-humana transmitida por uma tradição sagrada, sendo que, conforme lembrado anteriormente, desde Xenofanes e da sua crítica à mitologia de Homero e Hesiodo, a dessacralização progressiva da cultura grega esvaziou pouco a pouco o mythos de todo o conteúdo supra-humano de ordem iniciática, religiosa ou metafísica; neste sentido, Mircea Eliade recorda que a palavra mythos, oposta tanto a logos como, mais tarde, a história, acabou por significar tudo o que não pode existir realmente, ao passo que o judeo-cristianismo relegava para o domínio da mentira e da ilusão tudo o que não era justificado ou admitido por um dos dois Testamentos.
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Há aproximadamente sessenta anos, etnólogos, psicólogos, sociólogos e historiadores das religiões iniciaram pesquisas que permitiram uma melhor compreensão da natureza e função do mito nas sociedades primitivas, destacando-se a perspectiva de Bronislav Malinowski, para quem o mito, encarado naquilo que tem de vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas um relato que faz reviver uma realidade original e responde a uma profunda necessidade religiosa, a aspirações morais, a constrangimentos e imperativos sociais, desempenhando uma função indispensável ao exprimir, realçar e codificar crenças, salvaguardar e impor princípios morais, garantir a eficácia dos rituais e oferecer regras práticas, constituindo assim não uma máxima oca, mas uma realidade viva e uma autêntica codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.
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Não obstante a concepção clássica de Malinowski, é possível interrogar acerca das relações do mito com a salvaguarda dos princípios morais ou imperativos sociais, tomando como exemplo o confronto entre o mito iniciático grego dos mistérios do dia de Iacos em Eleusis e o mito japonês de Ama-no-Uzume ou Uzume, divindade celeste das sacerdotisas Sarume; embora estas duas tradições não derivem uma da outra, a sua concordância ritual demonstra o valor primordial do ritual arcaico iniciático mágico-religioso face à expressão mítica variável, pois sem o contexto ritual e a participação existencial, o mito degrada-se em fábula e a conduta de intenção sagrada torna-se conduta de relato profana, alienando os homens da solidariedade universal das forças supra-humanas necessária à recriação permanente de uma significação simbólica do Cosmos ou de uma sobre-realidade que o transfigura.
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No que tange ao mito japonês, cujas fontes escritas no Kojiki datam de 712 e foram assimiladas às palavras antigas de Hieda no Are, o episódio místico de Uzume intercala-se no ciclo de Amaterasu, a regente supra-humana do Sol e da agricultura, que se retirou para a Gruta-rochosa-do-Céu devido aos atos sacrílegos de seu irmão Susa-noo, mergulhando o universo numa noite eterna; para reverter tal catástrofe, após a falha de outras divindades, Uzume realizou uma dança possessa sobre uma tina sonora, despindo-se e expondo as suas partes sexuais, o que provocou o riso dos oitocentos miríades de deuses e, consequentemente, a curiosidade de Amaterasu, que ao sair da gruta foi confrontada com um espelho mágico, permitindo que a luz brotasse de novo e restabelecesse a ordem cósmica, um ritual preservado na cerimônia Mitama-shizumé onde sacerdotisas imitam estes gestos para chamar e captar as almas dos deuses.
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Paralelamente, na Grécia, constata-se uma recuperação cultural de um rito primitivo análogo no hino homérico a Demeter, onde a Grande Deusa, enlutada pelo rapto de sua filha pelo deus dos infernos, recusa-se a comer ou rir, provocando a esterilidade da terra, até ser acolhida em Eleusis; a interpretação deste mito é elucidada por Clemente de Alexandria no seu Protreptikon, ao narrar que Baubo, ou Iambe, irritada com a recusa da deusa em aceitar o kykeon, levanta a roupa e exibe o sexo, onde figurava o rosto da criança Iacos, gesto que levou Demeter a rir e a aceitar o alimento, restaurando a fecundidade, o que confirma, conforme as investigações arqueológicas sobre as estatuetas de Baubo em Priena e os textos de Arnobio e do orfismo, que o mito grego e o japonês compartilham raízes comuns em ritos agrários de fertilidade onde a obscenidade e o riso têm uma eficácia mágica de expulsar as trevas e reanimar a vida, não possuindo um alcance moral no sentido moderno, mas estando profundamente ligados à economia geral das relações do homem com a natureza.
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A importância das sacerdotisas é evidente na estrutura hierárquica de Eleusis, onde a sacerdotisa de Demeter, pertencente à família sagrada dos Philleidai, detinha primazia sobre o hierofante em certos ritos arcaicos como os Haloa, festa centrada na iniciação das mulheres, na confecção de bolos em forma de órgãos sexuais e na troca de palavras livres para reanimar magicamente as forças fecundas; do mesmo modo, nos Grandes Mistérios, a sacerdotisa desempenhava papel essencial na união nupcial sagrada com o hierofante e na proclamação do nascimento do menino sagrado Brimo, enquanto o grito ritual Iacos, entoado pelos mistos na procissão, possuía uma eficácia mágica capaz de destruir conspurcações e invocar o auxílio divino, como relatado por Herodoto a respeito da batalha de Salamina, evidenciando que nestas cerimônias místico-religiosas a música, a dança, a poesia e os gritos rituais eram indissociáveis da função sacerdotal e da eficácia litúrgica.
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A transmissão poética nestes contextos não visava uma finalidade estética, mas sim a eficácia mágica da repetição de palavras sagradas dotadas de poder criador, capazes de reatualizar a Palavra primordial e despertar a vida, como se observa nas tradições polinésias onde as palavras de Io são usadas para fecundação e cura, ou entre os Osage, onde a história da Criação deve ser recitada diante do recém-nascido antes de ser amamentado; este retorno à origem é uma comemoração mítica que reinsere a história e o tempo vivido no coração do eterno Testemunho, operando uma recriação do universo análoga à sagração do rei indiano, o rajasuya, onde o soberano regride ao estado embrionário para renascer como Rei do Mundo identificado com Praja-pati e o Cosmos.
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A evolução histórica da poesia reflete a dissolução dessa função mítica, observando-se que a quantidade musical da sílaba no verso latino deixou de ser respeitada no fim do Império e que a Igreja, conforme demonstrado por G. Lotte e exemplificado pelo poema contra os donatistas de Santo Agostinho, favoreceu o silabismo como meio mnemotécnico para o ensino de populações analfabetas e para combater o paganismo, o que levou a uma separação progressiva entre a cultura poética erudita dos letrados e as expressões populares; este processo culminou, desde a Renascença, numa decadência da atividade poética nas sociedades ocidentais, onde o historicismo situou a arte na história produzida e não na perspectiva genética do mito criador, uma visão consolidada por Hegel, para quem a arte é apenas uma fase imperfeita da história do espírito destinada a ser ultrapassada pela cultura reflexiva, e diagnosticada por Viollet-Le-Duc, que apontou a perda do sentido simbólico nas classes populares e a redução da arte a um diletantismo de amadores cercado de bárbaros, fenômeno inseparável de uma mitologia da produção que domina a civilização moderna e se opõe à contemplação.
Ver online : René Alleau
ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.