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Poiëtiques
Pierre-Jean Labarrière – Formas do Imaginário
Quando a utopia se faz história
Introdução à Dialética entre Interioridade e Exterioridade
- A definição conceitual de figura e das formas do imaginário não deve ser apresentada preliminarmente como uma estrutura a priori da consciência, sob o risco de sugerir uma superdeterminação da interioridade subjetiva, como se a esta coubesse, por uma potência imaginativa autônoma, submeter e produzir a exterioridade; para garantir a equivalência entre as dimensões da realidade e honrar a birreflexividade entre interior e exterior, torna-se necessário priorizar o direito da exterioridade através das categorias de espaço, tempo, condição e medida, não como estruturas a priori, mas como movimentos de emergência fenomenal que ordenam e apresentam os elementos constitutivos do ser em sua concretude.
- Estabelecida a precedência fenomenal do exterior, torna-se possível retornar à interioridade realizante sem ambiguidades excessivas, compreendendo que esta pressupõe as condições de sua própria efetuação, pois na estrutura lógica de compreensão de si e do mundo não há preponderância de um termo sobre o outro, mas um jogo de antecedência recíproca; nesse contexto, a imagem deve ser reconhecida como um elemento mediador, constituindo-se simultaneamente como fenômeno interior e figura histórica, carregada de uma ambiguidade essencial que a torna um fenômeno subjetivo e objetivo, fruto da atividade conjunta do espírito e de seu mundo.
A Ambiguidade da Imagem e a Tradição Teológica
- A imagem manifesta-se sob um regime dialético passível de duplo tratamento, seja como representação de primeiro grau, como a imagem-espelho ou fotografia, seja como conceito; em sua emergência exteriorizada, a imagem corre o risco de ser um reflexo enganoso, exemplificado pelo mito de Narciso, ou, inversamente, pela experiência de Dante no Céu da Lua, onde o poeta confunde substâncias verdadeiras com reflexos, demonstrando que o discernimento entre contornos enganosos e contornos de verdade exige pesar a realidade do irreal e compreender a determinação através do indeterminado.
- A imagem constitui-se como referência fundamental e fenômeno segundo, detendo o selo de uma origem radical, o que se observa na filiação humana e na designação teológica do homem como imagem de Deus; embora a exegese tradicional do Gênesis distinga imagem de semelhança, o termo imagem possui uma função integrativa que designa o homem na totalidade de seu ser e vocação, indicando uma continuidade ontológica e uma participação na natureza divina, conforme ensinamentos bíblicos que vetam a produção de ídolos justamente porque o homem é a única imagem válida de um Deus irrepresentável.
- Na perspectiva de Meister Eckhart, a compreensão da imagem exige um distanciamento de seus espelhamentos sensoriais em favor de uma nudez das origens, onde a exigência de liberdade implica não se fixar nem na imagem nem na sua ausência, mas compreendê-la na sua inteligência verificada como manifestação do que é; a imagem é reintegrada em uma função ontológica, coincidindo plenamente com o ser ao ponto de se tornar expressão de si mesma, pois a imagem não possui ser por si mesma, mas retira seu ser inteiramente daquilo de que é imagem, estabelecendo uma identidade de fundo entre o homem-imagem e o Deus-sem-imagem através de um processo de nascimento perpétuo e co-engendramento onde a alma e Deus operam em uma unidade indivisa.
A Representação e o Conceito na Filosofia Hegeliana
- A crítica de Franz Rosenzweig a Hegel, utilizando a parábola do muro, da frescha e do quadro para denunciar uma suposta redução uniformizante na filosofia hegeliana, contrasta a continuidade ontológica estática com a autonomia da imagem destacável; contudo, a economia da imagem em Hegel é mais complexa e não se reduz a um unilateralismo, pois a representação é o lugar da experiência espiritual que deve ser ressaisida em sua significação conceitual, não havendo uma simples justaposição, mas uma articulação onde a história é o devir-conceito das representações, exigindo a ação conjunta do entendimento divisor e da razão unificadora.
- A articulação entre entendimento e razão resulta na compreensão conceitual do objeto e da universalidade na singularidade, onde o princípio do todo assegura o particular, e o pensamento move-se em imagens sem confundí-las com seu suporte nem isolá-las na finitude; a alternativa hegeliana não reside entre uma realidade exterior e um conceito interior, mas entre dois tratamentos da representação: o representado como algo outro face à consciência e o conceito como um conteúdo compreendido onde a consciência percebe sua unidade com o ente determinado, mantendo a diferença como um ser-em-si distinto, mas apreendido em uma unidade não separada.
- A potência imaginante, reprodutora e criadora, articula memória e invenção de formas novas, de modo que o saber absoluto hegeliano transcreve em termos históricos a reminiscência que o espírito opera das imagens das civilizações passadas; há uma identidade de princípio entre a ontogênese do indivíduo e a filogênese da espécie, onde cada indivíduo deve percorrer os graus de cultura do espírito universal, apropriando-se de sua substância inorgânica e transformando a necessidade sutilizada em liberdade, num processo onde a história do espírito se repete de forma acelerada no indivíduo, convertendo o ser-aí do espírito em ser-para-si.
Memória, Esquecimento e a Escrita Poética
- A organização ficcional do material histórico e a construção do enredo, conforme analisado por Paul Ricoeur, revelam que o pensamento nasce da articulação entre constrangimento e inventividade, onde o rememorar do passado abre o futuro; contudo, diante de experiências de excesso, como a ascensão de Dante ao Paraíso, a memória pode falhar, e é nesse ponto de ruptura que a escrita poética assume o papel de ficção interpretativa para suprir as lacunas da memória, transformando o indizível em matéria de canto e operando uma tradução necessária, pois a apreensão direta da realidade absoluta seria insuportável.
- A escrita de Dante constitui um autêntico arte da memória, utilizando as esferas cósmicas como suportes mnemônicos e transformando as imagens excessivas impressas em sua substância em material transmissível ao leitor; essa operação pressupõe uma transfiguração onde a experiência original, inacessível em sua pureza, é mediada por um jogo de transposições e relações, evidenciando que a realidade última só é abordável através da tradução poética.
As Três Lógicas e a Relação Sujeito-Objeto
- A tradição ocidental desenvolveu diferentes lógicas para articular a unidade entre sujeito e objeto, sendo a primeira a lógica descritiva, predominante até o século XVIII, que buscava a adequação entre o espírito e a coisa sem implicar necessariamente um dualismo ontológico, reconhecendo que tudo o que é recebido o é segundo o modo do recipiente; Hegel valoriza essa lógica por sua aposta na unidade do ser e do pensamento, ainda que sob uma forma representativa inadequada, em contraste com as lógicas posteriores.
- A segunda posição do pensamento é representada pelo empirismo e, mais significativamente, pelo transcendentalismo kantiano, que opera uma revolução copernicana ao transferir o princípio de determinação para o sujeito, onde o objeto é conhecido na medida em que se inscreve nas estruturas a priori da consciência; no entanto, essa lógica transcendental mantém uma relação necessária com a experiência e a exterioridade, pois o conhecimento só se produz a partir do choque com o dado sensorial, evitando assim um retorno puro ao absoluto do sujeito, embora corra o risco de superdeterminar a análise subjetiva em detrimento da exterioridade.
- A terceira via é a lógica dialética hegeliana, que recusa privilégios tanto à interioridade quanto à exterioridade, apostando na complementaridade de origem e na relação como fundamento anterior à identidade e à diferença; a dialética compreende que a interioridade só se cumpre no trânsito para a exterioridade e que o objeto só é reconhecido em sua diferença real quando se afirma como sujeito, estabelecendo uma birreflexividade onde a mediação não anula as diferenças, mas transita por um desapossamento fundador, recusando tanto o dualismo quanto a unidade indiferenciada.
A Lógica dos Sólidos versus a Lógica da Fonte
- Pode-se contrastar simbolicamente uma lógica dos sólidos, marcada pela justaposição e exclusão mútua, com uma lógica da fonte, caracterizada pela interioridade recíproca e pelo fluxo; o Inferno de Dante ilustra a lógica dos sólidos, onde os corpos e espíritos permanecem impenetráveis e isolados em sua opacidade, enquanto o Purgatório e o Paraíso introduzem progressivamente a leveza e a permeabilidade, culminando numa intercomunicação dos seres onde a distinção não implica separação espacial, permitindo a coexistência de corpos e a união de naturezas distintas.
- Meister Eckhart distingue entre conhecer as coisas "junto de Deus", o que corresponde à justaposição quantitativa, e conhecer "em Deus", onde se atinge a fonte de toda determinação e onde o múltiplo é um; essa plenitude divina é paradoxalmente um vazio, uma ausência de devir temporal que é um "agora" eterno, descrita como uma pequenez ou sutileza que fundamenta tudo o que é, exigindo o abandono de pressuposições sobre a fixidez das determinações e a oposição estática entre sujeito e objeto.
A Fluidez do Conceito e a Transfiguração
- Hegel adverte sobre a necessidade de dissolver as fixidezes do entendimento e das representações cristalizadas na memória cultural, que são mais resistentes que o ser-aí sensível por serem cimentadas pela potência do negativo; o pensamento puro deve tornar-se conceito fluido, reconhecendo-se como momento e automovimento, onde o "mau infinito" da representação é superado pela compreensão da verdadeira infinitude que coloca em processo a imediação sólida, garantindo as diferenças na sua capacidade de diferenciação recíproca.
- O imaginário autêntico exerce-se na colocação em movimento das imagens, não como elo extrínseco, mas esposando o dinamismo interior onde a imagem é o outro de si mesma, exemplificado na figura do grifo em Dante, que simboliza a união das naturezas divina e humana revelando-se imóvel em si mas mutável em sua imagem refletida; a forma última do imaginário é a epifania do sensível ou transfiguração, análoga ao conceito hegeliano de sursunção, onde a figura determinada não desaparece simplesmente no tempo, mas é mantida e transfigurada pela atividade do pensamento, manifestando a universalidade do espírito na particularidade da figura sensível.
Ver online : Pierre-Jean Labarrière
LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Poïétiques: quand l’utopie se fait histoire. Paris: Presses universitaires de France, 1998.