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Consciência e romance
Jean-Louis Chrétien – A exposição do íntimo no romance moderno
Capítulo I
A Leitura do Romance e a Experiência Vicária da Existência
- O romance moderno, ao interrogar a totalidade da experiência humana, inevitavelmente perscruta o próprio ato de ler romances, convidando à meditação sobre como a leitura ou a ausência dela moldam a vida, o pensamento e os atos das personagens, tal como exemplificado fundacionalmente por Dom Quixote, cuja trama gira em torno da leitura de obras de cavalaria, e desdobra-se subsequentemente em obras de Stendhal, onde a inexperiência vital e a desorientação amorosa de personagens como Mme de Chasteller ou Julien Sorel são atribuídas à falta de leitura romanesca ou à natureza dos livros lidos, evidenciando uma interpenetração tal entre o real e o fictício que episódios da existência passam a ser qualificados como romanescos.
- A expansão do romance, observada por William Dean Howells e Thomas Hardy, permitiu que este gênero literário abarcasse todas as dimensões da vida humana, constituindo a totalidade da experiência intelectual de vastas populações e consolidando o que se denomina vicarious experience, a experiência por substituição ou procuration, a qual estendeu seu domínio da literatura para a existência cotidiana urbana e posteriormente para outros meios como o cinema e a televisão, agregando qualitativa e quantitativamente regiões sempre novas à percepção humana.
A Violação da Intimidade e a Transformação da Subjetividade
- A interação entre existência e ficção suscita constatações morais e estéticas, como as de Mme de Stael, que alertava para o fato de os romances, ao ensinarem os segredos mais ocultos dos sentimentos, deflorarem a intimidade real e transformarem a vivência em mera repetição de ficções, contrastando essa exposição moderna com a reserva e a nobre pudeur dos Antigos, que mantinham um santuário interior inviolável e jamais fariam de sua própria alma um sujeito de ficção, preservando assim uma distinção que Heidegger radicalizaria ao afirmar que os gregos não possuíam experiências vividas no sentido moderno de subjetividade.
- Em contrapartida, a perspectiva moderna, representada por Walter Pater em Marius, o Epicurista, reinterpreta essa reserva antiga não como virtude, mas como uma carência lamentável de acesso ao registro dos movimentos do pensamento e do eu interior (interior self), valorizando a exposição do que há de mais secreto como uma medida do que se espera da literatura, estabelecendo assim o império crescente da subjetividade na existência e na arte narrativa de forma indivisa.
A Parábola de Asmodeu e os Limites da Observação Externa
- A obra O Diabo Coxo de Lesage funciona como uma parábola da transição para a moderna observação literária, na qual o demônio Asmodeu, ao levantar os tetos de Madri para Cleofas, promete revelar os defeitos e os mais secretos pensamentos dos homens, mas acaba por expor apenas comportamentos externos, vícios universais e tipos caracterológicos na tradição de La Bruyère, onde a parte vale pelo todo e Madri pelo mundo, sem penetrar na verdadeira singularidade da consciência ou na intimidade inviolável, uma vez que a grelha de categorias morais utilizada é demasiado geral para capturar o indivíduo específico.
- Mesmo as incursões de Lesage nos sonhos ou nos pensamentos dos mortos não violam a intimidade profunda, pois revelam apenas preocupações mundanas e continuidades do estado de vigília sem enigmas ou perturbações, assemelhando-se à visão confusa e generalista que Santo Tomás de Aquino atribui às almas separadas, as quais, desprovidas de órgãos sensoriais e da inteligência angélica, apreendem o singular apenas em uma certa generalidade, demonstrando que ver o tipo humano não equivale a ver o homem em sua unicidade.
A Apocalipse do Romance e a Onisciência Narrativa
- A literatura posterior a Lesage opera uma transformação radical, deixando de apenas levantar telhados para erguer o teto da própria alma, violando o inviolável e revelando diretamente as intenções mais secretas e o murmúrio silencioso da consciência sem a mediação de demônios, constituindo assim a apocalipse do romance no sentido etimológico de revelação total, onde o novo leitor exige uma experiência do inexperienciável, ou seja, o acesso fictício à interioridade de outrem que lhe é vedado na realidade.
- A crítica de Virginia Woolf aos personagens de Walter Scott, alegando que estes só vivem quando falam e agem por falta de uma exploração de seus espíritos, embora injusta com o uso do estilo indireto livre pelo autor, ressalta a insuficiência moderna diante da condição humana real, onde só podemos conhecer as pessoas por suas palavras e atos, contrastando com a demanda romanesca moderna de ouvir os gritos interiores ouvidos apenas por Deus, como em Victor Hugo, ou as últimas preces mentais, como em Tolstoi.
- O fascínio pelo último instante e pela morte, explorado por autores como Ernest Hemingway e Tolstoi — este último capaz de dar a impressão de ter realmente passado pela morte segundo Charles du Bos —, leva o romance a violar a solidão final da personagem, instalando o leitor como testemunha intencional dentro da consciência agonizante ou mesmo dentro do sonho e da vida pré-linguística, como nas obras de Thomas Wolfe, ou ainda através da ironia trágica de Georges Simenon, onde o criminoso lamenta estar só a observar-se quando na verdade é perscrutado pelo leitor.
O Debate Teológico-Literário: Maritain e Mauriac
- A apropriação romanesca da onisciência divina gerou debates profundos, como o travado entre Jacques Maritain e François Mauriac; Maritain, em Três Reformadores, acusa escritores como Rousseau de ensinarem o olhar a comprazer-se nas meurtrissures secretas da sensibilidade individual, violando um segredo dos corações fechado aos anjos e aberto apenas à ciência sacerdotal de Cristo, uma profanação que Freud tentaria pela psicologia e os romancistas pela exposição espetacular da intimidade.
- François Mauriac, em O Romance, responde a essa inquietação defendendo que a vocação imperiosa do romancista moderno é justamente violar esse segredo, não por complacência, mas por um élan de conhecimento e aprofundamento que, seguindo o rastro de Dostoievski e Proust, busca a individualização radical e a compreensão do coração humano como um universo solitário, sustentando que olhar o humano sem nojo é uma postura cristã e que a verdadeira moral se sobrepõe à moral convencional.
Cardiognosia: O Atributo Divino e o Segredo do Coração
- A análise da pretensão do romance exige uma compreensão teológica do conceito bíblico de segredo do coração (ta krupta tes kardias), termo que designa o centro profundo da inteligência e vontade humanas, cuja penetração é atributo exclusivo da divindade, conforme atestado nos Salmos, em Jeremias, nas Epístolas Paulinas e nos Atos dos Apóstolos, justificando o neologismo kardiognosia para designar esse conhecimento imediato e total da intimidade que nem homens nem anjos possuem naturalmente.
- Santo Tomás de Aquino estabelece a distinção decisiva de que, embora anjos e homens possam conjecturar sobre os pensamentos do coração através de efeitos visíveis e sinais físicos, o acesso direto às volições e pensamentos no intelecto é vedado a qualquer criatura, sendo o interior da alma um santuário reservado a Deus, o Escrutador dos corações, o que torna a onisciência narrativa uma apropriação fictícia de uma prerrogativa estritamente divina.
- A profundidade e singularidade da interioridade humana têm origem teológica, pois é a relação com o Deus transcendente e pessoal que singulariza a criatura e aprofunda o abismo interior, tornando o segredo do coração o local onde se joga o destino eterno do indivíduo, uma concepção estranha à antiguidade pagã clássica, para a qual, como ilustrado por Platão, Luciano ou Eurípides, o interior era apenas um exterior oculto ou dissimulado, sem a densidade do segredo essencial.
O Abismo Agostiniano e a Moralidade da Intenção
- Santo Agostinho redefine a interioridade ao identificar o coração humano com um abismo impenetrável e incompreensível, onde reside uma profundidade de fraqueza ou força desconhecida até pelo próprio sujeito, como provado pela negação de São Pedro, estabelecendo que há algo no homem que nem o espírito do homem sabe, o que torna a direção de consciência e o autoexame tarefas intermináveis de decifração de intenções e ilusões.
- A crítica de Wayne Booth, ao considerar a omnisciência narrativa no Livro de Jó como um artifício que revela o que ninguém poderia saber na vida real, comete um anacronismo ao ignorar que, no contexto bíblico e antigo, a integridade definia-se por atos observáveis e não por móbiles secretos kantianos; foi o deslocamento do centro de gravidade moral do espaço público para o espaço íntimo inobservável, consumado na filosofia de Kant, que tornou necessária a informação sobre os móbiles secretos para a significação moral do relato.
A Omnisignificância e o Detalhe Revelador
- O romance moderno herda e metamorfoseia o tema cristão da omnisignificância, onde cada detalhe da criação ou da palavra divina possui sentido inesgotável, como defendido por Tertuliano e Agostinho; no romance, essa proliferação de detalhes, observada por J.P. Hunter, oscila entre o regime mimético do efeito de real, que simula a contingência, e o regime de omnisignificância, onde nada é fortuito e tudo revela o interior, seguindo a lógica de Balzac influenciada por Cuvier, na qual o meio material é representação do pensamento e o detalhe permite reconstituir o todo.
- A grande cidade moderna surge como o lugar por excelência da saturação de sentido e da proliferação de detalhes significantes, onde tudo é obra da intenção humana e cada aspecto visual pode ser interpretado como parte de um livro infinito, transformando também a percepção do mundo rural em algo exótico e romanesco através do olhar citadino, e estabelecendo o cenário onde a subjetividade confronta sua própria finitude e a multiplicidade das existências.
Modalidades de Invasão da Consciência
- A invasão da consciência no romance opera por diversas vias, desde a abordagem gradual através da descrição do meio e dos objetos, que funcionam como sedimentações da alma, até a instalação direta na interioridade através do estilo indireto livre, onde a percepção do mundo é filtrada pela amargura ou tédio da personagem, como na famosa descrição de Flaubert sobre Emma Bovary à mesa, onde a fumaça do cozido se funde ao asco da alma, eliminando a distinção entre detalhe externo e realidade interna.
- A humanização do mundo, entendida como a transformação da Terra em um meio totalmente explorado e signifiante, é condição de possibilidade para essa cardiognosia literária, pois onde o homem projeta sua representação em tudo, até a natureza selvagem torna-se objeto estético e espelho da interioridade, validando a descrição das coisas como prolongamentos do pensamento.
As Duas Potências da Cardiognosia e a Ilusão
- É necessário distinguir duas potências na cardiognosia romanesca: a primeira acessa a palavra interior e as percepções que a consciência tem de si mesma; a segunda atravessa esse aparecer para acessar o que a consciência esconde de si própria, seus móbiles profundos e ilusões, uma distinção que remonta à tradição espiritual do discernimento dos espíritos de François Guilloré e que se torna problemática quando se considera o papel do leitor, que é inevitavelmente levado a julgar as ilusões da personagem, tornando porosa a fronteira entre apenas mostrar a consciência e revelar sua verdade oculta.
- Apesar da indignação de Maritain, a modalidade própria do fictício (o como se) atenua a gravidade teológica da violação dos corações, permitindo que a literatura explore esses segredos como exercícios da imaginação e da compreensão humana, tarefa que este estudo se propõe a realizar focando primeiramente no monólogo interior em terceira pessoa e, em um volume subsequente, na apresentação oblíqua da consciência, reconhecendo as limitações impostas pela finitude do autor e a vastidão da produção romanesca moderna.
Ver online : Jean-Louis Chrétien
CHRÉTIEN, Jean-Louis. Conscience et roman. Paris: Éd. de Minuit, 2009.