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Pierre-Jean Labarrière – A condição e a medida
Quando a utopia se faz história
Fundamentação filosófica da condição e da medida na determinação dos objetos espirituais
- O mundo, na pluralidade das suas formas, constitui uma homenagem às potencialidades evidenciadas por uma lógica fundamental e pela sua potência germinativa, onde a figura de espaço e de tempo justifica o princípio ao mostrá-lo em ação no corpo histórico que este atribui a si mesmo.
- Dois conceitos articulados entre si, condição e medida, determinam este espaço e este tempo advindos e sempre em ato de devir, definindo o modo de existência dos objetos espirituais através de gestos estruturalmente presentes em todo processo de sentido, seja na ordem causal, na reversibilidade do discurso ou na comparação entre realidades e a ideia universal que as sustenta.
- A condição cobre um vasto campo que se estende de uma abrangência antropológica geral, referida como condição humana, até uma determinação lógica precisa de extensão universal; em contrapartida, a medida designa ordinariamente uma articulação do quantitativo a si mesmo ou o paradigma de uma conjunção entre qualidade e quantidade, atuando como instância mediadora e determinação interior da condição.
- Esta problemática põe em obra uma compreensão da temporalidade que envolve a relação com o passado, a geração de um futuro e a qualificação do presente simultaneamente como instância de totalização e princípio de diferenciação.
A Divina Comédia de Dante como itinerário da condição humana
- A obra de Dante Alighieri retrata uma viagem iniciática através de diversas formas, temporais e eternas, da condição humana, configurando um agenciamento que desenha uma direção e um movimento, onde o título de Comédia justifica-se ultimamente pelo fato de que, ao termo do périplo, todas as coisas acabam bem.
- A tripartição da obra em Inferno, Purgatório e Paraíso remete essencialmente a uma divisão binária, contrastando o afundamento sem retorno nos abismos obscuros do Inferno com a formidável impulsão ascensional que atravessa os cânticos reunidos do Purgatório e do Paraíso, embora esta dualidade não seja absoluta devido à complexidade das figuras que habitam essas regiões.
- A ruptura entre os mundos não impede uma porosidade ou inclusão recíproca, simbolizada pelo fato de uma figura terrena mover-se entre as do além e com elas entrar em comércio de linguagem, sugerindo que a primeira fronteira da morte tem por função permitir o estabelecimento e a resolução de uma segunda fronteira, a da escrita.
- A condição da escrita permite a Dante testar a distância e a proximidade entre o mundo do tempo e o da eternidade, operando uma revelação decisiva onde a verdade eterna dos seres já se encontra presente no filigrana daqueles que vivem a condição terrestre, de tal modo que o mundo do poema passa a posar como a medida do outro mundo.
A inter-relação entre os mundos e a inversão da perspectiva temporal
- A Divina Comédia apresenta-se sob a tripla razão de poema autobiográfico, panfleto político e diatribe religiosa, onde a escrita desempenha o papel de uma catarse que permite ao homem, no seio da sua condição mortal, despertar para as dimensões de eternidade ocultas na ação do tempo.
- O conceito de condição enriquece-se ao articular a face humana e mortal com a face escatológica e imortal, operando um renversement de perspectiva onde o termo cronologicamente segundo afirma a sua preeminência lógica sobre o primeiro, apresentando o mundo do além como instância de revelação e medida deste mundo.
- Esta situação estabelece uma analogia com a busca do tempo perdido de Proust, onde o futuro absoluto se anuncia como origem e causa, ou com o pensamento de Mallarmé sobre antecipar a própria morte, sugerindo que o homem se descobre estreitamente medido pelo conjunto das condições da existência temporal e, fundamentalmente, pela memória daquilo que deve devir.
- A consciência da morte já em ação expressa-se na poesia de Anna Akhmatova, que interpela a morte como uma realidade inevitável e simples, capaz de assumir qualquer face, indicando que o homem, embora elevado pela pensamento grego à posição de medida de todas as coisas, encontra-se ele próprio medido pelas suas condições existenciais.
A dialética da medida e da condição na lógica e na mística
- Jean de la Croix utiliza a imagem do pássaro solitário para simbolizar as dimensões universais da condição humana e da alma contemplativa, enumerando cinco condições: elevar-se ao mais alto, não sofrer companhia, plantar o bico no vento, não ter cor ou determinação fixa e cantar suavemente.
- A liberdade simbolizada pelo pássaro encontra-se limitada, e nesta limitação reside o fundamento da sua efetividade; a medida é, portanto, simultaneamente interior e exterior, determinada pela natureza do ser e pelas circunstâncias da sua realização, conforme a análise hegeliana das determinações qualitativa e quantitativa do Ser.
- Segundo Hegel, a determinação qualitativa é idêntica ao ser e não admite distância, enquanto a determinação quantitativa separa a determinação do ser, permitindo a mudança sem alteração da essência da coisa; a qualidade é logica e naturalmente primeira devido à sua indeterminação fundamental, sendo a quantidade a qualidade que se tornou negativa ou indiferente.
- A medida nasce da identidade reflexiva entre qualidade e quantidade, implicando uma anterioridade recíproca e constituindo uma exterioridade que se relaciona consigo mesma; é o ser mensurado que se afirma como mensurante e automensurante, dando forma àquilo que a tradição inclui sob as noções de relação e modalidade.
A medida como relação de relações e a contradição essencial
- A medida eleva o espírito até à realidade pensada do igual e do desigual em si, não como meras relações quantitativas ou qualitativas, mas implicando uma identidade da identidade e da não-identidade; a medida é o meio termo de um silogismo que reúne o sujeito na sua liberdade infinita e o objeto no seu surgimento fenomenal.
- Ao medir duas realidades, o mecanismo mental atenta simultaneamente para o seu recobrimento possível e para a sua distância estrutural, estabelecendo um relatório de relatórios onde a determinidade de uma coisa é o seu rapporto consigo mesma; quando este nível se aprofunda até à essência, põe-se em jogo uma verdadeira contradição ou birreflexividade dos termos.
- Na estrutura da obra de Dante, o Inferno prende-se unilateralmente a uma determinação qualitativa de homogeneidade e repetição, enquanto o Purgatório e o Paraíso partilham uma positividade definida pela relação qualidade/quantidade sob modos diferentes: o primeiro sob a modalidade da medida e o segundo sob a da essência.
- O Purgatório surge como o mundo da mudança, da metamorfose interior e da arte, ritmado pela alternância e habitado pela música, onde a medida se revela na conjunção entre o esforço de ascensão e a gravidade da paixão terrestre; a condição humana encontra-se duplamente medida pelas circunstâncias limitantes e pelo dinamismo interior da personalidade.
Análise lógica das categorias de condição e causa
- A condição distingue-se da causa ao remontar do efeito produzido para a causa antecedente; a condição necessária é aquilo sem o qual o efeito não ocorre, enquanto a condição suficiente implica um nexo tal que, posada a condição, o condicionado é necessariamente afirmado.
- A distinção entre condição de possibilidade na lógica transcendental de Kant e condição de efetividade em Hegel é capital: a primeira exige o esclarecimento do modo de organização do espírito e o consentimento à antecedência dos conteúdos sensíveis; a segunda apreende a realidade a partir da identidade em devir entre necessidade e liberdade.
- Para Hegel, a realidade só é reconhecida como efetiva quando põe as suas próprias condições interiores e exteriores numa antecedência mútua; a contradição existencial é uma realidade processual onde interior e exterior são simultaneamente condicionados e condicionantes, quebrando a univectorialidade da determinação.
Estética, estilo e estrutura nas obras poéticas e místicas
- A figura lógica da contradição positiva ilumina a inteligência das figuras poéticas e da arte, onde o artista articula a ideia e a obra num jogo de determinação mútua entre o dinamismo produtor e as circunstâncias do agir, utilizando a linguagem como vetor de sentido original.
- A questão do estilo revela dois tipos genéricos de organização do discurso: o clássico, que joga com o equilíbrio, a simetria e a organização centrada das massas; e o barroco, que implica um movimento em crescimento contínuo e uma disposição linear orientada para uma figura terminal dramática.
- A análise estrutural do Cântico Espiritual de Jean de la Croix revela uma forma clássica com um ponto de viragem significativo na estrofe XIII, onde a busca inquieta se inverte subitamente em reencontro e paz; já a Divina Comédia de Dante apresenta uma composição barroca repetida em cada uma das suas três partes e na sua totalidade, caracterizada por uma progressão ininterrupta.
- Na mística de Mestre Eckhart, Deus e o homem condicionam-se reciprocamente num jogo relacional fundado na identidade de origem e no desapego (abegescheidenheit), onde o homem deve tornar-se igual a Deus através de um retorno imóvel à origem.
- O Purgatório, na economia do poema de Dante, configura-se como o termo médio obrigado e a peça mestra do poema, sendo o lugar de todos os dinamismos e da tensão em direção a um termo que, como uma brisa anunciadora, já habita e mede a condição caminhante.
Ver online : Pierre-Jean Labarrière
LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Poïétiques: quand l’utopie se fait histoire. Paris: Presses universitaires de France, 1998.