Página inicial > Hermenêutica > René Alleau – A Advinhação e a interpretação simbólica do cosmos
A ciência dos símbolos
René Alleau – A Advinhação e a interpretação simbólica do cosmos
O Tipo
A HERMENÊUTICA ORACULAR E ADIVINHATÓRIA
-
A universalidade da interpretação da língua dos deuses manifesta-se em todas as tradições religiosas e iniciáticas, exigindo que a casta sacerdotal atue como um órgão mediador fundamental entre a humanidade e as divindades, investida da autoridade para reunir, conservar e explicar instruções, avisos e presságios, uma função que reflete historicamente a estratificação e a especialização das atividades de culto, embora remonte a uma herança pré-histórica da economia da caça onde todos os consagrados tinham acesso a técnicas adivinhatórias.
-
A persistência dos rituais adivinhatórios arcaicos verifica-se na continuidade entre a extispicina mesopotâmica e as práticas dos astecas do século XV, povo que conservava traços da sua antiga condição de caçadores, tal como descrito por Sahagun no Codex Florentinus, obra que sublinha a centralidade dos presságios na vida quotidiana tanto dos indivíduos comuns como do soberano.
-
A materialização profética na história asteca evidencia-se no caso de Nezahualpilli, soberano de Texcoco, que, antes da sua morte em 1516, teve conhecimento através dos seus sacerdotes-adivinhos da chegada iminente de estrangeiros destinados a conquistar o vale do México, uma previsão corroborada por prodígios naturais inquietantes observados durante a cerimônia do Fogo Novo em 1507.
-
Os sinais sinistros que precederam a invasão espanhola incluíram a aparição noturna de uma língua de fogo a leste durante um ano, incêndios espontâneos no templo de Huitzilopochtli e no santuário de Xiuhtecutli, a agitação inexplicável das águas do lago Texcoco e a ressurreição temporária da irmã de Moctezuma, que relatou visões dos futuros destruidores do império.
-
A manifestação de monstros e anomalias biológicas culminou na apresentação ao soberano de uma ave cinzenta semelhante a um grou, possuidora de um espelho circular na cabeça que funcionava como instrumento catóptrico de adivinhação, no qual Moctezuma pôde observar o céu estrelado e, subsequentemente, um exército de homens armados montados em veados, visão que se dissipou com a chegada dos sacerdotes.
-
A hermenêutica de Moctezuma impôs-se pela lógica interna do mito, identificando os eventos como o retorno de Quetzalcoatl no ano Uma-Cana para reconquistar o território de Tezcatlipoca, sendo que os cálculos astrológicos fixaram o início desse ciclo em 22 de abril de 1519, data que coincidiu com exatidão matemática com o desembarque de Cortez perto de Vera Cruz.
A HERMENÊUTICA ADIVINHATÓRIA MESOPOTÂMICA
-
A primazia da adivinhação na cultura babilônica consubstancia-se na aruspicina, o exame do fígado, pulmões e cólon de animais sacrificados, uma prática que antecedeu a astrologia e cujas raízes prováveis residem nos rituais mágicos das sociedades pré-históricas de caçadores.
-
A complexidade técnica da aruspicina babilônica, analisada por Jean Nougayrol, revela um sistema exaustivo onde nenhum detalhe visceral era negligenciado, exigindo um vocabulário funcional de seis mil sinais distintos, cuja especificidade levou à criação de uma língua técnica gravada em livros de tijolos, permitindo a hipótese de que a própria escrita surgiu como uma simplificação dos sinais adivinhatórios arcaicos.
-
A metodologia dos arúspices operava através de uma dupla polivalência dos sinais, aplicando uma grelha de categorias que incluía presença, estado e forma — muitas vezes resumida por silhuetas de referência —, cruzada com o objetivo da consulta e o estatuto social do consultante.
-
Os dois métodos interpretativos consistiam ou na pura observação qualitativa de anomalias evidentes ou numa consulta ritualizada onde os sinais eram despojados do seu valor qualitativo para se tornarem valores algébricos positivos ou negativos, cuja soma final determinava a resposta à questão apresentada.
-
As regras de interpretação espacial e numérica estabeleciam que a direita correspondia ao consultante e a esquerda ao inimigo, implicando que um sinal favorável à esquerda beneficiava o inimigo e prejudicava o consultante, enquanto a regra do número ditava que dois sinais análogos confirmavam um significado, mas três o anulavam.
-
A dimensão psicológica e linguística da adivinhação, notada por Nougayrol, aponta para a importância das associações fonéticas e dos trocadilhos na interpretação, sugerindo que o deslizamento de imagens no inconsciente e a perturbação da linearidade temporal no sonho favorecem faculdades paranormais, onde a distinção entre o acontecido e o sonhado se dilui em função da realização do desejo ou do temor.
-
A racionalização tecnológica baseava-se na conservação de presságios históricos e no princípio de que o mesmo sinal precederia o mesmo acontecimento, estendendo a analogia à estrutura do tempo, embora a ambiguidade inerente à escrita cuneiforme e aos sinais hepatoscópicos exigisse sempre um contexto para a leitura correta, reafirmando que apenas a divindade possui a capacidade de leitura direta e desimpedida.
ENIGMAS E ORÁCULOS ANTIGOS
-
A definição de enigma, segundo Littré e Aristóteles, remete para a descrição de objetos através de termos obscuros e encobertos, derivando etimologicamente do grego ainigma e ainos, e associando-se semanticamente à linguagem das Ménades e dos possuídos, o que confere ao enigma um caráter sagrado primordial que antecede o seu uso profano.
-
A natureza do oráculo tradicional exige uma interpretação sagrada, distinta da alegoria simples, sendo os sacerdotes e sacerdotisas, como a Pítia de Delfos, os únicos intérpretes autorizados, título que se estendeu historicamente a outras profetisas vulgarmente designadas por sibilas.
-
A catalogação das sibilas pelos historiadores antigos identifica dez figuras principais: a de Delfos, a Eritreia (que previu a queda de Troia), a Ciméria, a de Cumas (vendedora dos livros a Tarquinio), a de Samos, a Helespôntica, a Líbia, a Pérsica ou Caldeia (filha de Berosio, indicando tradição mesopotâmica), a Frígia e a Tiburtina.
-
O episódio da aquisição dos Livros Sibilinos por Tarquinio o Antigo ilustra o valor inestimável da profecia, onde a recusa inicial do rei levou à destruição ritual de seis dos nove rolos pela sibila de Cumas, culminando na compra dos três restantes pelo preço original e na criação de um corpo de dignitários para a sua guarda no Capitólio.
-
A trajetória trágica das coleções proféticas romanas inclui a destruição dos livros originais no incêndio de 84 a.C., seguida por uma tentativa de reconstituição através de embaixadas à Grécia e à Ásia que reuniram mil versos, os quais foram novamente consumidos pelas chamas sob Nero em 68 d.C., restando apenas compilações tardias de autenticidade duvidosa.
A DECIFRAÇÃO DOS SINAIS DO MUNDO
-
A distinção ciceroniana no De divinatione separa a adivinhação intuitiva, fruto da inspiração de videntes, da adivinhação indutiva ou conjectural, baseada na observação técnica de sinais, sendo que esta última predominou na civilização etrusca e romana, em contraste com a importância dos oráculos na Grécia.
-
A religiosidade etrusca caracterizava-se por ser uma revelação contida nos Libri etrusci, divididos em livros sobre a aruspicina, sobre a interpretação e expiação dos raios, e sobre os rituais relativos ao destino e à vida além-túmulo.
-
A ciência dos raios ou Kauronoscopia constituía uma teologia exata e complexa, onde os arúspices detinham o poder não só de interpretar, mas de atrair ou desviar os relâmpagos, mantendo a sua reputação até ao século V da nossa era, quando propuseram proteger Roma de Alarico.
-
A cosmologia etrusca dividia o céu em dezesseis setores a partir do eixo Norte-Sul, onde o Norte sediava as divindades superiores, o Oriente (esquerda do observador voltado para o Sul) emitia sinais favoráveis associados à luz, e o Ocidente (direita) trazia presságios funestos associados às trevas, uma estrutura que reflete uma topologia sagrada do além e do país dos mortos sugerida por Georges Dumezil.
-
A evolução do sistema teológico etrusco mostra uma sobreposição de influências, onde a divisão original em dezesseis regiões baseada num simbolismo quaternário arcaico foi posteriormente mesclada com o sistema astrológico de doze deuses e sete planetas, conforme relatado por Martianus Capella.
-
A premissa fundamental da teologia etrusca, segundo Seneca, é que os raios não ocorrem por acaso, mas são gerados especificamente para anunciar o futuro, constituindo uma linguagem divina intencional que instrui os homens sobre o destino, exigindo uma hermenêutica baseada na analogia entre o natural e o sobrenatural.
-
A interpretação fulgural variava conforme a intenção do observador — conselheira, autoritária ou admonitória — e dependia da identificação da divindade, destacando-se a hierarquia de Júpiter, que podia lançar o primeiro tipo de raio sozinho, mas necessitava consultar os deuses Consentes para o segundo e os misteriosos deuses Involuti para o terceiro e mais destrutivo tipo.
-
O papel do arúspice etrusco combinava teologia e magia para purificar o rastro material dos deuses, enterrando ritualmente os raios e santificando o solo atingido, o qual se tornava intocável e inspirava um terror sagrado nos romanos, conforme atestado por Horácio e Lucano.
AS RELAÇÕES ANALÓGICAS ENTRE OS SECTORES DO COSMOS
-
O pensamento chinês integra a adivinhação na estrutura cosmológica e metafísica através do Yi King, cujos sessenta e quatro hexagramas derivam de oito trigramas primitivos, refletindo um sistema de classificação do universo em espaço-tempo (Yu-yeu) onde as estações correspondem aos orientes, cores, números e órgãos humanos.
-
A teoria dos cinco elementos (Wu hing) descreve energias sutis que conectam o macrocosmo ao microcosmo, posicionando o Homem — especificamente o rei ou adivinho — como intermediário harmônico entre o Céu e a Terra.
-
A hipótese de que o Yi King representa um código universal baseia-se na sua capacidade de abstração e economia de pensamento, utilizando uma lógica binária que difere da ocidental e que tem atraído a atenção de matemáticos modernos.
-
As técnicas arcaicas de escapulomancia e piroscapulomancia, que envolvem a leitura de fissuras em ossos queimados, revelam uma conexão cultural profunda entre a China antiga e as civilizações de caçadores da Ásia setentrional e da América do Norte, como os Naskapi, sugerindo uma origem comum ligada ao culto do urso e à economia de caça.
-
A transição para o uso da carapaça de tartaruga na dinastia Shang e Zhou marca uma evolução simbólica, onde a parte ventral chata representa a terra e a quadrada, sendo preparada ritualmente com o sangue de bois e perfurada para que o fogo a faça "falar" através de fissuras em forma de T.
-
A complexidade ritual descrita por Tchuang-tsé e interpretada por Kaltenmark e Granet associa o número de perfurações e a disposição das fissuras à organização hierárquica das confrarias e à circulação dos ventos, culminando na suspensão necessária para que a ordem do universo se estabeleça através do não-agir (wu-wei).
-
A numerologia das hastes de aquileia exposta no Hi-tse utiliza a subtração de uma haste do total de cinquenta para representar a Unidade suprema, manipulando as quarenta e nove restantes para simbolizar as interações entre o Yin, o Yang e as três potências, demonstrando que a adivinhação chinesa visa a integração simbólica na totalidade eficaz do princípio transcendente.
Ver online : René Alleau
ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.