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Agostinho, o Leitor
Brian Stock – Aprendendo a ler
Confissões de Agostinho I-9
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A Aprendizagem da Leitura, a Memória e a Infância
- A narrativa de Agostinho sobre sua experiência como leitor inicia-se com uma oração e uma reconstrução analítica de como aprendeu a falar, introduzindo temas centrais das Confissões como linguagem, memória, tempo, pecado e ascensão espiritual, estabelecendo a confissão simultaneamente como um ato de louvor a Deus e uma obra de literatura dirigida aos humanos.
- A origem da capacidade de falar e a composição do discurso autobiográfico constituem um tema único que se inicia na primeira das seis idades tradicionais do homem, onde a ignorância de Agostinho sobre sua própria infância ilustra uma característica geral das crenças sobre o passado, exigindo que se deposite confiança em autoridades externas, como pais e amas, para obter conhecimento sobre eventos não recordados.
- A ausência de memória beneficia o infante na medida em que, embora culpado do pecado original, ele não possui recordação da pecaminosidade, sendo motivado pelo desejo de satisfazer necessidades físicas e isento das consequências éticas da comunicação humana até o momento em que aprende a falar e adquire o poder de usar palavras para o bem ou para o mal.
- A educação da alma depende da aquisição da fala, ocorrendo em três fases sobrepostas: instinto, gesto e comunicação verbal; o estágio pré-consciente limita-se a respostas emocionais rudes e a uma reciprocidade onde o bem flui através das amas provindo de Deus, sem necessidade de comunicação verbal, sendo a visão o sentido mais utilizado para expressar autointeresse.
- A fase gestual introduz a comunicação imaginária e uma linguagem de pensamento pré-verbal, onde o gesto conectado a uma audiência representa um estágio transicional de aprendizado que não é totalmente transcendido na idade adulta, mantendo-se uma conexão entre a aquisição da fala e a mimese, conforme observado também por teóricos contemporâneos sobre a competência linguística e a linguagem pré-fala.
- O aprendizado das palavras não se deu por um método formal, mas através do acesso à memória e da observação dos movimentos corporais e expressões faciais dos adultos, associando sons a objetos e intenções mentais, resultando na capacidade de falar através da conexão entre visão, audição, recordação e hábito, inserindo a criação de significado verbal na interação social.
- A intencionalidade é central para a explicação do desenvolvimento infantil, manifestando-se inicialmente na distinção entre a vontade divina incondicional e as intenções humanas condicionais, evoluindo para a capacidade de distinguir entre mundos factuais e não factuais, e o desenvolvimento de uma personalidade moral através das primeiras expressões dialógicas de vontade.
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Educação Letrada, Disciplina e a Ética da Interpretação
- A segunda fase da educação envolve a aquisição de habilidades letradas em Tagaste e Madaura, onde Agostinho distingue entre a atividade de ler e o conteúdo dos textos, diferenciando a leitura por prazer estético da leitura para autoaperfeiçoamento ascético, e questionando o valor das palavras faladas versus textos escritos como modelos para a compreensão da lei divina.
- Agostinho apresenta uma visão crítica da educação liberal típica do período pós-ordenação, contrastando os valores materialistas e a busca por mobilidade social de seus pais com uma ética do bem viver, notando que, embora talentoso, carecia de amor pela leitura escolar e obedecia apenas por coerção física, dedicando-se a jogos e espetáculos que excitavam uma curiosidade ociosa e perniciosa.
- A distinção fundamental entre o estético e o ascético na leitura sugere que a resposta estética vê o prazer do texto como um fim em si mesmo, subordinando a ética ao desfrute, enquanto a resposta ascética utiliza o texto como meio para atingir um fim superior, adiando o prazer até que imperativos éticos sejam satisfeitos, transformando a leitura de uma errância em uma peregrinação.
- A crítica à mimese e às ficções literárias revela que as diversões literárias, como a Eneida de Virgílio e as obras de Terêncio, apenas alimentavam a vaidade e a luxúria, criando um cenário onde situações irreais eram tomadas como realidade e a palavra falada era desvinculada de qualquer contexto moral genuíno, sendo sustentada apenas pela posição que o orador defendia no momento.
- A noção de regra ou lei emerge da reflexão sobre a leitura, onde convenções ortográficas exemplificam acordos humanos fixos análogos às leis divinas que restringem a curiosidade, sugerindo que a consciência humana informada pela lei de Deus, a scripta conscientia, atua como um tipo superior de regra interior, contrastando a transitoriedade das palavras faladas com a permanência das Escrituras.
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Autoaperfeiçoamento, Audiências e o Espetáculo Teatral
- A narrativa evolui para o tema do autodomínio e a influência negativa da pressão dos pares durante a adolescência, exemplificada no roubo das peras, onde a mimese e o desejo de criar narrativas de vida através de palavras e imagens revelam como os seres humanos constroem os mundos que desejam habitar, imitando modelos que sabem ser superiores às suas próprias mentes limitadas.
- A análise do teatro em Cartago no Livro 3 aborda a passividade da audiência e o paradoxo de sentir prazer na dor fictícia, argumentando que as tragédias evocam emoções autênticas baseadas em eventos inautênticos, criando um nível duplo de duplicidade onde uma ficção dá origem a outra e a paixão sentida torna-se o objeto do desejo em vez do evento representado.
- Agostinho valida a realidade da resposta emocional à ficção, observando que, embora as peças não sejam verdadeiras, também não são falsas da mesma maneira que uma mentira intencional, pois estabelecem a verdade de uma forma ao estabelecer a falsidade de outra, operando em um mundo de faz de conta que gera experiências reais na audiência e cria uma comunidade temporária entre atores e espectadores.
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O Hortensius de Cícero e a Conversão à Filosofia
- A conversão à filosofia ocorre aos dezenove anos através da leitura do Hortensius de Cícero, uma obra que alterou fundamentalmente o afeto e as prioridades de Agostinho, transformando a busca por sucesso retórico em amor pela sabedoria, configurando um exemplo raro na antiguidade de uma crise de identidade juvenil resolvida por uma conversão provocada exclusivamente por um livro.
- A experiência de leitura do Hortensius distingue-se por não focar no estilo ou na retórica, mas na sabedoria atemporal, atuando como um despertar moral e cognitivo que é visto retrospectivamente com ambivalência por não conter o nome de Cristo e por não ter levado imediatamente à humildade necessária para compreender as Escrituras, as quais Agostinho rejeitou inicialmente por considerar o estilo inferior ao ciceroniano.
- Estudiosos como Goulven Madec notam que a influência doutrinária da obra continuou ao longo da vida de Agostinho, e Harald Hagendahl observa que a maioria das citações ocorre nos diálogos de Cassicíaco; no entanto, nas Confissões, a leitura atua menos como um estudo textual e mais como um símbolo de interioridade desperta, onde o texto implanta a ideia de uma autoridade filosófica na experiência do leitor.
- A narrativa sugere uma distinção entre o Hortensius ficcional do diálogo de Cícero, defensor da sabedoria filosófica, e o Hortensius histórico, que abandonou os ideais juvenis, permitindo a Agostinho utilizar a obra como um ponto de transição necessário na evolução para uma filosofia cristã, onde a interpretação guiada apenas pela razão e pelo refinamento estético se revela incapaz de conduzir o leitor à verdade final sem a graça divina.
Ver online : Brian Stock
STOCK, Brian. Augustine the reader: meditation, self-knowledge, and the ethics of interpretation. Cambridge (Mass.) London: Belknap press of Harvard university press, 1996.