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Depois de Agostinho
Brian Stock – Introdução a "Depois de Agostinho"
O Leitor meditativo e o Texto
Durante a Antiguidade tardia e a Idade Média, os exercícios espirituais que estavam associados ao autoaperfeiçoamento eram normalmente baseados em extensos períodos de leitura e meditação. Como consequência, a reformulação dos valores éticos nesses exercícios tornou-se parte da experiência interior do sujeito. O presente volume é uma exploração desse tema.
A figura que aparece com maior frequência nestas páginas é Agostinho de Hipona. Isso é compreensível, pois ele é o escritor mais prolífico e influente sobre leitura entre a Antiguidade e o Renascimento. É claro para todos os que estudaram Agostinho que seus escritos sobre o tema têm implicações importantes. Mas ele recusou-se a explicitá-las em detalhe, talvez deliberadamente, e, como resultado, suas afirmações foram ocasionalmente citadas por lados opostos em debates medievais que envolviam princípios de interpretação, como o foram por Berengario e Lanfranco durante a controvérsia eucarística. Pode-se argumentar que pensadores medievais e renascentistas foram às vezes sistemáticos demais em sua apresentação das opiniões de Agostinho sobre leitura e interpretação. Ele não escreveu um tratado sobre o tema como o Didascalicon de seu admirador do século XII, Hugo de São Vítor. Sua relutância em sintetizar suas opiniões sobre outros temas importantes, como os sacramentos, sugere que ele teria sido cético em relação a qualquer tentativa de reunir suas afirmações sobre leitura como uma teoria formal. Contudo, apesar do caráter assistemático de seus escritos sobre o assunto, ele permaneceu o ponto de referência ao qual escritores posteriores invariavelmente retornaram em sua busca pelas raízes dos problemas relativos à leitura e à interpretação. Eles ficaram fascinados por sua história de como ele examinara minuciosamente as doutrinas das antigas escolas de filosofia em seu esforço para defender a leitura atenta da Bíblia como fundamento para a vida cristã.
A abordagem da leitura que ele desenvolveu em seus vários escritos aparece principalmente em sua filosofia da linguagem, em seu método de interpretar a Bíblia e em seu relato pessoal de sua educação espiritual.
Sua filosofia da linguagem é essencialmente um modo de relacionar palavras e coisas por meio de signos. Como os signos podem ser falados ou escritos, as mesmas regras aplicam-se, em princípio, à comunicação por meio da fala e da leitura. Nessa abordagem dupla do assunto, Agostinho difere de pensadores da Antiguidade, por exemplo Aristóteles, cujo influente De Interpretatione trata sobretudo da linguagem falada. Agostinho refletiu a preocupação antiga com a fala em seus primeiros escritos sobre o assunto, De Dialectica e De Magistro; no entanto, quando passou da filosofia ao estudo da Bíblia em De Doctrina Christiana, seus interesses concentraram-se na linguagem escrita. O conceito de leitor tornou-se associado à interpretação de signos escritos e, sob a influência de Plotino, aos modos de contemplação que se seguiam à experiência auditiva ou visual da leitura. Nos sermões, comentários e tratados teológicos escritos após sua conversão, leitura e pensamento são atividades estreitamente relacionadas.
Agostinho incorporou suas opiniões sobre leitura e interpretação ao seu retrato de si mesmo em seus primeiros anos nas Confissões. No livro 1 ele relata como aprendeu a falar na infância e a ler e escrever durante a adolescência. Depois das faltas juvenis do livro 2, ele reaparece no livro 3 como um leitor sério da antiga filosofia, de tratados maniqueus e (ao menos de modo tentativo) da Bíblia. O período subsequente, descrito nos livros 4 a 7, marca sua transição para o campo da interpretação sob a orientação de Ambrósio, bem como seu abandono do diálogo oral, com o qual experimentou em Cassiciaco até 386–387, em favor das formas escritas de discurso nas quais a filosofia normalmente aparecia na Antiguidade tardia. A narrativa desses anos o retrata como um estudante que progride de uma infatuacão juvenil com a literatura pagã para uma apreciação madura dos sentidos literal e espiritual da escritura. Os capítulos finais da história têm lugar nos livros 8 e 9, quando ele é convertido à vida religiosa por meio de um livro e experimenta uma visão do paraíso dos eleitos, onde a comunicação perfeita ocorre sem a necessidade de palavras. Assim, ele inicia a autobiografia com um tipo de falta de fala e a conclui com outro.
Agostinho fez uma jornada de autodescoberta, mas, em contraste com outros autores antigos, foi uma jornada na qual a figura do filósofo foi complementada pela do leitor reflexivo. Nas Confissoes essa figura contemplativa dedica-se à leitura de livros e à releitura de uma narrativa de vida por meio da memória. As lições da filosofia são aprendidas por meio da leitura; em seguida, são aplicadas à reforma ou, como alguns prefeririam, à reescrita de uma vida pessoal. Agostinho deixou a seus próprios leitores a transcrição dessa experiência nos livros narrativos das Confissões, sem dúvida a fim de encorajá-los a tentar por si mesmos seu método de conversão. Muito provavelmente ele não teria adotado essa solução para o problema socrático do autoexame se não tivesse sido um pensador cristão. A maneira pela qual uniu o progresso da alma ao tema da passagem do corpo através do tempo histórico foi grandemente devedora da doutrina cristã da encarnacão. A vida individual tornou-se, assim, o cenário para a reencenação do drama bíblico da alienação e do retorno: uma releitura virgiliana da parábola do filho pródigo contra o pano de fundo do neoplatonismo plotiniano.
A ênfase de Agostinho no leitor reflexivo ofereceu igualmente uma nova abordagem ao pensamento ético, alguns de cujos aspectos são discutidos no capítulo 2. Ele não apenas pediu a seus leitores que considerassem a filosofia como um modo de vida, como haviam feito outros pensadores helenísticos como Epicteto, Sêneca e Marco Aurelio: sugeriu que a imaginação literária ou artística de seus leitores poderia desempenhar um papel em sustentar esse modo de vida. Certamente, na época em que escreveu as Confissões, entre 397 e 401, ele havia rejeitado formalmente a literatura pagã e a filosofia antiga como guias para o pensamento ético, a menos que suas doutrinas harmonizassem com os ensinamentos da Bíblia. Muito antes dessa época, em 386–387, ele havia adotado uma versão modificada da opinião platônica de que as criações literárias e artísticas são enganosas. Durante o mesmo período, também elaborou uma abordagem essencialmente negativa da linguagem como guia para compreender a realidade.
Contudo, se manteve essas reservas na teoria, havia-as abandonado na prática quando iniciou sua autobiografia. Os livros narrativos das Confissões são ricos em invenções literárias, muitas delas derivadas de sua leitura atenta de textos clássicos. O uso da literatura para instrução ética por meio da Bíblia foi incorporado ao programa interpretativo de De Doctrina Christiana, iniciado aproximadamente na mesma época. Agostinho fez questão de salientar que a Bíblia persuade seus leitores tanto por suas doutrinas quanto por sua eloquência. Seus primeiros estudos de literatura bíblica em oposição ao maniqueísmo ensinaram-lhe igualmente o valor da técnica hebraica de rejeitar imagens externas, como um tipo de idolatria, ao mesmo tempo que advogava a recriação interior de imagens em narrativas religiosas em um esforço para remodelar o comportamento.
Ele acreditava que nossa perspectiva moral é condicionada pelo contexto literário no qual situamos afirmações éticas, bem como pela interpretação dessas afirmações dentro de gêneros filosóficos reconhecíveis. Ele não tinha certeza de que qualquer um desses gêneros pudesse alcançar conclusões defensáveis apenas por meio do discurso. Ele imaginava os participantes de seus primeiros diálogos como se tivessem lido algumas diretrizes de comportamento antes de entrarem em uma conversa sobre problemas éticos. Como resultado, seus estudantes assumem que compartilham algumas ideias sobre as questões em discussão antes que a conversa se inicie. Essas opiniões podem diferir, mas os participantes reconhecem que têm em comum essa experiência interior; e persuadem-se de que esse conhecimento compartilhado é mais certo do que as conclusões a que podem chegar apenas pelo raciocínio verbal. É a relação problemática entre essa interioridade e as formas exteriores de discurso que altera o contexto filosófico no qual as questões éticas antigas são formuladas nos escritos de Agostinho. O primeiro capítulo dos Solilóquios chama a atenção para a tenuidade dessa ligação quando Agostinho diz a seus leitores que não tem certeza se a voz da Razão com a qual entra em discussão provém de dentro ou de fora de sua mente.
Autores medievais transformaram e ocasionalmente discordaram dos métodos de autoanálise empregados por Agostinho. Algumas ilustrações da linguagem e da literatura medievais do eu encontram-se nos capítulos 4 e 5. Durante a Idade Média houve mais escrita autobiográfica do que na Antiguidade, ao menos mais que tenha sobrevivido, mas não é possível falar de “autobiografia” como um gênero literário definido. Em contraste, havia uma riqueza de escritos sobre o eu que ofereciam alternativas literárias às afirmações filosóficas e religiosas herdadas sobre o tema, bem como aos gêneros medievais padronizados, como tratados alegóricos sobre as virtudes e os vícios. O crescimento do interesse pelo eu foi sustentado pelo interesse crescente na filosofia linguística das intencões. Em Agostinho a expressão de intencões pela linguagem era geralmente subsumida sob o problema da vontade, ao passo que em autores medievais posteriores a Anselmo e Abelardo a intencionalidade linguística emergiu como um tema autônomo no estudo das formas de discurso, em grande parte devido à influência de Aristóteles e Boécio. Um ramo dessa atividade preocupava-se com a análise das intencões verbais de Deus tal como expressas nos escritos bíblicos. Um desenvolvimento paralelo uniu a filosofia da intencionalidade linguística aos primeiros estágios do problema moderno do individualismo.
Uma das obras do período medieval tardio que retoma a questão da autodefinição literária é o Secretum de Petrarca, que é o tema do capítulo 5. Nesse diálogo Franciscus, expressando as opiniões de Petrarca, entra em uma discussão com uma recriação do Agostinho histórico sobre diversas questões éticas, entre elas o status da autoria e da autorrepresentação literária. Augustinus, apresentado como um monge medieval, repreende Franciscus por não viver à altura de seus ideais de outro mundo, enquanto Franciscus tenta, nem sempre com sucesso, idealizar seu amor terreno por Laura e justificar sua autoria do Canzoniere. Augustinus e Franciscus evidentemente incorporam diferentes aspectos do retrato literário que Petrarca desejava deixar à posteridade. A deusa Verdade, em cuja presença seu debate ocorre, pode ser identificada com o leitor ideal do Secretum, que é capacitado por meio de sua discussão a examinar diferentes posições éticas sobre o tema da leitura e a perguntar se podem ser reconciliadas. O Secretum termina sem uma solução aceitável para ambas as partes, mas é claro que Petrarca favorece uma abordagem que tem menos em comum com a de seu mentor do que com o leitor reflexivo de figuras posteriores como Montaigne e Pascal.
Um dos problemas abordados nesses capítulos é a transformação gradual do pensamento sobre as emoções durante a Antiguidade tardia e a Idade Média. Pensadores da Antiguidade tardia herdaram uma versão um tanto simplificada das doutrinas helenísticas sobre as emoções, na qual diversas estratégias eram empregadas na esperança de superar a emoção por meio da razão. Nos primeiros escritos de Agostinho, a razão tem dimensões tanto teóricas quanto práticas; como consequência, é possível conceber a emoção, em alguns contextos, como um complemento da razão, por exemplo no abandono dos desejos carnais e em sua substituição pela caridade, que conduz o indivíduo de um objetivo material a um espiritual. Agostinho acreditava que a melhor maneira de alcançar essa “conversão” era por meio da leitura meditativa da Bíblia, por meio da qual emoções como a caridade poderiam tornar-se parte da narrativa vivida de um indivíduo. A prática contemplativa auxilia, assim, homens e mulheres a atingir o objetivo de transcender o corpo que é comum à teologia neoplatônica e cristã. Autores medievais tardios acrescentaram uma dimensão a esse programa ao considerar a escrita juntamente com a leitura como um exercício contemplativo válido e como um registro de experiência espiritual.
O capítulo 6 volta-se para outro aspecto da história da leitura no período moderno inicial — as atitudes em relação ao pensamento utópico em Agostinho e Tomas More. Diferentemente de Platão, que fala da sociedade justa na Republica em termos amplamente abstratos, esses dois autores preferem considerar o problema da utopia no contexto de sociedades concretas. Contudo, diferem quanto ao papel de leitores e públicos na preparação do indivíduo para engajar-se nesse tipo de pensamento e em sua aplicação potencial à vida cotidiana. Em Agostinho a leitura é um tipo de exercício ascético destinado a preparar o crente para a vida futura. O leitor é um tipo de filósofo que chega a conclusões acerca da possibilidade de estabelecer um estado utópico depois de comparar textos pagãos e cristãos. O exercício pode ser comparado ao programa de aperfeiçoamento nas Confissões, no qual a memória pessoal do próprio passado é substituída pela memória artificial de registros escritos por meio do estudo da Bíblia.
Em More a leitura é um instrumento para a criação de indivíduos capazes de participar de uma comunidade democrática letrada. A leitura e a escrita são veículos de progresso intelectual social e pessoal. A comunidade textualizada é concebida como um fim em si mesma. Apesar dessas diferenças, Agostinho e More concluem que uma sociedade perfeita é irrealizável na terra. Como Platão, veem a utopia como um plano, um projeto e, ao menos em More, um tema de ironia constante.
O capítulo final é uma tentativa de introduzir temas da história da leitura no arcabouço tradicional no qual o problema da identidade cultural europeia tem sido estudado por meio da filologia românica e de disciplinas históricas correlatas. A abordagem filológica, que agora tem cerca de um século e meio, argumenta que a fonte única da identidade europeia surgiu da continuidade e mudança na linguagem falada. Uma alternativa é sugerir que padrões paralelos de identidade cultural emergiram da história da linguagem e da história da leitura. Um dos desenvolvimentos importantes foi a evolução da lectio divina em um tipo flexível de leitura interpretativa que, após o século XIII, ficou conhecido como lectio spiritualis. Essa mudança levou ao nascimento de diversas teorias de interpretação cultural orientadas ao leitor, aplicáveis igualmente a palavras e imagens. Essas teorias foram amplamente difundidas durante o Renascimento e posteriormente em pensadores como Montaigne, Pascal e Vico, que concebiam a compreensão cultural como uma experiência contemplativa.
Ver online : Brian Stock
STOCK, Brian. After Augustine: the meditative reader and the text. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2001.