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Derrida, Heidegger, Blanchot

Timothy Clark – Superando a estética: Dichtung heideggeriana

Fontes da noção e prática literária de Derrida

A Crítica à Estética e a Análise da Representação Cartesiana
  • Embora a categoria estética denominada literatura seja relativamente moderna, a história da interpretação das artes das letras transformou-se dentro das possibilidades lógicas abertas pelo conceito de mimesis, sendo evidente que o literário constitui uma imitação de algum tipo, seja da realidade, de ideias, de emoções ou de si mesmo, contudo, antes de examinar essa concepção, faz-se necessário distinguir mimesis de representação, pois a discussão posterior sobre Heidegger envolve uma noção de mimesis intraduzível como simples imitação ou re-presentação.
  • A noção de representação não é unívoca e deve ser analisada a partir da leitura que Heidegger faz de Descartes, na qual o estabelecimento do cogito me cogitare serve como fundamento da metafísica moderna; diferentemente da visão tradicional que vê as Meditações cartesianas apenas como uma busca pela certeza epistemológica contra o ceticismo, a leitura heideggeriana identifica no cogito a representação propriamente entendida, onde cogitare não é apenas pensar, mas um percipere ou tomar posse de algo, apresentando-o a si mesmo de maneira indubitável e segura.
  • Nessa perspectiva, a dúvida cartesiana é inerente ao representar como um modo de assegurar e apreender, onde o pensamento deliberativo se direciona ao indubitável e a ciência moderna encontra seu fundamento intelectual; o representar é essencialmente um auto-representar (cogitare me cogitare), no qual o eu não é representado como um objeto (como uma mesa), mas está envolvido antecipadamente como a condição de toda representação, tornando-se o sub-iectum ou hypokeimenon, aquilo que subjaz e permanece idêntico sob diferentes atributos.
  • A oposição entre empirismo e racionalismo revela-se superficial quando justaposta à definição exata de representação, pois o cogito abrange sentir, imaginar e a recepção estética como modos de apresentar objetos a um sujeito; consequentemente, a Dichtung heideggeriana constitui uma meditação contra a estética, visto que a estética define a obra de arte como um objeto para um sujeito e baseia-se na relação sujeito-objeto através do sentimento, o que exige que a Dichtung seja compreendida como algo que não é objeto de consciência, não se dirige a um sujeito pós-cartesiano e não surge da ação de um sujeito.
A Verdade como Aletheia e a Reinterpretação da Mimesis
  • A questão da arte em Heidegger subordina-se à questão da verdade, mas não verdade como a correspondência de uma proposição a um estado de coisas (correção), e sim como aletheia, traduzida como desconcealmento ou des-clausura, implicando que se nada se mostrasse ou revelasse, não poderia tornar-se objeto de representação ou ser julgado como verdadeiro ou falso; essa concepção baseia-se na análise fenomenológica da palavra grega phainomenon, que significa aquilo que se mostra a si mesmo, sendo o aparecer a pré-condição de toda percepção e representação, desafiando a sinonímia moderna entre realidade e certeza.
  • A fenomenologia latente na língua grega sugere que os fenômenos não são pressionados em uma objetividade oposta ao humano, mas assumem sua radiância ao surgirem no desconcealmento, de modo que a humanidade não enfrenta o mundo, mas é confrontada pelos fenômenos em sua revelação; nesse contexto, Derrida observa que a noção de mimesis deve ser repensada, significando primeiramente a apresentação da coisa mesma, da physis que se produz e aparece, antes de ser traduzida como imitação.
  • Existe uma relação de figura e fundo entre os dois sentidos de mimesis, onde o sentido de mimesis como aparente e apresentação serve de pressuposto eclipsado pelo conceito de mimesis como imitação; essa estrutura dupla revela que a representação tradicional (imitação) só é pensável com base na mimesis como o aparecer original, uma dinâmica que Heidegger explora através de um passo atrás no pensamento representacional.
A Linguagem, a Kehre e a Dichtung
  • A virada ou Kehre no pensamento de Heidegger desloca a questão do ser e do mundo da centralidade do Dasein para a linguagem, considerada não como um instrumento humano ou objeto da linguística, mas como um dizer primordial (Sage) que traz significado à luz de maneira articulada, seja concretamente ou através de obras de arte e instituições; a linguagem possui um status transcendental, sendo a clareira que garante o entrelaçamento entre ser e humanidade e a articulação das coisas em um mundo, operando como condição de fala.
  • A relação entre a Dichtung e a linguagem concebida como representação assemelha-se à relação figura-fundo, onde a linguagem poética convoca à presença aquilo que nomeia, trazendo o aparente para o desconcealmento, enquanto a linguagem representacional é um modo derivativo que apenas imita ou significa o que já está presente; a linguagem não deve ser conceptualizada como objeto, pois é através dela que os objetos vêm à luz, funcionando como o palco ou espaço onde as coisas se tornam aparentes.
  • Heidegger estabelece uma hierarquia implícita onde a Dichtung é o modo essencial da linguagem, distinguindo-a da literatura, que ele denigre como manifestação da decadência e da metafísica subjetivista, focada em representações e visões de mundo reportoriais; em contraste, obras de Homero, Safo, Píndaro e Sófocles não são literatura, mas modos de aparição que inauguram um mundo e dão significância às coisas.
  • Na leitura do poema de Georg Trakl, Uma Noite de Inverno, Heidegger argumenta que a nomeação poética não atribui termos a objetos familiares, mas chama e traz à proximidade o que antes não era chamado, onde proximidade não é uma distância espacial ou temporal, mas uma noção ontológica que define a implicação pré-teórica do Dasein no mundo; a Dichtung efetua a aproximação das coisas ao mundo e do mundo às coisas, permitindo que as coisas afetem o humano não como objetos de consciência, mas em termos de seu sentido e participação em um nexo holístico.
A Diferença Ontico-Ontológica e a Estrutura da Dobra
  • A interpretação heideggeriana da poesia distingue-se radicalmente de visões empiristas ou românticas, como as de David Krell ou Alvin H. Rosenfeld, que confundem a encenação do ser com uma metafísica encarnacionalista ou uma fusão entre linguagem e ser; Heidegger insiste na diferença ontico-ontológica, na qual o ser das entidades, que permite que elas apareçam, não é ele mesmo uma entidade perceptível, mas retrai-se no próprio ato de desvelar aquilo que torna presente.
  • Essa estrutura de diferença manifesta-se como uma dobra ou ambiguidade da presença, onde o ser, como o aparecer, desaparece na revelação do que aparece, uma dinâmica que Derrida analisa em relação à mimesis e que implica que a linguagem, como modo de presenciar, nunca pode tornar-se um simples objeto de representação; a linguagem recusa-se a expressar sua própria natureza em palavras, exigindo um pensamento que renuncie à conceptualização objetivante em favor de uma atenção fenomenológica ou um deixar-ser da linguagem.
  • A leitura de Heidegger sobre Stefan George e Hölderlin ilustra a Dichtung como uma renúncia ao controle sobre as palavras e uma transformação da relação com a linguagem, onde a poesia se torna um canto sobre a própria renúncia e uma Dichtung da Dichtung, dizendo a essência da poesia; embora Heidegger privilegie a língua alemã e grega, a Dichtung como modo de linguagem que deixa falar sua própria essência não se restringe a um idioma histórico específico, apesar das implicações nacionalistas do pensamento heideggeriano apontadas por Philippe Lacoue-Labarthe.
A Leitura Poética e a Crítica a Lyotard
  • A análise do poema Poem de Charles Tomlinson exemplifica a Dichtung como um modo de apropriação que não representa objetos, mas mantém aberta a estrutura de mostração da própria linguagem, onde palavras como espaço e janela não funcionam como descrições de entidades, mas evocam a abertura e a profundidade instável do aparecer; essa leitura recusa interpretações alegóricas ou psicológicas, focando na atuação da linguagem que, sem provar ou indicar, solicita e significa o campo de possibilidade de qualquer significação.
  • O pensamento que acompanha a Dichtung exige uma transformação da linguagem filosófica e o abandono da metalinguagem, evidenciado no uso do diálogo por Heidegger, que não é apenas uma forma literária, mas uma encenação maieutica do pensamento como um caminho e uma espera intransitiva; no diálogo, o pensamento não é um processo psicológico dos interlocutores, mas o movimento da própria linguagem (die Sprache spricht) que desloca as palavras de seus sentidos recebidos.
  • Contra a objeção de que Heidegger estaria apenas reeditando o Romantismo alemão, deve-se notar que a liberação para a linguagem envolve uma disciplina rigorosa e não uma fusão extática ou sentimental entre sujeito e objeto, mantendo uma interdependência distinta entre pensar (Denken) e poetizar (Dichten); a crítica de Jean-François Lyotard, que tenta reduzir a diferença ontológica a um efeito das propriedades formais das locuções e da distinção entre apresentação e situação, simplifica inadmissivelmente a temporalidade complexa e a estrutura multidimensional do evento de apropriação (Ereignis).
  • A tentativa de Lyotard de reformular a ontologia heideggeriana através de uma teoria dos tipos e da inconvertibilidade entre frases de apresentação e frases de situação falha ao não reconhecer que a Dichtung não opera numa linearidade sucessiva de apagamentos, mas numa relação de diferenciação mútua e simultânea, onde a distinção entre linguagem e metalinguagem se torna redundante, como demonstrado na complexa interdependência das palavras no poema de Tomlinson; a Dichtung reúne os êxtases do tempo num ritmo que não é cronológico, mas dialógico, ecoando o dizer primordial da apropriação.

Ver online : Timothy Clark


CLARK, Timothy. Derrida, Heidegger, Blanchot: sources of Derrida’s notion and practice of literature. New York Cambridge: Cambridge university press, 1992.