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Pierre-jean Labarrière – Do espaço e do tempo

Quando a utopia se faz história

A problemática da intemporalidade e a mediação da figura
  • Se o estilo do pensamento se situa como um termo médio entre uma lógica fundamental e a pluralidade das figuras, sendo comandado pelo movimento que reconduz a essência e seu gesto originário através das etapas de categorizações singularizantes até o múltiplo das determinações históricas, torna-se inevitável questionar o estatuto do espaço e do tempo dentro deste paradoxo que relaciona interioridade e exterioridade, uma vez que tais estruturas são indispensáveis para pensar as realidades da natureza e do espírito onde a figura se expressa.
  • A dificuldade central reside em compreender como as realidades históricas podem ser abordadas após o périplo de mediação que afirma a ilocalidade e a intemporalidade do processo, exigindo uma resolução que não diminua a dupla exigência de metamorfose, na qual o processo de inteligibilidade deve incluir o movimento de sua própria efetuação concreta e o que é dado na exterioridade deve carregar a marca da instância mediadora que enuncia a intemporalidade essencial de sua própria historicidade.
  • Faz-se necessário empreender um percurso analítico que desacople os extremos do silogismo, considerando primeiramente o caráter dispersivo da exterioridade fenomenal para a vida do pensamento e do espírito, para então transitar em direção ao ato de compreender que busca libertar-se dessas sujeições e, finalmente, alcançar a inteligência do termo médio onde o interior se diz realmente como exterior, permitindo que as figuras filosóficas, místicas ou poéticas sejam salvas da dispersão temporal e espacial e recompostas no dinamismo de uma história.
A via negativa e o despojamento em Mestre Eckhart e a tradição mística
  • A vida do espírito concreto e integrativo, tal como concebida por Hegel, exige uma elevação acima do estilhaçamento implicado pela existência no espaço e no tempo, o que ressoa nos sermões de Mestre Eckhart quando este evoca a necessidade de se elevar acima do tempo para retornar ao originel onde o homem, em sua ideia eterna, estava em Deus e tudo o que estava nele era Deus.
  • A injunção de se tornar como uma criança, ilustrada tanto por Eckhart quanto posteriormente por Nietzsche, não remete primariamente à fraqueza ou inocência, mas ao sentido etimológico de in-fans, aquele que não fala, um ser fora do discurso e da relação imediata, o que se traduz na exigência radical de tornar-se surdo e cego para estancar as formas desviantes de relação com o mundo que ameaçam a integridade originária, permitindo o acesso às figuras de linguagem verificadas somente após o trânsito pela nudez do deserto.
  • O imperativo de que todo o ser deve tornar-se nada não configura um niilismo, mas a necessidade de ultrapassar tanto o ser quanto o nada enquanto modalidades particulares que limitam a consistência do Uno, de modo que a verdadeira conquista do Uno como Todo não deixa nada fora de sua órbita, mas reintrega o ser, a linguagem e a luz como figuras renascidas do périplo de mediação e tecidas na relação interior com o outro de si mesmas.
  • O termo abegescheidenheit, forjado por Eckhart e frequentemente mal traduzido como destacamento, refere-se mais precisamente a um perfeito repousar-em-si e um ser-um-consigo-mesmo da alma no retiro em relação ao mundo, exigindo o abandono temporário das referências de espaço, tempo e imagem para trilhar um caminho paradoxal e sem traçado definido, análogo à via estreita ou à imensidão do deserto onde se apagam os repérios habituais.
  • O deserto, descrito poeticamente como maravilhoso por estar isento das limitações de espaço e tempo e estender-se sem medidas, manifesta o impossível e atua como o índice do lugar sem lugar e do tempo sem tempo, cuja potência transfiguradora inervará as figuras que o homem da poiesis assumirá, não como uma alternativa excludente ao mundo das formas, mas como a condição para o nascimento do símbolo que conjuga peso de sentido e leveza de expressão.
A estruturação filosófica da percepção e a dialética do tempo em Hegel
  • A tradição filosófica ocidental, desde Platão e Aristóteles até Kant, reconheceu no espaço e no tempo as qualificações obrigatórias da experiência e as formas vazias da intuição sensível, havendo uma distinção histórica onde a antiguidade tendia a acentuar o espaço como sustentáculo da visada objetivante, enquanto a modernidade, de Descartes em diante, privilegiou a temporalidade como expressão da fluidez essencial do espírito na gestão do conhecer.
  • Hegel introduz uma novidade ao notar que um entendimento que não atingiu a forma da infinitude e da contradição resulta apenas na oposição entre espaço e tempo, tratando-os como indiferentes um ao outro; contudo, o despertar para o tratamento conceitual da realidade exige fluidificar os pensamentos fixos, compreendendo que espaço e tempo têm parte ligada de tal modo que ambos encontram sua libertação especulativa na articulação que define o lugar espacial do processo temporal.
  • No saber absoluto, a superação do dualismo potencial da consciência revela-se como a abolição da forma do tempo, condição para sua sursunção em história, onde o tempo é compreendido como o conceito que está aí e se representa à consciência como intuição vazia, aparecendo como o destino e a necessidade do espírito que ainda não está acabado em si mesmo e precisa enriquecer a participação da autoconsciência na consciência.
  • A Fenomenologia do Espírito constitui a reestruturação conceitual da exterioridade primeira do verdadeiro, onde o passado e o futuro são apreendidos segundo sua verdade como dimensões essenciais de um aqui e agora singulares elevados à universalidade, engajando um périplo lógico que é o processo intemporal e ilocal de um compreender que dá razão à historicidade essencial do universo fenomenal.
O itinerário simbólico e a mediação na Divina Comédia de Dante
  • A obra de Dante configura um longo caminho de mediação que vai do primeiro círculo do Inferno até o silêncio do imaginário diante da revelação final, desenhando uma geografia metafórica que se aprofunda no abismo para depois ascender às alturas da beatitude, num movimento contínuo que reconduz ao mistério da Encarnação, unidade do aqui e do alhures e do agora com o eterno.
  • O Paraíso dantesco desconhece a exclusão recíproca e a opacidade dos seres que caracterizam as experiências sublunares, e o tempo é misticamente reconduzido à sua origem primeira, onde a duração é recomposta em um acabamento que anula a ordem das simples sucessões, situando todo o processo de significação em uma postura mediadora no meio do caminho da vida.
  • A narrativa do espaço e tempo irreais no Inferno é marcada por uma dupla dimensão de alegoria e concretude alucinatória, onde o movimento circular e a progressão em círculos concêntricos têm como justificação a abertura para a possibilidade da escritura, transformando o cumprimento da viagem na capacidade de narrá-la, de modo que o espaço e tempo intermediários servem apenas para induzir o descapamento do espírito que o coloca em postura de decifrar sua própria verdade.
  • O tempo de não conhecimento e a escuridão descritos por Mestre Eckhart e Dante não são fins em si mesmos, mas momentos de um espaço-tempo de paradoxo que reúne os contrários em sua irrealidade realizante, onde tudo o que é sombrio prepara um renascimento e o mergulho no nada de Deus permite o encontro com o bem suressencial.
A lógica como intemporalidade do gesto essencial
  • Para Hegel, o ser puro e o nada são a mesma coisa, e a verdade reside no fato de que o ser passou em nada e o nada em ser, um deslizamento do presente para um passado que não é apenas linear, mas lógico, onde a essência é compreendida como o ser passado intemporalmente, o gewesen que preserva o Wesen, indicando que a imediatez é de todo tempo mediatizada.
  • A intemporalidade da lógica não significa a existência em um éon eterno apartado da temporalidade comum, mas a supressão da forma do tempo como face negativa do surgimento de uma história, onde a negação permanece ativa no seio da figura verificada, assegurando a legitimidade especulativa de sua efetividade e realidade conceitual.
  • O cruzamento do baixo e do alto, do tempo e da eternidade, manifesta-se na religião manifesta onde o mais baixo é ao mesmo tempo o mais alto, e a intemporalidade do gesto essencial tem por finalidade recompor a sucessão fenomenal na unidade de sua significação, fazendo com que a eternidade emerja sob a figura da temporalidade.
  • A eternidade não é um outro tempo, mas o pensamento do tempo, um antes absoluto que constitui o ser do que é como um haver-sido que se define em portar-a-verdade sobre si mesmo como história; a dimensão simbólica da aparição de Deus em carne estende seu alcance a todo sujeito espiritual, onde o Eu como tal é saber do espírito absoluto e a natureza é inervada por essa expressão da essência absoluta.
  • A lógica, embora termo primeiro do sistema na exposição, não é uma realidade primeira ontologicamente, pois o que é primeiro para Hegel é a Natureza e o Espírito, a exterioridade da história recebida e construída pela liberdade, intervindo a lógica como mediação desse deciframento e elaboração, operando a liberação absoluta onde a ideia se desprende livremente e o espaço e tempo se encontram em potência de verificação.
A convergência mística e poética na realização do espírito
  • O movimento puro é expresso por Mestre Eckhart através do duplo vetor que vai do retorno do homem à sua eternidade em Deus até o nascimento eterno de Deus no homem, uma metafísica da criação onde a profundidade do abismo coincide com a altura da elevação, e o tornar-se o menor é a condição para ser o maior, revelando que a distância assumida em relação à exterioridade é condição para o despertar para a eternidade do instante.
  • Poetas como Angelus Silesius e Hölderlin sugerem que o lançamento do espírito para além do espaço e do tempo permite estar a cada instante na eternidade e vislumbrar o Aberto, uma tensão estruturante ilustrada na arquitetura da Divina Comédia, onde Dante, um vivo no séjour dos mortos, experimenta uma assimilação progressiva que o torna um vidente entre os não-videntes, capaz de revelar a face oculta das coisas ao retornar ao mundo sublunar.
  • O Purgatório apresenta uma imagem altamente simbólica da mediação e do estado intermediário, um lugar de ascensão à luz do dia ligado à problemática da Encarnação e ao campo da arte, onde a memória é retificada nas águas do Lethes e o paraíso terrestre atua como a antecâmara da felicidade última, simbolizando o estado mi-temporal e mi-eterno que o homem da terra deve pressentir para bem viver a terra.
  • O filósofo, o místico e o poeta são seres de mediação cujo papel é produzir as figuras caducas fenomenalmente, mas nas quais não deve faltar o florescimento de uma lógica fundamental, anunciando e honrando o espaço e o tempo tornados e redimidos na unidade de sua significação.

Ver online : Pierre-Jean Labarrière


LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Poïétiques: quand l’utopie se fait histoire. Paris: Presses universitaires de France, 1998.