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A ciência dos símbolos
René Alleau – Apólogo, Fábula e Parábola
A Alegoria
DEFINIÇÃO E ETIMOLOGIA DO APÓLOGO E DA FÁBULA
- A definição lexicográfica de fábula proposta por Littré, que a categoriza como um termo geral abrangendo desde relatos mitológicos até histórias de imaginação ou mentiras, e que subordina o apólogo e a parábola a meras variações específicas, revela-se insuficiente quando confrontada com a concepção estrutural e poética defendida por La Fontaine no prefácio da sua obra.
- Para La Fontaine, o termo genérico e superior é o apólogo, considerado um dom dos Imortais, o qual se constitui organicamente de uma dualidade substancial: o corpo, que é a fábula ou a narrativa propriamente dita, e a alma, que é a moralidade ou o ensinamento intrínseco.
- A precedência do termo apólogo justifica-se etimologicamente pela preposição grega apo, que denota procedência, origem ou derivação («que vem de», «saindo de»), indicando que o apologos não é um mero conto, mas a exposição de uma verdade moral sob uma forma alegórica que emana de uma comparação analógica entre o comportamento humano e os seres do teatro da natureza.
- Este método de ensino, ao conferir vida e palavra aos atores naturais, estabelece a universalidade das semelhanças físicas e psíquicas e das homologias de relações, transcendendo a simples pedagogia moral e social para, como ocorre na tradição indiana, evocar temas metafísicos complexos, incluindo a doutrina das reencarnações, através das narrativas da tradição brâmane.
ORIGENS HISTÓRICAS E A GENIALIDADE DE LA FONTAINE
- A tradição do apólogo remonta, literariamente, ao século IV antes da era cristã com a compilação sânscrita Hitopadesa ou «Instrução Amigável», atribuída ao brâmane Pilpay ou Bidpai, cuja influência se irradiou através de versões em pehlvi, árabe (Kalila e Dimna), grego e diversas línguas vernáculas, constituindo um substrato universal para este gênero literário.
- Não obstante a existência de precursores orientais e greco-latinos como Esopo, Fedro ou Avenius, La Fontaine é reconhecido por críticos e contemporâneos, como Mme. de Sévigné, La Harpe e Fénelon, como a síntese suprema do gênio fabulista, tendo destilado e apropriado a herança anterior com tal naturalidade e graça que as fábulas passaram a ser consideradas uma criação sua, superando os modelos antigos em harmonia e sedução filosófica.
- A crítica racionalista de Lessing, que acusava La Fontaine de desnaturar o apólogo transformando-o num mero enfeite poético, é rebatida pela constatação de que o poeta gaulês soube captar a essência da comédia universal onde o cenário é o próprio universo, elevando o gênero a uma sofisticação estética que faltava às compilações puramente didáticas.
A PARÁBOLA: ETIMOLOGIA, ÓPTICA E DIFERENÇA DO SÍMBOLO
- Ainda que La Fontaine aproxime a parábola do apólogo pela familiaridade do exemplo alegórico, existe uma distinção funcional rigorosa onde a parábola se vincula ao ensino religioso e profético, exemplificado no Antigo Testamento pelas narrativas de Nathan e Ezequiel, e no Novo Testamento pela afirmação de São Marcos de que Jesus não falava às multidões sem parábolas (Sine parabola non loquebatur illis).
- A etimologia do termo parábola, derivado do grego paraballein («atirar ao lado», «comparar»), sugere uma operação de colocar coisas em paralelo devido à sua semelhança, diferindo radicalmente da operação do símbolo, que remete a sumballein («atirar junto», «reunir»).
- Sob uma perspectiva quase óptica e geométrica, a parábola funciona como um espelho parabólico que reflete a verdade luminosa em raios paralelos, propagando e estendendo os sentidos, enquanto o símbolo atua focalizando e concentrando os significados em direção a um princípio metafísico central ou foco de revelação.
- As parábolas evangélicas, embora compartilhem o tesouro comum da moralidade universal e dos apólogos antigos, são reformuladas pelo espírito criador da Revelação, adquirindo significados novos que não podem ser inteiramente deduzidos dos seus precedentes históricos, exigindo uma exegese que contemple a sua irradiação específica a partir do foco crístico.
EXEGESE DA FIGUEIRA E O ESOTERISMO EVANGÉLICO
- A parábola da figueira, utilizada por Jesus para instruir sobre os sinais do fim dos tempos, mobiliza um complexo simbolismo botânico e mítico onde a figueira (ficus), venerada na antiguidade como árvore antropogônica e nutridora (associada a Rômulo e Remo e a Adão), corresponde na tradição indiana à acvattha ou ficus religiosa, a árvore cujas raízes estão no alto e os ramos em baixo.
- A acvattha ou pippala, designada em sânscrito como bahupadah («que tem muitos pés») e skandharuha («que brota do seu próprio tronco»), simboliza a geração eterna e as vidas sucessivas, sendo considerada a árvore sacrificial e sábia (Bodhi-padapa) sob a qual se alcança o fim da dor ou a iluminação.
- A distinção explícita feita por Jesus entre o mistério do Reino de Deus, concedido em particular aos discípulos (iniciados), e o ensino por parábolas destinado aos «de fora» (profanos), para que «vendo não vejam», comprova a existência de uma dimensão esotérica e iniciática no Evangelho, refutando a tese de uma mensagem exclusivamente exotérica e acessível indiscriminadamente.
- O erro interpretativo dos primeiros cristãos, que esperavam a parusia imediata baseando-se na frase «esta geração não passará», decorre da incompreensão do sentido parabólico da «figueira» como representação da geração adâmica contínua e cíclica, e não de uma geração biológica temporal específica.
AS CHAVES PERDIDAS E A HERMENÊUTICA COMPARADA
- O contexto da profecia da figueira, proferida no Monte das Oliveiras frente ao Templo, insere-se numa cosmologia que associa o Verão e a Canícula ao nascimento de Tífon (o princípio do mal no esoterismo egípcio), conferindo à pregação de Jesus um caráter de aviso contra cataclismos tifonianos e falsos profetas na «cruz dos tempos».
- Existe uma lacuna paradoxal e profunda na hermenêutica cristã ocidental, que carece de obras de alcance esotérico comparáveis às investigações de Goldziher sobre o Corão, de Henry Corbin sobre a gnose ismaeliana e ta’wil, ou de Gershom Scholem sobre a Cabala e a mística judaica.
- Gershom Scholem elucida que a palavra divina é infinita e prenhe de significados, necessitando de uma exegese mística que atue como uma chave de revelação; contudo, como narra Orígenes em Selecta in Psalmos, as Escrituras assemelham-se a uma grande casa com muitas salas cujas chaves foram trocadas, impondo a tarefa árdua de reencontrar as correspondências corretas.
- A recuperação das chaves hermenêuticas e a reconquista dos sentidos das tradições sagradas exigem, na contemporaneidade, uma síntese interdisciplinar baseada na ecumenicidade, superando o historicismo limitado que, embora verifique fatos, não consegue penetrar na barreira espiritual onde o sentido vivifica a história.
MITOLOGIA GREGA: RACIONALIDADE E DESMESURA
- A mitologia grega apresenta um contraste desconcertante entre o gênio helênico, propenso à medida e à harmonia, e o conteúdo das suas fábulas teogônicas repletas de desmesura, atrocidades e crimes divinos, como a castração de Urano por Cronos, a antropofagia de Cronos e de Deméter (no festim de Tântalo) ou a crueldade de Apolo ao esfolar Marsias.
- A reação filosófica contra a impiedade dos mitos manifestou-se precocemente, com Xenófanes a acusar Homero e Hesíodo de atribuírem vícios humanos aos deuses, Heráclito a sugerir que os poetas fossem açoitados, e Pitágoras a visualizar a punição de Homero no Hades, todos defendendo uma concepção de divindade pura e não antropomórfica.
- A tentativa de interpretar alegoricamente os mitos ou questionar a sua veracidade literal comportava graves riscos políticos na Atenas clássica, como evidenciado pelas perseguições, prisões e exílios sofridos por pensadores como Anaxágoras, Protágoras e, ultimamente, pela condenação de Sócrates, demonstrando a tensão entre a filosofia nascente e a tradição sagrada estabelecida.
O MITO COMO REALIDADE VIVIDA E O DEPÓSITO PRIMORDIAL
- Aristóteles, na Metafísica, sugere que os mitos são vestígios fossilizados de uma sabedoria ancestral ou de uma ciência perdida que identificava as primeiras essências como deuses, sendo a roupagem fabulosa um acréscimo posterior destinado à persuasão do vulgo e à manutenção da ordem social e política.
- A distinção fundamental entre mito (muthos) e fábula reside no fato de que o mito, nas suas formas arcaicas, não possui necessariamente um sentido subentendido ou alegórico (hyponoia) distinto da sua apresentação imediata; ele é a própria divindade na sua opacidade e presença maciça, não uma cifra intelectual para outra coisa.
- A compreensão de um mito exige não uma explicação externa, mas uma vivência interna através de rituais iniciáticos que operam uma mutação no sujeito; a incapacidade moderna de distinguir entre o mítico e o fictício sinaliza uma degradação espiritual, contrastando com as civilizações antigas que, como os egípcios observaram no diálogo Crítias de Platão, viviam os seus mitos como realidades concretas e imemoriais.
Ver online : René Alleau
ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.