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O Simbolismo do Adro em "Grande Sertão" de Guimarães Rosa

terça-feira 22 de abril de 2025

UtezaMGS

GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Três palavras, reunidas em duas expressões a priori geográficas, compõem uma unidade intermediada pelos dois pontos que as colocam em uma [56] relação ao mesmo tempo de oposição e de complementaridade. Um espírito ocidental reconhecerá aí sobretudo a oposição:

O sertão acaba sendo toda a confusão e tumultuosa massa do mundo sensível, caos ilimitado de que só uma parte ínfima nos é dado conhecer, — precisamente a que se avista ao longo das veredas, tênues canais de penetração e comunicação. Assim o sinal: entre os dois elementos do título teria valor adversativo, estabelecendo a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas parcelas acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o conhecível [1].

Tal interpretação, por mais esclarecedora que seja, situa-se também num estágio dualista, que nos propomos ultrapassar na perspectiva da Unidade: o Grande Sertão arquétipo implica as veredas, assim como as veredas supõem o Grande Sertão [2].

Isto posto, notamos que, além do problema de sentido que pode suscitar o regionalismo veredas, cujo conteúdo puramente ‘ ‘mineiro” se explicitará na sequência do próprio discurso [p. 59, entre outras], importa reter o que o adjetivo grande acrescenta ao substantivo sertão. Não se trata apenas de uma simples questão espacial: é a anteposição do próprio arquétipo, é o sagrado que se instaura no além do profano. As veredas-oásis, que nos Gerais de Minas e de Goiás equilibram com fluidos a secura do sertão, tomam-se caminhos que levam ao conhecimento, ao princípio indiferenciado, ao Tao dos orientais. Aliás, Guimarães Rosa Guimarães Rosa Guimarães Rosa (1908-1967) pedia que assim se entendesse o título de seu livro, quando insistia em que a tradução alemã reduzisse o título a Grande Sertão, sem til [3].

Nestas condições, os dois pontos que separam-ligam a trindade inscrita no frontispício lembram aqueles que se correspondem no Tai Ki, símbolo chinês do Tao: no coração do yin negro, um ponto branco marca a presença dum germe yang latente, enquanto um ponto negro situa a potência yin que virá no interior da expansão branca do yang. O Ser do Tao é o resultado da dinâmica dos dois arquétipos yin e yang agindo em oposição-complementaridade nas Veredas do Ser tão. As duas modalidades diferenciadas do Uno primordial, que garantem juntas o movimento cósmico, se identificam aqui, tanto em sua expressão heimético-alquímica — Água das veredas e Terra do sertão, Solve et Coagula — como em sua tradução taoísta — uma vez yin, uma vez yang, é o Tao.

Quanto à tradição católica romana, fica-lhe reservado um lugar secundário, o do subtítulo, consagrado ao diabo por via de uma fórmula proverbial cujo conteúdo folclórico é de origem portuguesa [4]. [57]

Por detrás dessa superstição se perfila uma imagem do dinamismo universal: a Rua-arquétipo — espaço aberto entre dois alinhamentos fixos — é o domínio do Diabo — do grego Diaballein: dividir, fazer mexer-se tudo o que está condensado; mostrando-se no centro do Turbilhão, na origem das mutações, a besta multiforme aparece, pois, também como o animador infatigável daquilo que, sem ele, seria apenas massa amorfa.

Tal concepção nada tem de original: é a de Yahvé utilizando Satã para irritar Jó, este bom servo, muito bem instalado em sua felicidade terrena. É também a de Goethe Goethe Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) , que a atribuía ao Senhor em pessoa no seu prólogo do Fausto. Ali vê-se Deus, no empíreo, incitando seu compadre Mefistófeles a ocupar-se dum outro bom servo, aquele alquimista do Dr. Fausto:

Esse espírito arreda da primeira
Origem sua e, se vencê-lo podes,
À tua senda tortuosa o guia.

E o Senhor acrescenta a esta autorização um comentário sobre a utilidade de um “espírito negador”:

Afrouxa o homem pronto a atividade
E em mole indolência se deleita;
Por isso companheiro dar-te folgo
Que o excite e punja, e tome parte
Da criação na obra, como demo.

E Mefistófeles responde com outro elogio, num monólogo sobre a complementaridade do “Bem” e do “Mal”:

Lá de tempos a tempos me divirto
Com visitar o velho, e tomo tento
Em não romper com ele. É mui bonito,
Da parte de Senhor tão poderoso,
Vir tão lhano falar c’o próprio demo [5].

A priori, esse eco folclórico do subtítulo de Grande Sertão: Veredas remete unicamente à negatividade maléfica. No entanto, entre parênteses e em itálico sob o título impresso em letras maiúsculas, essa negatividade se inscreve como reflexo de uma Verdade não-explícita — a da convergência das vias do Oriente e do Ocidente de que o título é o emblema —, tal a projeção dos Arquétipos luminosos do alto na sombria caverna dos homens.


[1P. Rónai, “Três motivos em GSV”, Encontros com o Brasil, Rio, INL, 1958.

[2Em carta de 11 de outubro de 1963, Rosa explica longamente a Bizzarri a significação geográfica do termo veredas. A ressonância alquímica da descrição salta aos olhos, como, por exemplo: “por entre as chapadas [ou, às vezes, mesmo no alto, em depressões no meio das chapadas] há as veredas. São vales de chão argiloso ou turfo-argiloso, onde aflora a água absorvida. Nas veredas há sempre o buriti. [...] As veredas são férteis. Cheias de animais, de pássaros”. Elas representam na paisagem a dominante fluida, sob forma de curso d’água ou de brejos reservatórios de gérmens da vida, no meio das chapadas de nome evocador, platôs ressequidos e terras desérticas solidificadas. Correspondência com o Tradutor Italiano, pp. 22-23.

[3Em carta de abril de 1964, ao mesmo Bizzarri, Rosa acrescentava um P.S.: “O GSV sairá ainda este ano na França, com o título de ‘Diadorim’ ”, E também este ano, na Alemanha, com o título de (!) ‘Grande Sertão’ [sem til], O ponto de exclamação está no texto. Op. cit., p. 100. No entanto, o título da tradução alemã vem mesmo com o til.

[4L. Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, São Paulo, Melhoramentos, 1980. No verbete redemoinho, lemos: “Quando se produz um redemoinho de vento, a que o povo da Beira Alta chama borborinho, acredita-se que então anda no ar o diabo, ou bruxas ou qualquer “cousa má”.

[5Tradução de Agostinho D’Ornellas (nova edição cuidada por Paulo Quintela), Coimbra, Editora da Universidade, 1953, pp. 24-25.