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O Simbolismo das ilustrações de Poty em "Grande Sertão" de Guimarães Rosa

terça-feira 22 de abril de 2025

UtezaMGS

Quanto às ilustrações de Poty, sabemos pelo testemunho do editor, que figura na coletânea de homenagens publicada no Rio de Janeiro, em 1968, com o título Em Memória de João Guimarães Rosa, que o próprio Poty havia realizado dois projetos, ambos sob as sugestões do escritor. Em comentário que acompanhava a reprodução do projeto que não fora aproveitado, o editor dizia:

Acaso será fácil adivinhar o que são esses desenhos cabalísticos? Por certo que não: pois são desenhos que Poty executou — a pedido de Rosa e tudo por ele sugerido ou esboçado — para as orelhas da segunda edição de Grande Sertão: Veredas. [...] Procuramos com Poty identificar os símbolos que ele desenhara há anos. Em vão: nada sabia. Rosa sugeria-lhe os motivos mas nada explicava [p. 119].

A primeira versão apresenta um espaço organizado segundo a horizontal: um grande rio transversal define pelo seu curso a superfície de uma região desértica, acima da qual uma constelação de signos define o espaço celeste. Nas margens do rio, raras palmeiras, eminências vagamente piramidais e a efígie de uma Esfinge negra ornada de surpreendentes olhos brancos e redondos sugerem um estereótipo egípcio. Ao redor, urubus, um bucrânio, um chocalho e um ruminante, embora suscetíveis de pertencer também ao meio ambiente do Nilo — não esqueçamos o culto do boi Ápis em Mênfis —, sob o efeito da contaminação resultante de cerca de vinte fuzis cruzados como cajados no ar, acrescida da envergadura dos cornos do boi e da forma dos chapéus que cobrem certas personagens, carregam o meio terrestre de certa coloração brasileira. Mas a dominante do conjunto se mostra egípcia.

Na versão definitiva, a distinção céu-terra não é mais pertinente, e, principalmente, não subsiste mais nada do fundo egípcio primitivo: personagens, animais e grafismos se inscrevem numa parte do mapa de Minas correspondendo grosseiramente à região em que se desenvolveriam os acontecimentos capitais da aventura de Riobaldo. Os próprios lugares, nomes de rios, de cidades, de montanhas, de florestas, multiplicação de cavaleiros com os chapéus característicos — pacíficos vaqueiros com longos ferrões ou jagunços em largos galopes brandindo suas armas —, manadas de animais — sobretudo bois, uma onça, peixes, e muitas variedades de aves, gaviões e urubus —, representação de uma vegetação de ervas densas espalhada pelos Gerais da margem ocidental do São Francisco, mas sobretudo pelo Sertão, nas margens orientais do rio — tudo contribui para a “cor local”.

Sobre este fundo brasileiro identificamos algumas imagens que já figuravam no primeiro projeto. É o caso de uma serpente negra — Sucuri? Urutu? — e de um grupo de três personagens num barco — Riobaldo e o Menino atravessando o São Francisco? A pauta musical, que estava encimada de letras que permitiam recompor o nome de Siruiz, dilui-se, e não comporta mais que quatro linhas em que subsiste uma notação musical estilizada, sem sinais de clave, dominada por dois rostos com tênue aparência humana. No limite, esta música poderia ser apenas a circulação da água entre dois renques de palmeiras.

O exotismo “egípcio” desapareceu inteiramente em proveito de referências à realidade geográfica e social de Minas. Ainda mais que, agora, todas as inscrições legíveis estão grafadas em conformidade com os cânones ocidentais, com vogais e consoantes, ao passo que a transcrição semítica era patente no projeto inicial, onde o título se exibia no alto de cada folha: GRND SRT. Paralelamente a este abrasileiramento, os signos estranhos que se mantiveram de uma versão à outra ocupam agora uma posição mais discreta. É o caso do estranho grafismo que se anunciava em pleno meio do céu “egípcio” em cada orelha da primeira versão. Aparentemente composto de três elementos entrelaçados, um tipo de V e uma espécie de B unidos para desenhar em sua junção alguma coisa que parece um A — o que pode evocar uma marca de gado —, este signo se encontra, agora, uma vez em cada orelha, mas em posição marginal; é também o caso da lemniscata, símbolo matemático do infinito, que está representada somente uma vez, embaixo de cada desenho, assim como das estrelas de cinco e seis pontas, afogadas no meio de outros símbolos e não mais destacadas em pleno céu. Em compensação, novos grafismos aparecem: um D e um R no meio de um círculo, outro R num triângulo, um G acima de uma fila de bois — letras interpretáveis também como marcas de gado [1]; enfim, o símbolo astrológico de Saturno — um tipo de h encimado por uma cruz, bem ao pé da Serra das Almas, representada na primeira orelha —, assim como os de Marte e Vênus — um círculo encimado por uma flecha e outro círculo tendo uma cruz voltada para baixo estes dois últimos de um lado e do outro do São Francisco, ao sul de Januária, na segunda orelha.

A identificação destes símbolos permite a Consuelo Albergaria [2] interpretar o misterioso VAB como representação do Capricórnio, isto é, do signo que, começando na época do São João do inverno no hemisfério Norte, marca no calendário a reversão da perspectiva temporal, pela passagem do período da morte da natureza ao do seu renascimento — depois da involução e da concentração, chega a hora da expansão das forças no revigoramento da luz solar. Noutros termos, este signo corresponde ao momento que, no ciclo das estações, relembra o ponto em que se forma o nó da lemniscata do infinito.

Conquanto reconhecendo a validade da perspectiva astrológica — as conclusões desembocam no “eterno retomo”, fundamento de todas as tradições esotéricas —, é preciso notar que esses signos astrológicos são igualmente signos alquímicos, e nós nos fixamos num único hermetismo que, aliás, está aqui representado por um símbolo maior: o hexagrama translúcido, o Signo de Salomão, imagem gráfica da Pedra Filosofal, discretamente inscrito na sequência dos fuzis cruzados na parte inferior da segunda orelha — que, do modo como se dispõem, são outras tantas cruzes de Santo André, isto é, também referências à tradição hermético-alquímica.

Para os alquimistas, Saturno é o símbolo do chumbo; corresponde a um dos estados da matéria-prima que o adepto deve fazer evoluir para o espírito — daí o interesse por esses desenhos e sua posição ao pé da Serra das Almas. Vênus e Marte — o cobre e o ferro — referem-se a “idades” posteriores, mais próximas da Grande Obra que a do chumbo satumiano [3].

Saturno, símbolo da morte iniciática, insígnia da nigredo — etapa primordial de toda metamorfose —, está em ligação direta com os dois bucrânios, um negro, na primeira orelha, na vertical do símbolo saturnino em sua margem esquerda, outro translúcido, em pleno centro da segunda orelha: além do índice regionalista que remete à civilização do boi, este caput mortuum representa ‘ ‘a terra impura, inerte e estéril que o solvente precipita como um resíduo inútil” [4]. A operação de “embranquecimento” da matéria-prima está assinalada no traço opaco do primeiro bucrânio, como se a came aderisse ainda aos ossos, enquanto o segundo é translúcido, reduzido simplesmente a esqueleto. Esta metamorfose traduz a passagem da pedra negra bruta à pedra depurada.

A mesma mutação se representa nos desenhos do Signo de Salomão: na primeira orelha ele se encontra em estado bruto, negro, fixado em sua forma densa a Ocidente, no Chapadão do Urucúia — a terra compacta que a água dos Gerais deve fazer viver; na segunda orelha, à margem direita do São Francisco, a Pedra Filosofal resplende a Oriente, do lado donde vem a luz. A Oeste, importa libertar a matéria-prima de sua ganga caótica — na mina, ainda no interior de Minas Gerais —, para fazê-la viver a Leste, uma vez depurada, na substancial medula do Espírito — no Ser Tão.

Aliás, a luz alquímica está presente no alto da segunda orelha: um sol negro irradia seus raios exatamente na fronteira de Minas e da Bahia, no horizonte da Serra do Rompe Gibão. Os raios negros que daí emanam abrem entre eles grandes espaços de luz: sol nascente-poente, inscreve no céu do Ser Tão, a cavalo entre Minas e Bahia, a fronteira da Eternidade, fora do espaço e fora do tempo [5].

Neste contexto alquímico, o grafismo VAB encontra seu lugar. Nós efetivamente identificamos, em obras especializadas, um símbolo que lembra este signo — um V e um B entrelaçados, mas sem o A central, que se lê Banho de Vapor ou Água Fervente [6]. A água fervendo ou o banho de vapor constitui o equilíbrio entre o estado líquido e o estado gasoso, o encontro central da corrente solve que dissolve o líquido em gás e da corrente coagula que condensa o vapor em líquido. É ainda o nó simbólico da lemniscata, lá onde se espiritualiza a matéria e onde se materializa o espírito [7]. Intercalando-lhe um A, o escritor tomou ainda mais expressivo este grafismo, marcado em seu centro com um elemento suplementar portador dessa mensagem de união dos contrários, pois o A desenha claramente duas linhas verticais que, juntando-se em seu ápice, estão também unidas por uma linha horizontal mediana.

Além da mensagem de Hermes impressa no espaço geográfico de Minas, essas ilustrações trazem outros dados esotéricos e, em especial, ao menos uma referência maçônica: que esquadro foi preciso construir para que essas duas orelhas da versão definitiva se correspondessem! Com efeito, o traçado do rio São Francisco impõe esta disposição relativa dos dois braços, de tal modo que, de um lado, o ângulo interior deste esquadro se forme exatamente no nível da letra G que domina uma fila de bois, e, de outro, que as direções indicadas pelas duas lemniscatas sejam também perpendiculares. Uma objeção, entretanto: a letra G não tem sua realização “iniciática” precisa — a barra horizontal não está traçada e a curva é muito aberta em sua parte superior; ademais, ela não está representada no interior do pentagrama de modo a significar a “estrela flamejante”. A estrela flamejante não está sequer sugerida, pois as duas estrelas de cinco pontas que figuram nas ilustrações definitivas são ambas opacas e não deixam transparecer nenhum traço, iniciático ou não. Mas o traço recruzado do pentagrama é perfeitamente identificável na versão “egípcia”: passando à versão definitiva, Rosa teria simplesmente ocultado em mais um grau a mensagem maçônica [8]. A citada mensagem, no entanto, continua perceptível: o pentagrama opaco e o hexagrama translúcido indicam in absentia a etapa intermediária da estrela flamejante que envolve o G.

Enfim, podem-se também reconhecer signos que remetem ao simbolismo próprio do cristianismo e do catolicismo romano, em especial várias cruzes. Mas se o cristianismo se apropriou deste símbolo, não se pode esquecer que seu uso é anterior à sacralização do instrumento de suplício de Cristo: encontram-se cruzes nas ninas escandinavas, assim como no Egito ou na Grécia, nos mistérios de Ísis, entre outros; e os romanos, muito antes de Constantino, erguiam-nas em suas insígnias [9].

Um olho advertido distinguirá no extremo da borda da segunda orelha a silhueta maciça de uma igreja do interior brasileiro. Compõe-se de três elementos, duas torres laterais encimadas cada uma por uma cruz, e o corpo mais alto do edifício central, também ele encimado por uma flecha coberta por uma cruz. O conjunto, negro e maciço, transmite, ainda uma vez, o conceito de ligação com o centro, e apresenta uma dominante terrestre, a construção pesada e opaca indicando a direção do céu por meio das cruzes de seus três campanários.

Resta Satã, que tem direito a três ou quatro chamadas. A princípio, na primeira orelha, bem no alto, à esquerda, vemos a efígie da besta multiforme — pés de bode, com as unhas anteriores de fora, uma asa aberta sobre um apêndice caudal flutuando no céu, o todo coroado por uma cabeça cornuda. “Rampante” segundo a heráldica, está voltada para a esquerda — isto é, para o passado. Este grifo fabuloso, em equilíbrio instável bem no alto do desenho, evoca evidentemente o que denuncia o subtítulo do livro: o diabo animador do turbilhão de vento, a acreditar no folclore luso-brasileiro.

Em seguida, sempre nesta primeira orelha, mas na fronteira direita do quadrado central, outro monstro obscuro, erguido sobre as patas traseiras, avança brandindo uma vela branca acesa. À energia “demoníaca” latente do emblema anterior, orientada num sentido, corresponde a luz “luciferina” que marcha na direção contrária. E mais, na segunda orelha, bem acima da pauta musical e na vertical mediana da ilustração, figura um ser cornudo e disforme, meio opaco, meio translúcido, que lembra os vampiros ameaçadores das catedrais góticas. Embora preso num assento de pedra, é representado na posição estirada para a frente, o que sugere um equilíbrio instável, portador também de tensões contrárias.

Por fim, poder-se-ia reconhecer uma quarta evocação nesse zumbi, “saci de duas pernas”, que se dirige para o centro da segunda orelha, e cuja escuridão traz em si dois círculos brancos que funcionam como olhos, marcando no mesmo ato a abertura possível para a luz. Esse gnomo informe seria o negrinho Guirigó que atravessa o sertão na esteira do Urutu-Branco, para fazer viver os poderes superiores que o habitam, presentes nas manchas brancas dos olhos?

Finalmente, Satã-Lúcifer-Saci se integra no conjunto que ultrapassa o só universo católico-judaico-cristão, conjunto a que dá sua contribuição, como faria qualquer folclore regional carregado com sua porção de universalidade.

Ao cabo desta análise, concluímos que estas ilustrações põem em evidência, sobre um fundo brasileiro regionalista de pronto reconhecível, um pulular de símbolos de proveniencias diversas que funcionam como advertências para chamar a atenção para a “sobre-coisa”, emblematicamente impressa na carta de Minas Gerais, e que não é nem puramente hermética, nem simplesmente alquímica, nem unicamente cristã, nem exclusivamente maçônica.

 


[1Para as marcas utilizadas no sertão mineiro ver Gustavo Barroso, Terra do Sol, Rio de Janeiro, B. de Aguila, s.d., pp. 197-99. A obra figurava na biblioteca de Guimarães Rosa.

[2C. Albergaria, Bruxo da Linguagem, pp. 67-70. A astrologia era uma das preocupações de Rosa. Disso só temos como prova as referências a estes conhecimentos utilizadas no discurso de posse na Academia, especialmente quando da caracterização dos comportamentos de Vargas e Osvaldo Aranha.

[3Ver Pernety, Dictionnaire Mytho-hermétique, nos artigos Règnes, Saturne, Mars e Vênus.

[4Ver Fulcanelli, Les Demeures philosophales, Tomo I, p. 391.

[5Nerval, e no soneto intitulado “El Desdichado”, esclarece talvez o mistério do sol negro.

[6R. Alleau, Aspects de l’alchimie traditionelle, pp. 206 e 208.

[7Para aplicação oriental deste princípio alquímico, ver P. Grison, Le Traité de la fleur d’or du Suprême Un, Paris, Edit. Traditionnelles, 1982, pp. 49-51.

[8Para o traçado do G e da “estrela flamejante”, ver O. Wirth, Le Symbolisme occulte de la Franc-maçonnerie, Paris, Dervy-Livres, 1979, p. 12, e J. Boucher, La Symbolique maçonnique, Paris, Dervy-Livres, 1985, pp. 220-232. Para o que diz respeito às relações com o hexagrama, cf. “L’étoile flamboyante active, entourant la lettre G, montre le chemin qui conduit à l’hexagramme équilibré, idéogramme classique de la Pierre Philosophale” (“A estrela flamejante ativa, que cerca a letra G, mostra o caminho que leva ao hexagrama clássico da Pedra Filosofal” Boucher, op. cit., p. 241). Acrescente-se a esta informação que as lemniscatas correspondem ao traçado dos ‘ ‘laços de amor” que figuram nos quadros de aprendiz e de companheiro (Idem, p. 169).

[9R. Guénon, Le Symbolisme de la croix, Paris, Trédaniel, 1985, p. 25.