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Ursula K. Le Guin – Um Discurso de Formatura com a Mão Esquerda
Tradução Marcela Coelho de Souza e Marcio Goldman
quarta-feira 9 de julho de 2025
Quero agradecer a turma de 1983 do Mills College por me oferecer essa rara oportunidade: falar alto, em público, na linguagem das mulheres.
Sei que há homens se formando e não quero exclui-los, longe disso. Há uma tragédia grega na qual o grego diz ao estrangeiro: "se você não entende grego, por favor balance a cabeça para indicar". De todo modo, cerimônias de diplomação são conduzidas sob o acordo tácito de que quem está se formando ou é homem ou deveria ser. Por isso estamos todas vestindo esses trajes do século XII, que caem tão bem nos homens e fazem as mulheres parecerem um cogumelo ou uma cegonha grávida.
A tradição intelectual é masculina. A fala pública é feita na lingua pública, a lingua nacional ou tribal; e a linguagem da nossa tribo é a linguagem dos homens. Claro que mulheres a aprendem. Não somos idiotas. Se vocês conseguem distinguir Margaret Thatcher de Ronald Reagan, ou Indira Gandhi do General Somoza em qualquer coisa que digam, por favor me contem. Este mundo é do homem e, assim, fala uma linguagem de homens. As palavras são todas palavras de poder. Você percorreu um longo caminho, meu bem, mas nenhum caminho é suficientemente longo. Você nem pode chegar lá se vendendo porque o fim do caminho é deles, não seu.
Talvez já tenhamos tido o bastante em matéria de palavras de poder e tenhamos falado demais sobre a batalha pela vida. Talvez precisemos de algumas palavras de fraqueza. Em vez de dizer agora que espero que vocês saiam desta torre de marfim para o Mundo Real para forjar uma carreira triunfante ou, ao menos, para ajudar seus maridos a fazê-lo e a manter nosso país forte e ser um sucesso em tudo, em vez de ficar falando sobre poder, que tal se eu falasse como um mulher, aqui mesmo, em público? Isso não vai soar bem. Vai soar péssimo. Que tal se eu dissesse que o que espero para vocês, primeiro, é, se quiserem — apenas se quiserem — ter crianças, que as tenham. Não hordas delas. Umas duas, basta. Espero que sejam bonitas. Espero que vocês e elas tenham o suficiente para comer e um lugar quente e limpo para ficar, e amigas e amigos, e um trabalho que gostem de fazer.
Bem, foi para isso que vocês foram para a universidade? Isso é tudo? E o sucesso? o sucesso é sempre o fracasso de outra pessoa, o sucesso é o Sonho Americano que continuamos sonhando porque a maior parte das pessoas na maior parte dos lugares, incluindo 30 milhões aqui mesmo, vive bem acordada na terrível realidade da pobreza. Não, eu não desejo sucesso a vocês. Eu não quero nem mesmo falar sobre isso. Eu quero falar sobre fracasso.
Porque vocês são seres humanos, vocês encontrarão o fracasso. Vocês encontrarão o frustração, a injustiça, a traição e perdas irreparáveis. Vocês descobrirão que são fracas quando se consideravam fortes. Vocês trabalharão por posses e aí descobrirão que são elas que possuem vocês. Vocês se encontrarão, como sei que já se encontraram, em lugares escuros, sozinhas e com medo.
o que espero para vocês, para todas as minhas irmãs e filhas, irmãos e filhos, é que possam viver aí, nesse lugar escuro. Viver no lugar que nossa cultura, que racionaliza o sucesso, nega, chamando-o de um lugar de exílio, inabitável, estrangeiro.
Bem, nós já somos estrangeiras. Mulheres como mulheres são amplamente excluídas, alheias às autodeclaradas normas masculinas dessa sociedade, onde seres humanos são chamados de Homem, onde o único deus respeitável é masculino, a única direção é para cima. Assim, esta é o país deles; vamos explorar o nosso. Não estou falando de sexo, que é um universo totalmente diferente, onde cada homem e mulher estão por sua própria conta. Estou falando de sociedade, do chamado mundo masculino da competição institucionalizada, da agressão, da violência, da autoridade e do poder.
Se queremos viver como mulheres, um certo separatismo se impõe, e o Mills College é uma sábia personificação desse separatismo. 0 mundo dos jogos de guerra não foi criado por nós ou para nós; não podemos sequer respirar seu ar sem máscaras. E se você colocar a máscara, será difícil tirá-la.
Então, que tal continuar fazendo as coisas do nosso jeito, como até certo ponto vocês fizeram aqui no Mills? Não para os homens e para a hierarquia de poder masculina — esse é o jogo deles. Também não contra os homens — isso é ainda jogar com as regras deles. Mas com qualquer homem que esteja conosco: esse é o nosso jogo. Por que uma mulher livre, com educação universitária, deveria lutar contra os Machões ou servi-los? Por que ela deveria viver sua vida nos termos deles?
O Machão tem medo dos nossos termos, que não são todos racionais, positivos, competitivos etc. E assim ele nos ensinou a desprezá-los e negá-los. Na nossa sociedade, as mulheres viveram e foram desprezadas por viver todo o lado da vida que inclui e assume a responsabilidade pelo desamparo, pela fraqueza e doença, pelo irracional e o irreparável, por tudo o que é obscuro, passivo, descontrolado, animal, imundo — o vale das sombras, o profundo, as profundezas da vida. Tudo o que o Guerreiro nega e recusa é deixado para nós, e para os homens que compartilham isso conosco e que, portanto, como nós, não podem brincar de médico, apenas de enfermeiro, não podem ser guerreiros, apenas civis, não podem ser chefes, apenas indios. Bem, este é então o nosso pais, o lado noturno do nosso pais. Se há um lado diurno, serras altas, pradarias de grama brilhante, só conhecemos os contos dos pioneiros sobre isso, ainda não chegamos lá. Nós nunca chegaremos lá imitando os Machões. Nós só chegaremos lá seguindo nosso próprio caminho, vivendo ai, passando a noite em nosso próprio pais.
Então, o que espero para vocês é que vivam ai não como prisioneiras, com vergonha de serem mulheres, cativas cordatas de um sistema social psicopata, mas como nativas. Que vocês se sintam em casa, que tenham seu lar, que sejam suas próprias senhoras, que tenham um quarto que seja só seu.
Que aí vocês façam o seu trabalho, seja lá no que forem boas, arte ou ciência ou tecnologia ou administrando uma empresa ou varrendo debaixo das camas; e quando eles disserem que esse é um trabalho de segunda classe porque é uma mulher que o está fazendo, espero que vocês os mandem para o inferno e digam que, enquanto estiverem indo, que lhes paguem salários iguais por tempos iguais. Espero que vocês vivam sem a necessidade de dominar e sem a necessidade de serem dominadas. Espero que vocês nunca sejam vitimas, mas espero que vocês não tenham poder sobre outras pessoas. E quando vocês fracassarem e forem derrotadas, e estiverem com dor e no escuro, eu espero que então se lembrem que a escuridão é seu pais, o lugar onde vivem, onde nenhuma guerra é travada e nenhuma guerra é vencida, mas onde o futuro está.
Nossas raízes estão na escuridão; a terra é nosso pais. Por que olhamos para cima procurando bênçãos em vez de olhar em torno e para baixo? Qualquer esperança que tenhamos está ai. Não no céu cheio de espiões e armas em órbita, mas na terra que olhamos de cima para baixo. Não vindo de cima, mas de baixo. Não na luz que cega, mas no escuro que nutre, onde seres humanos cultivam almas humanas.


Ver online : A Left-Handed Commencement Address
Originalmente disponível no site de n-1 Edições.
Tradução Marcela Coelho de Souza e Marcio Goldman
Discurso proferido no dia 22 de maio de 1983, no Mills College, em Oakland, na Califórnia