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Tournier (Célébrations) – Deciframento da serpente

sábado 28 de junho de 2025

O deserto é seu reino, como a aridez é seu clima. Para lá ele conduziu Adão e Eva depois de os fazer perder o Paraíso. Falava-lhes nos ramos da árvore do Bem e do Mal, como Deus falaria mais tarde a Moisés do centro de uma sarça ardente. De que lhes falava ele? Como Deus a Moisés, do bem e do mal. Mas chamando bem ao mal e mal ao bem.

Pois a inversão maligna define seu modo de agir habitual. Assim como o amor. Há dois tipos de serpentes, as venenosas e as constritoras. As venenosas matam com um beijo. As constritoras matam com um abraço. As primeiras são apenas uma boca. As segundas são apenas um braço. Mas sempre é com um gesto de amor que matam.

A cabeça da serpente é composta de ossos frouxamente ligados entre si. As mandíbulas podem se deslocar à vontade. Toda a cabeça é, em suma, desmontável. Para engolir uma presa enorme, por exemplo, ela distende suas partes, e todo o corpo da serpente se torna como uma meia viva que se enfia por si mesma sobre a presa.

Essa faculdade de absorção causa medo, mas menos, no entanto, que a cabeça triangular e apertada como um punho rancorosamente estendido. Seus olhos são célebres, e atribui-se a eles um poder hipnótico. Isso se deve principalmente ao fato de não terem pálpebras. Tartarugas, iguanas, lagartos têm pálpebras. A serpente, não. Seu olhar absolutamente fixo não conhece o doce e úmido repouso de um piscar de olhos. Assim, a serpente não tem rosto, tem uma máscara. E quando essa máscara cai, percebe-se que não há rosto por baixo, mas, pelo contrário, outra máscara que termina de endurecer.

O que é uma máscara? Um rosto morto, congelado em uma única expressão. No caso da serpente, essa expressão é a de uma vigilância ardente, de uma atenção concentrada em um único ponto: meu próprio rosto de carne, vivo e vulnerável. O olhar fixo da serpente penetra em mim e me prende no lugar.

Mas aqui também se dá a inversão. Pois também se pode dizer que toda a serpente está coberta por uma imensa pálpebra que ela abandona uma vez por ano, durante a muda. De fato, seu olho é protegido por um disco de pele transparente, ligado ao resto da epiderme e que cai por inteiro quando ela abandona sua pele manchada de sangue e seu rosto petrificado.

Os hebreus sendo dizimados por mordidas de serpente, Deus ordenou a Moisés que fundisse uma serpente gigante de bronze e a erguesse sobre um poste na entrada do acampamento. Assim seria afastada a ameaça das serpentes.

Cada povo tem sua serpente de bronze. Os franceses têm o avião Concorde, símbolo do culto imbecil e criminoso à deusa Velocidade. É preciso ver sua silhueta hedionda de cobra quando aterrissa, lançando em direção ao solo seu bico pontiagudo e venenoso!

A magia maléfica da serpente vem de longe e vem do alto. No princípio havia Lúcifer, um anjo tão belo que se comparava ao próprio Deus. Até que o outro arcanjo, seu irmão rival, Miguel, indignado com esse orgulho blasfemo, se lançou sobre ele e lhe arrancou as asas, os braços, as pernas, e o precipitou no abismo, exclamando: Quem é como Deus? (Miguel em hebraico).

Desde então, em vez de planar nos ares, o arcanjo caído rasteja no pó e se enterra no solo.

A serpente é o anjo-tronco, horrível e magnífico.


TOURNIER, Michel. Célébrations. Paris: Mercure de France, 1999