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Tournier (Célébrations) – Albert Dürer. Melancolia I

sábado 28 de junho de 2025

A noção de melancolia contém uma admirável ambivalência. Pois a melancolia, etimologicamente, é a bile negra, um líquido viscoso, amargo e nauseabundo, secretado pelo fígado e acumulado na vesícula biliar, que desempenha um papel na digestão intestinal. Nada menos exaltante. Mas é também um estado de alma que todos os séculos celebraram, da Antiguidade ao Romantismo. E é ainda uma maldição prestigiosa que emana do planeta Saturno, o oposto absoluto de Júpiter. Há na melancolia algo da alma e do corpo, mas ainda mais do céu e do excremento. Ela implica uma visão de mundo total e totalizante.

Essa ambivalência está contida em germe na teoria dos quatro humores cardinais de Hipócrates e Galeno, articulando-se com os quatro elementos, as quatro estações e as principais idades da vida humana:

Sangue - Ar - Primavera - Infância
Bile amarela - Fogo - Verão - Adolescência
Bile negra - Terra - Outono - Idade adulta
Fleuma - Água - Inverno - Velhice

E, no entanto, a melancolia é também uma doença. Uma espécie de loucura mórbida que desgosta da existência e calunia a vida. O melancólico é tido como amargo, avarento e maldoso. Na verdade, tudo isso permanece em nosso tempo. A psicologia e a caracterologia pesam pouco diante da psicanálise e da psiquiatria. O verdadeiro conhecedor do homem continua sendo o médico. Não há melhor grade de decifração do ser humano que a patologia. Dize-me tua doença e dir-te-ei quem és. Quanto à saúde, ela não passa — segundo a definição do Dr. Knock — de um estado amorfo, indefinível e que não presagia nada de bom.

O prestígio incomparável dos melancólicos é destacado já por Aristóteles: "Os melancólicos são naturezas sérias e dotadas para a criação espiritual" (Problema, XXX, I). O neoplatônico Marsílio Ficino — nascido em 19 de outubro de 1433 sob o signo ascendente de Saturno — escreve com orgulho que a bile negra, "semelhante ao centro do mundo, impele a alma a buscar o centro das coisas singulares. E a eleva até a compreensão das coisas mais altas, tanto mais que se harmoniza plenamente com Saturno, o mais alto dos planetas" (De Vita Triplici).

Nada melhor para definir a natureza melancólica que considerar seu oposto, o caráter jupiteriano, "jovial" no sentido exato. Esse caráter jovial se expressa na música, que constitui o melhor remédio contra o mal melancólico. "Na verdade, quanto aos males, sou demasiado temeroso, o que às vezes me censuras. Atribuo-o a certa compleição melancólica, e direi que é a mais amarga das coisas, se não fosse o frequente recurso ao alaúde, que a torna mais calma e suave" (carta de Ficino a Giovanni Cavalcanti). Albert Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) dirá mais tarde que a pintura é uma arte melancólica e que é preciso alegrá-la com a música, arte jupiteriana por excelência. Não se pode evitar a referência ao abatimento do rei Saul, curado pela harpa do jovem Davi:

"O espírito do Senhor se afastou de Saul, e um espírito maligno o atormentava, permitido pelo Senhor. E os servos de Saul lhe disseram: ’Vossos servos buscarão um homem que saiba tocar harpa, para que a toque e vos alivie quando o espírito maligno vos assaltar...’ Ora, Jessé tinha um filho chamado Davi, que tocava harpa. E o enviaram a Saul. ’E Davi veio a Saul e se pôs diante dele. E Saul o amou muito e o fez seu escudeiro. Cada vez que o espírito maligno se apoderava de Saul, Davi tomava a harpa e a tocava, e Saul se reanimava e sentia alívio, pois o espírito maligno se afastava dele’" (Livro dos Reis, XVI).

Como se vê, a melancolia de Saul tem origem transcendente, pois é enviada por Deus. Mas trata-se também de uma doença que Davi cura com sua harpa. Toda a ambiguidade da melancolia está aí.

É provável que Albert Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) tenha conhecido os textos de Marsílio Ficino sobre a melancolia durante suas viagens à Itália. Seu amigo Melanchthon — de nome predestinado Schwarzerd, Terra Negra — reconheceu nele um grande melancólico. Os traços essenciais desse humor negro marcam a maioria de suas obras. Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) fez duas estadas em Veneza. Tinha 23 anos quando se casou, em julho de 1494, com Agnes Frey. No outono, parte para Veneza, de onde só retorna na primavera. A segunda estada ocorre em 1505, e dura dezoito meses.

Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) declara-se, em suas cartas, entusiasmado com os venezianos, mas ao mesmo tempo receia sua vocação mercantil. Associa à revolução das ideias não apenas a aceitação, mas a estima pela especulação comercial, atividade maior da república dos doges. Especulação — palavra de admirável ambiguidade, pois significa tanto o tráfico de dinheiro quanto a reflexão metafísica desinteressada. Ora, são justamente dois traços tradicionalmente atribuídos aos melancólicos: avareza e inclinação à contemplação das coisas elevadas. Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) se lembrará disso em Melencolia I.

Chegamos então às três gravuras de 1514, ápice de sua obra. Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) aprendeu pintura no ateliê de Michael Wolgemut, onde entrou aos 15 anos. Mas vinha do ateliê do pai, ourives e gravador. O metal permaneceu para ele o suporte nobre por excelência, e a gravura em cobre, a arte que funde soberanamente talento, gênio e artesanato mais exigente. Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) é o mestre incontestável do traço, do contorno preciso, do preto-e-branco. O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (1513), A cela de São Jerônimo (1514) e Melencolia I (1514) formam um conjunto de beleza e profundidade inigualáveis. Há também virtuosismo, com seu jogo gratuito, como o reflexo na parede de A cela de São Jerônimo da luz filtrada pelos vitrais da janela.

Melencolia gerou inúmeros comentários e interpretações, inspirados pela atmosfera opressiva que dela emana e pelo amontoado de objetos que cerca a figura central. Tentemos enumerar seus principais elementos.

Há primeiro o anjo sentado, a face apoiada no punho esquerdo, segurando um compasso na mão direita. Trata-se de uma figura pesada, cujas asas mal parecem capazes de elevá-la. Traja uma coroa (de louros?) e um vestido amplo. A seus pés, ferramentas de artesão-geômetra: um tinteiro, uma esfera, um esquadro, uma plaina, uma serra, uma régua, alguns pregos. Na cintura, uma bolsa aparentemente cheia, símbolo da riqueza mercantil dos melancólicos. Parcialmente coberto pela barra do vestido, vê-se um clister. Objeto que simboliza o lado excremental da melancolia. O sol negro que ilumina o céu é cercado pelo anel de Saturno, o senhor dos anéis, o planeta anal. Entre os temas comuns às três gravuras, destacam-se a ampulheta e o cão.

O "quadrado mágico" na parede gerou as mais variadas especulações:

16 3 2 13
5 10 11 8
9 6 7 12
4 15 14 1

A "mágica" desse quadro é que a soma dos números, seja horizontal, vertical ou diagonal, resulta sempre em 34. Os quadrados mágicos, em voga na época, eram tidos como portadores de boa sorte. Representavam uma tentativa de dominar o infinito dos números. No caso de Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) , nota-se a posição privilegiada do número 1514, data da gravura e também da morte de sua mãe, Barbara Holper, que vivia com ele após ter tido dezessete filhos. Nesse ano, Dürer Dürer Dürer, Albrecht (1471-1528) faz um retrato gravado da velha senhora doente, de extrema crueza.

A atmosfera geral é triste e pesada, mas banhada por uma calma estudiosa e espiritual, tema da gravura do mesmo ano, A cela de São Jerônimo. Pois a melancolia não é depressão nem desespero. Pierre Mac Orlan afirmava que os melancólicos nunca se suicidam. Há nela até uma possibilidade de felicidade. Conhece-se a célebre definição de Victor Hugo Victor Hugo Victor-Marie Hugo (1802-1885) : "A melancolia é a felicidade de estar triste." Mas antes dele, Montaigne escreveu: "Há uma sombra de doçura e delicadeza que nos sorri e nos lisonjeia no próprio seio da melancolia" (Ensaios, II, 20).

Mas a mais bela interpretação da melancolia está nos Cadernos de Paul Valéry Valéry Valéry, Paul (1871-1945) — cujo taedium vitae marcou profundamente sua sensibilidade. Em que pensa Melencolia? O poeta de A jovem Parca responde admiravelmente. O que oprime de tristeza o anjo coroado é o horrível massacre de todos os possíveis que o curso da realidade exige.

"Aparição da Divina Melancolia sob a figura de um ser jovem — virgem ou herói — encarregado do que não foi, do que não pôde ser — de tudo o que enche o coração de lágrimas que não podem jorrar — de uma ternura sem resposta.

Sua voz é infinitamente doce e velada, como se dirigisse a si mesma, sem interlocutor concebível. Pois essa criatura está além do possível. Está, portanto, fora da vida e do mundo, mas é uma injúria viva a Deus, pois a Onipotência nada pode para redimir o que não foi — e o engano do mundo criado em relação aos humanos. Tema da impotência divina.

Athikté chora, e suas pernas se dobram lentamente. Adormece em lágrimas." (Cadernos, II, p. 1336-1337).


TOURNIER, Michel. Célébrations. Paris: Mercure de France, 1999