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Sampaio Bruno (1857-1915)

Contribuição de Antonio Carneiro

Esta página do Instituto Camões oferece um   sumário da vida   e obra deste pensador português. A seguir excertos do livro   "O Heterologos em Língua   Portuguesa", de Maria Helena Varela, apresentando Sampaio Bruno  .

No encoberto cenário da nossa existência  , nesse cenário crísico que é o século XIX em Portugal, Sampaio Bruno parece emergir como um pensador solitário, heterodoxo e sibilino, afrontando na sua profecia   sófica os destinos do humano e da história  . Difícil é, pois, caracterizar o pensamento plural e heterodoxo do pensador livre, mais do que livre pensador, que foi este autor  ; sendo sempre mais fácil sabermos o que ele não foi, do que encontrar nas vulgatas filosóficas e ideológicas os ismos necessários e ou suficientes para o catalogar. Revoltado do 31 de Janeiro e vítima do exílio, membro do P.R.P e seu dissidente, deísta na juventude e místico e esotérico na maturidade, ele é o pensador de um heterologos complexo e matizado, rebelde e precursor, um profeta de mundos numinosos, mas que ficou sempre no limiar de tudo  , sem coragem   para ir mais além.

Com Sampaio Bruno a filosofia   profetiza, ou melhor, a profecia, enquanto visão   rasgada de um Tempo   com maiúscula, assume forma   e valor filosófico, abrindo caminho   para a poesia   sófica de um dos nossos pensadores mais lúcidos, Fernando Pessoa  . Fundindo filosofia, história e profecia, num corpo   multiforme, plural e heterodoxo, mesclado de influências várias, ora mais positivas, ora mais esotéricas, Sampaio Bruno contribuiu para uma filosofia da história e antropologia situada que nos parecem caracterizai- bem   o heterologos. Talvez por isso, por mais indefinido e ambíguo, Bruno é considerado, por muitos autores, o iniciador do humanismo moderno em Portugal. Não se circunscrevendo aos modelos cientificistas dominantes, o positivismo marca-lo-á como paradigma epistemológico, embora os metaparadigmas o fascinem, e a revelação mística espicace a procura de uma verdade   que excede e não se esgota na razão humana. Assim, a metafísica   não foi para este autor a "lógica das aparências" kantiana, mas o mistério primordial, a revelação fugidia da unidade donde tudo proveio e à qual tudo deverá reverter. Partindo da positividade para a metafísica, a filosofia de Bruno parece culminar na profecia escatológica, sendo O Encoberto o remate de A Ideia de Deus  . Essencialmente heterodoxo, separa-se tanto da teologia ortodoxa como da metafísica clássica, numa teurgia   ou teosofia profética, e filosofia da história messiânica e escatológica.

Tímido e solitário, José Pereira Sampaio parece um Sísifo absurdo   na nossa história do pensamento. Nostálgico do possível, vive agrilhoado à necessidade   e ao mal  , sonhando com o bem, a liberdade   e a paz, num futuro escatológico marcado pela unidade e totalidade. A fenomenologia do mal e do tempo desemboca, então, numa escatologia da verdade e da paz, fundando na profecia os seus ideais políticos, tão complexos quão desinteressados.

Pensador crepuscular, no seu verbo escuro e sintaxe confusa Sampaio Bruno excedeu-se em erudição, da história à literatura, da filosofia à sociologia, da matemática   à música e à metafísica, acabando por se perder, conscientemente, nas névoas de um pensar   esotérico, sobretudo a partir do exílio, debruçando-se sobre a nossa tradição   céltica, influências templárias e outras manifestações iniciáticas mais recentes como a maçonaria. Desajustado à humana condição, Bruno parece mover-se, preferencialmente, na utopia   e na ucronia, daí a valorização das fontes místico-esotéricas na sua inspiração   filosófica e política, residindo o mistério do seu heterologos, mais nos escritos herméticos, predominantemente neoplatônicos, gnósticos e judaico-maçônicos, do que nas filosofias clássicas ortodoxas.

Tocado pelo paradigma positivista e cientificista, Sampaio Bruno jamais soube renunciar ao fascínio do irracionalismo hermético que parecia ressurgir nos filósofos, poetas e místicos do século XIX, de Goethe   a Novalis, ao qual os próprios positivistas mais ortodoxos parecem não ter sido completamente indiferentes na liturgia da sua religião   da razão. Para o autor portuense, o conhecimento   é um misto de revelação e razão, uma revelação raciocinada ou misticismo   filosofante, talvez porque a pura razão é incompatível com o mistério do ser  , assumindo-se o conhecimento hermético, ao longo da sua obra, como um conhecimento possível e profundo. A verdade parece identificar-se com o não dito, ou com aquilo que é dito de modo obscuro e enigmático, pelo que deve ser procurada sob a superfície dos textos. O ser fala   através de mensagens cifradas, metáforas poéticas e hieróglifos sófico-proféticos, razão pela qual uma hermenêutica   esotérica acabará por absorvê-lo nos últimos escritos. Em obras póstumas como Os cavaleiros do amor   e Teoria nova da antiguidade, José Pereira Sampaio, seguindo os chamados adepti dei velame, como Rossetti e Aroux, acabará por enlear-se num círculo hermenêutico fechado, envolvendo Dante   e a tradição hermética portuguesa, na sua linhagem maçônica, rosacruciana e templária, numa espécie de semiose hermética ilimitada (Cf. Eco, Humberto e outros. Interpretação e sobreinterpretação. Lisboa. Presença, 1993), como a entende Humberto Eco, cujos riscos de uma sobreinterpretação inverossímil são eminentes.

Do racionalismo deísta ao positivismo, da metafísica à escatologia, o percurso heterodoxo de Bruno parece culminar num hermetismo   e esoterismo hermenêutico que o inserem na plêiade dos anti-heróis   da cultura lusitana, nos antípodas das ortodoxias confessionais, mais próximo da nossa tradição templária e joanina. Historiador esotérico do esoterismo, ousa iniciar o desvelamento dos subterrâneos da portugalidade, a sua história mais secreta e obscura. Em trânsito entre o sófico e o místico, a razão e a revelação, Bruno parece, então, trilhar um percurso desconexo e sinuoso, do outro lado da história. Mas, por mais que os labirintos da metafísica e as névoas esotéricas o fascinem, a realidade   existencial e a positividade metódica marcam-no ainda e sempre, fundindo-se iniciação   e demonstração, profecia e teoremas numa "religião da razão" em que "a    emergirá do cálculo", "os santos são sábios", e "o martírio será inútil" (Sampaio Bruno. A Ideia de Deus. Porto, Lello & Irmão, 1987. p. 358-359).

Apesar do seu percurso nebuloso e prospectivismo messiânico, o autor portuense consegue traçar os destinos da pátria e da humanidade futura com um realismo historiográfico e filosofia da história ímpares para a sua época. Prospectivista, na história, ou na sofia profética, parte sempre do presente para o futuro, só depois procura entender os fatos passados. Por isso, recusa os modelos positivistas rígidos, por mais fiel que se pretenda à positividade epistêmica.

Porque a história científica é uma ilusão   de Augusto Comte, já que a verdadeira história é a história do futuro, sendo as leis positivas sempre de menos para medir aquilo que é demais. O mar   largo do futuro, como diz Joel Serrão, parece ter sido sempre o único reino pelo qual o encoberto Bruno lutou até ao fim  .

Perdido nos labirintos da sofia razoada, Sampaio Bruno deixa-se escorregar pela profecia e pelo mistério no seu heterologos rebelde; atitude típica do século XIX em geral, e dum pensamento de logos   íngreme e assistemático, como o português. Parece-nos mesmo ser um dos primeiros autores consciente   da força deste pensar na sua sofia-profética, sem cair na metáfora   dos poetas, na irrealidade pura do real, nem no visionarismo radical de certos profetas. Como ninguém, Bruno articulou positividade e metafísica, razão e revelação, sofia e profecia, na força lúcida de nos pensar- e compreender, na diferença de um heterologos precursor.