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L’Originel
René Daumal – Um mestre de liberdade: D.T. Suzuki
Revue « Fontaine » Mai 1942.
segunda-feira 30 de junho de 2025
Sobre os livros canônicos e as lendas, o ensinamento mais secreto do Buda transmitiu-se de mestre a aluno, ininterrupto, não alterado pelas controvérsias doutrinais. É desse ensinamento que se reclamava o mestre Bodhidharma quando veio para a China no século VI da nossa era. A escola que ele fundou tirou seu nome da palavra sânscrita dhyâna. (“meditação”), que se tornou em chinês tch’an-na ou tch’an, e em japonês Zen. Talvez não haja escola de desenvolvimento espiritual que, por seus documentos públicos, se apresente tão despojada de todo o acessório filosófico e religioso de que em geral se revestem essas escolas. As relações de mestre a aluno ali aparecem nuas. O intelecto sozinho, portanto, não pode compreender grande coisa. Tudo, no Zen, é prática: o próprio sentido das palavras reside nos efeitos que elas produzem; assim, elas apresentam frequentemente as aparências do enigma, do paradoxo, do não-sentido ou da banalidade.
Entre a obra monumental do Professor Daisetz Teitaro Suzuki, cuja publicação em francês está em andamento (D. T. Suzuki. Essais sur le bouddhisme Zen, 1er volume, traduzido do inglês por Pierre Sauvageot, prefácio de Jacques Bacot. Coleção “Bouddhisme et Jaïnisme”. Os extratos a seguir são emprestados dos volumes II e III ainda não publicados e que René Daumal Daumal René Daumal (1908-1944) está traduzindo.), escolhi alguns extratos relativos a um mesmo mestre chinês do século IX; não porque Lin-tsi tenha algo de excepcional entre os outros mestres Zen, mas porque os documentos que temos sobre ele realçam especialmente uma característica importante do ensinamento Zen: a aprendizagem da liberdade. Um apelo do mestre à liberdade do aluno, apelo que frequentemente assume o aspecto de uma provocação violenta: tal é em muitos casos o choque que desencadeia em um discípulo esse “despertar interior” (sambodhi em sânscrito, satori em japonês) que está no centro da disciplina Zen.
Eu gostaria, ao fazer ler esses documentos, de mostrar o “retrato” de Lin-tsi por um pintor japonês do século XV, que está sob os olhos neste momento. Sim, “retrato”, e certamente fiel, apesar dos seis séculos que parecem separar o modelo do artista. Certamente não se deve temer desse homem nenhuma piedade, nenhuma indulgência. Sentado em sua esteira, ele olha, e tudo nele, até as rugas da testa e as dobras da túnica, parece unificado nessa função de olhar. Não é um olho, nem um cérebro, nem um coração que olha, é um homem que olha. Nenhum sorriso de simpatia ou de familiaridade irá curvar o arco dessa boca, e nenhuma das máscaras resistirá a esse olhar. Sobre a palma esquerda aberta está seu punho direito, fechado, pesado, pronto para golpear o coração. Ele esmagará o escravo, mas do verdadeiro servo fará um homem livre.
R. DAUMAL Daumal René Daumal (1908-1944) .
COMO LIN-TSI FOI INSTRUIDO NO ZEN
Lin-tsi (morto em 867) é o fundador do ramo do Zen que leva seu nome (em japonês Rinzaï). Sua biografia apresenta certas características que são particularmente típicas da experiência Zen.
Ele estudava o Zen há vários anos sob a direção do mestre Houang-po, quando um dia o chefe de estudos - monge encarregado de dirigir em segundo os trabalhos de seus condiscípulos - perguntou:
– Há quanto tempo está aqui?
– Há três anos.
– Já viu o mestre?
– Não, ainda não.
– Por que não?
– Porque não sei que pergunta fazer a ele. O chefe de estudos disse então a Lin-tsi:
– Vá ver o mestre e pergunte: «Qual é o princípio do budismo?»
Lin-tsi foi ver o mestre como o aconselharam, e perguntou: «Qual é o princípio do budismo?» Antes mesmo que pudesse terminar a pergunta, Houang-po começou a dar-lhe golpes. Quando o chefe de estudos viu Lin-tsi voltar da casa do mestre, perguntou o resultado do encontro. O outro disse com pesar: «Eu fiz a pergunta, e recebi golpes». O monge disse para não desanimar, mas para voltar ao mestre. Lin-tsi assim foi três vezes ver Houang-po, mas cada vez o mesmo tratamento foi infligido, e o pobre Lin-tsi não estava mais avançado.
No final, ele pensou que era melhor ir encontrar outro mestre, e o chefe de estudos concordou. O mestre o enviou a Taï-yu. Quando Lin-tsi chegou perto de Taï-yu, este perguntou:
– De onde vem?
– Da casa de Houang-po.
– Que ensinamento ele deu?
– Eu o interroguei três vezes sobre o princípio último do budismo e cada vez ele me deu golpes sem me ensinar nada. Por favor, diga qual foi a minha falta.
Taï-yu disse:
– Ninguém poderia ter tido uma bondade de coração tão perfeita quanto esse velho resmungão de mestre, e ainda assim quer saber em que estava errado?
Sob o impacto dessa repreensão, o olho interior de Lin-tsi se abriu para o significado do tratamento em aparência brutal que Houang-po lhe havia infligido. Ele exclamou:
– Afinal, não há grande coisa no budismo de Houang-po!
Taï-yu imediatamente agarrou Lin-tsi pelo colarinho e disse:
– Agora pouco disse que não podia entender, e agora declara que não há grande coisa no budismo de Houang-po. O que quer dizer?
Lin-tsi, sem uma palavra, lançou por três vezes o punho nas costelas de Taï-yu. Este afrouxou o aperto e disse:
– Seu mestre é Houang-po; essa história não me diz respeito em nada.
Lin-tsi voltou para junto de Houang-po que perguntou:
– Como é que voltou tão rápido?
– Porque é bom demais, de uma bondade de avó.
Houang-po disse:
– Quando eu vir esse sujeito de Taï-yu, vou dar-lhe vinte golpes.
– Não espere para o ver, disse Lin-tsi; pegue isso agora!
Dizendo isso, ele deu ao velho mestre um tapa vigoroso e cordial. E este riu de bom coração.
O que chama a atenção, no presente caso, é o silêncio que Lin-tsi manteve durante três anos, sem saber que pergunta fazer ao mestre. Isso parece cheio de significado. Não havia ele vindo a Houang-po para estudar o budismo Zen? O que ele havia feito até o dia em que o chefe de estudos o aconselhou a ir ver o mestre? E o que o transformou tão completamente depois que ele viu Taï-yu? No meu entender, os três anos que Lin-tsi ficou ao lado de Houang-po, ele os passou em vãs tentativas para captar pela reflexão a verdade última do Zen. Ele sabia perfeitamente bem que o Zen não podia ser compreendido por meios verbais nem pela análise intelectual, mas, no entanto, ele continuava a lutar com o pensamento para conquistar a “realização-de-si”. Ele não sabia o que realmente procurava, nem como seus esforços mentais deveriam ser direcionados. De fato, se ele soubesse o quê e o como, isso seria o mesmo que dizer que ele já estava na posse de algo definido, e alguém que está na posse de algo definido não está longe de verdadeiramente compreender o Zen. Foi quando Lin-tsi se encontrava nesse difícil estado de espírito, vagando sem direção em sua peregrinação espiritual, que o chefe de estudos, por sua própria experiência, compreendeu que o momento havia chegado de dar um conselho oportuno a esse buscador da verdade em desespero. Ele deu a Lin-tsi uma indicação que pudesse permitir-lhe alcançar o objetivo. Quando Lin-tsi foi maltratado por Houang-po, não ficou surpreso, nem irritado; mas, simplesmente, não conseguia entender o que significavam esses golpes, e sofria com isso. Ao ir para Taï-yu, ele devia pensar nesse problema com todos os recursos de sua inteligência. Antes de ter recebido o conselho de interrogar o mestre sobre a verdade última do budismo, seu espírito perturbado procurava algo a que se agarrar; ele estendia, por assim dizer, os braços em todas as direções para agarrar algo na escuridão. Nessa situação desesperada, ele recebeu uma indicação que o colocou no caminho: os golpes dados por Houang-po, seguidos da observação de Taï-yu sobre “a bondade desse velho resmungão”, que finalmente o fez captar o objeto que todos os indícios precedentes designavam. Sem os três anos de intensa aplicação mental, de tormento espiritual e de vã busca da verdade, essa crise nunca teria acontecido. Todos os tipos de ideias contraditórias, duplicadas de várias tonalidades de sentimentos, haviam se chocado confusamente dentro dele, mas de repente o novelo se desenrolou e se arranjou em uma nova ordem harmoniosa.
COMO ELE ENSINAVA
O monge Ting veio encontrar Lin-tsi e perguntou:
– Qual é a essência do budismo?
Lin-tsi desceu de sua cadeira de palha, agarrou o monge, deu-lhe um tapa e o deixou ali. Ting permaneceu imóvel. Outro monge, que estava ao seu lado, disse:
– Ting, por que não faz uma reverência? Ting estava prestes a se inclinar diante do mestre, quando de repente ele “realizou”. (N.D.T.: Esta expressão é sinônimo de “abrir o olho interior” ou “olho do satori”, de “ver a própria natureza”, “ver o rosto original, que se tinha mesmo antes de todo nascimento”, e outras locuções desse tipo em uso no Zen.)
Tal é o breve relato que nos é dado do evento. Por mais breve que seja, podemos encontrar nele tudo o que é necessário para entender o que foi para Ting a experiência do Zen. Em primeiro lugar, ele não tinha vindo encontrar Lin-tsi por acaso. Sua pergunta era sem dúvida o resultado de uma longa reflexão e de uma busca ansiosa pela verdade. Fazer uma pergunta não é uma coisa pequena. Certamente, os enigmas intelectuais não faltam, mas a dificuldade é fazer sair de si uma pergunta vital, da qual depende o destino do próprio questionador. Formular uma pergunta é mais da metade da resposta. Um pequeno gesto do mestre pode então ser suficiente para abrir para o questionador uma vida nova. A resposta não está no gesto ou nas palavras do mestre; ela está no próprio espírito, agora desperto, do questionador. Quando Ting interrogou o mestre sobre a essência do budismo, sua pergunta não foi feita de ânimo leve; ela saía de seu ser íntimo, e não era uma resposta intelectual que ele esperava. Quando ele foi agarrado e golpeado pelo mestre, provavelmente não ficou de modo algum “surpreso” - no sentido de ser pego de surpresa e não saber o que fazer; mas ficou surpreso no sentido de que foi inteiramente jogado para fora dos caminhos batidos da lógica comum, ao longo dos quais, sem dúvida, ele havia se demorado até então sem perceber. Ele foi tirado da terra onde estava acostumado a ficar e à qual parecia ligado para sempre; ele foi levado, não sabia para onde, exceto que agora estava perdido para o mundo e para si mesmo. É isso que significa o fato de que ele “permanecia imóvel”. Todos os seus esforços anteriores para encontrar uma resposta à sua pergunta foram reduzidos a zero. Ele estava à beira do precipício, ele se agarrava a ele com toda a força que lhe restava, mas o mestre o empurrava sem piedade. Mesmo quando ouviu a voz do monge que o interpelava, ele não estava inteiramente acordado de sua estupefação. Foi somente no momento em que ele ia fazer as reverências habituais que ele reencontrou o sentido, - o sentido que lhe permitiu então jogar uma ponte sobre a descontinuidade lógica, e que o fez experimentar dentro de si mesmo a resposta à sua pergunta, - o sentido que o fez ler o significado último de toda a vida, depois do qual ele não tinha mais nada a procurar.
Quando Loung-ya Kiu-toun viu pela primeira vez o mestre Tsoueï-oueï, ele perguntou:
– O que significa a vinda do Patriarca do Ocidente? (N.D.T.: O “Patriarca” é Bodhidharma, fundador da seita, que veio da Índia para a China no ano 520 de nossa era. A pergunta feita sobre o sentido de sua missão é um dos mais célebres koan, espécies de enigmas propostos à reflexão dos alunos nos mosteiros Zen.)
Tsoueï-oueï disse:
– Pode me passar o tch’an-pan! (N.D.T.: Espécie de bastão de bambu, um dos atributos do mestre.)
Assim que lho deram, ele o agarrou e golpeou Loung-ya com ele.
Algum tempo depois, Loung-ya foi ver Lin-tsi e fez a mesma pergunta. Lin-tsi disse: - Por favor, passe-me a almofada. Assim que a teve nas mãos, ele golpeou Loung-ya exatamente como Tsoueï-oueï havia feito com o tch’an-pan. Nos dois casos, no entanto, Loung-ya se recusou a aceitar isso como um tratamento conveniente, pois declarou: «No que diz respeito a dar golpes, eles podem fazer isso o quanto quiserem. Mas quanto ao sentido da vinda do Patriarca, não há rastro disso ali».
Lin-tsi dizia: «O homem verdadeiramente religioso não tem nada mais a fazer do que continuar a viver sua vida tal como a encontra nas circunstâncias variadas desta existência mundana. Ele se levanta tranquilamente pela manhã, se veste e vai para seu trabalho. Quando quer andar, anda; quando quer sentar, senta. Ele não suspira pelo estado de buda, ele não tem a mais distante ideia disso. Como é possível? Um antigo sábio disse: Se se esforça para encontrar a budeidade por estratagemas intelectuais quaisquer que sejam, seu Buda é a própria fonte da transmigração perpétua».
UM SERMÃO SOBRE A LIBERDADE
Lin-tsi, durante um sermão, falou assim aos monges: «Ó discípulos da Verdade, se desejam obter uma compreensão ortodoxa, não sejam induzidos em erro pelos outros. Interior e exteriormente, se encontram obstáculos, abatam-nos na hora. Se encontram o Buda, matem-no; se encontram o Patriarca, matem-no; se encontram o Arhat ou o ancestral ou o parente (N.D.T.: Aquele que, na via búdica, eliminou todos os obstáculos, ultrapassou todas as etapas, e que, na morte do corpo físico, entrará no nirvana.), matem todos sem hesitação: pois é o único caminho para a libertação. Nunca se deixem entravar pelo menor objeto, mas dominem-no, passem e sejam livres. Quando olho para esses chamados discípulos da Verdade, todos eles neste país, não vejo nenhum que venha a mim livre e independente dos objetos. Quando lido com eles, eu os derrubo com golpes, não importa como eles vêm a mim. Se eles se fiam na força de seus braços, eu os corto; se eles se fiam em sua eloquência, eu lhes fecho a boca; se eles se fiam na acuidade de seu olho, eu os cego. De fato, até agora não houve um que se apresentou diante de mim sozinho, livre e independente. Invariavelmente, percebe-se que eles se deixaram levar pelos truques infantis dos velhos mestres. Realmente, eu não tenho nada a dar; tudo o que posso fazer é curar das doenças e libertar da escravidão.
«Ó discípulos da Verdade, mostrem-se aqui independentes de todos os objetos; quero ponderar a questão com eles. Durante esses últimos cinco ou dez anos, esperei em vão pela chegada de tais homens, e ainda não veio. São todas existências fantasmagóricas, gnomos ignóbeis que assombram os bosques ou os bambuzais, elfos das solidões selvagens. Eles mordem loucamente em todos os montes de lixo. Homens com olhos de toupeira, por que desperdiçam as pias doações dos devotos? Estimam merecer o nome de monges, quando fazem uma ideia tão falsa? Digo, sem Budas, sem ensinamentos santos, sem disciplina, sem testemunho! O que procuram na casa do vizinho? Homens com olhos de toupeira! Colocam uma outra cabeça sobre a sua! O que falta em si mesmos? Ó discípulos da Verdade, o que utilizam neste mesmo momento, não é outra coisa senão o que faz um Patriarca ou um Buda. Mas não acreditam nisso, e procuram tudo isso no exterior. Não se abandonem a um erro. Não há realidades no exterior, e nada também no interior, sobre o qual se possa pôr a mão. Ficam presos ao sentido literal das palavras, mas como seria melhor parar todas as cobiças e não fazer nada! ...».
Segundo D. T. SUZUKI
Traduzido do inglês por René Daumal Daumal René Daumal (1908-1944)


ACCARIAS, Jean-Louis. René Daumal ou le Retour à soi: textes inédits de René Daumal, études sur son œuvre. Paris: l’Originel, 1981